Comício na Central do Brasil, em 13 de março de 1964. Foto: Arquivo Nacional / Correio da Manhã

O PCB diante do golpe e da ditadura

O Partido Comunista Brasileiro (PCB) era a principal organização da esquerda quando ocorreu o golpe de 1964. Embora inserido no movimento operário, nos meios intelectuais e mesmo entre militares, o partido não foi capaz de organizar a resistência contra a ofensiva burguesa que derrubou o governo de João Goulart. Essa derrota não se deu por acaso, mas por conta das ilusões, nutridas pelo partido, na necessidade de primeiro desenvolver o capitalismo e, apenas posteriormente, lutar pelo socialismo. Essa perspectiva, apesar de se mostrar fracassada diante do golpe de 1964, foi ganhando novos contornos durante toda a ditadura.

Desde as décadas anteriores, o PCB vinha construindo alianças com setores da burguesia que, em seu entendimento, eram progressistas, em particular as frações representadas politicamente pelo getulismo. Como principal consequência teórica, desdobrava-se a chamada “teoria da revolução por etapas”, uma das expressões do stalinismo. São bastante esclarecedores os documentos produzidos pelo PCB sobre esse tema, ao longo desse período. O centro da estratégia política passaria por “remover” os “restos feudais”, o que seria uma etapa inicial dentro do processo revolucionário, assim descrita pelo partido em 1954:

“A revolução brasileira em sua etapa atual é, assim, uma revolução democrático-popular, de cunho anti-imperialista e agrária antifeudal. É uma revolução contra os imperialistas norte-americanos e contra os restos feudais e tem por objetivo derrocar o regime dos latifundiários e grandes capitalistas”.1

Essa luta contra os resquícios feudais teria como aliados setores da burguesia. O PCB afirmava, por essa razão, que o seu programa não ameaçaria os interesses dessa burguesia, mas sim que:

“[…] defende[ria] suas reivindicações de caráter progressista, em particular o desenvolvimento da indústria nacional. Essa posição é acertada, decorre de uma justa compreensão do caráter da revolução brasileira em sua primeira etapa, quando as necessidades já maduras do desenvolvimento da sociedade brasileira, que exigem solução imediata, são exclusivamente as de caráter anti-imperialista e antifeudal”.2

Contudo, a colaboração de classes não se limitava a defender um programa comum com a burguesia, mas também na aliança estratégica com a classe inimiga. Em 1958, o Comitê Central (CC) do PCB afirmava:

“O proletariado e a burguesia se aliam em torno do objetivo comum de lutar por um desenvolvimento independente e progressista contra o imperialismo norte-americano. Embora explorado pela burguesia, é de interesse do proletariado aliar-se a ela, uma vez que sofre mais do atraso do país e da exploração imperialista do que do desenvolvimento do capitalismo. Entretanto, marchando unidos para atingir um objetivo comum, a burguesia e o proletariado possuem também interesses contraditórios”.3

Esses “interesses contraditórios” entre trabalhadores e burgueses deveriam ficar em segundo plano diante do que o PCB entendia como necessidade primordial: eliminar os “restos feudais”. Nesse cenário, a adaptação do PCB à democracia burguesa e à linha stalinista de “coexistência pacífica” com o imperialismo levaram-no a teorizar que todo o processo de transformação da sociedade poderia ser feito de forma pacífica. Em 1958, afirmava:

“O povo brasileiro pode resolver pacificamente os seus problemas básicos com a acumulação, gradual, mas incessante, de reformas profundas e consequentes na estrutura econômica e nas instituições políticas, chegando até a realização completa das transformações radicais colocadas na ordem do dia pelo próprio desenvolvimento econômico e social da nação”.4

O PCB, além da defesa da possibilidade de uma transformação social pacífica, se utilizava da ideia de “reformas graduais”. Essas elaborações teóricas e políticas se mostraram desastrosas na prática, em especial por terem sido um dos fatores capazes de explicar a derrota dos trabalhadores que levou à vitória dos militares e da burguesia no golpe de 1964. O PCB não assumiu parte de seus erros. No ano seguinte ao golpe, o PCB afirmava:

“A vitória do golpe militar pôs a descoberto muitas de nossas mais sérias debilidades. Fomos colhidos de surpresa pelo desfecho dos acontecimentos e despreparados não apenas para enfrentá-los, como também para prosseguir com segurança e eficiência em nossas atividades nas novas condições criadas no País. Revelou-se falsa a confiança depositada no ‘dispositivo militar’ de Goulart. Também falsa era a perspectiva, que então apresentávamos ao Partido e às massas, de uma vitória falsa e imediata. Nossas ilusões de classe, nosso reboquismo em relação ao setor da burguesia nacional que estava no Poder, tornaram-se evidentes”.5

Em seu balanço, o PCB parecia desiludido com a burguesia “progressista”, demonstrando que se sentia traído em relação a esses setores da classe inimiga. O partido dizia, também em 1965:

“Uniam-se os reacionários e entreguistas, que conseguiam atrair para seu lado amplos setores da burguesia nacional e da pequena burguesia urbana, descontentes com a situação e que não concordavam com as crescentes ameaças ao regime constitucional vigente. As forças da direita armavam-se e preparavam aceleradamente o golpe”.6

Os trabalhadores foram enganados pelo PCB, que os fizera ver seus algozes como aliados na construção de uma sociedade futura, iludindo-os de que o conflito entre os seus interesses e os da burguesia era secundário em relação ao embate com os “resquícios feudais”. Os trotskistas combatiam veementemente esse tipo de ideia, afinal a realidade lhes mostrava que apesar de todas as divergências que pudesse ter entre suas várias frações:

“[…] apavorada diante do movimento de massas, que se radicalizava antes de 1964, escapando das mãos dos pelegos, [a burguesia] conseguiu unir suas forças, para promover contra João Goulart o golpe que, em última instância, era dirigido contra as massas”.7

Esse balanço do contexto do golpe, feito pela Organização Comunista 1º de Maio (OC1M), em 1971, também contém elementos de crítica à atuação do PCB. Segundo a OC1M, durante o período anterior a 1964:

“[…] [o PCB] havia conseguido impor a setores das massas a ilusão da tomada do poder pacificamente. Não havia se preparado para aparar e rebater os golpes que sempre estão sendo tramados pelos inimigos nem para a tomada do poder, pois, verdadeiramente, não o colocava como objetivo”.8

Os erros cometidos pelo PCB não foram o suficiente para que o partido mudasse suas bases teóricas e políticas. Para o partido, o fato de sua política de colaboração de classes ter colocado o proletariado a reboque dos interesses e movimentações da burguesia parecia ser o menor dos problemas. Diante do golpe, o PCB fez o balanço de que até mesmo suas moderadas críticas a João Goulart teriam enfraquecido o governo e ajudado na ação dos golpistas:

“Nossa atividade em relação ao governo de Goulart era orientada, na prática, como se sua política fosse quase inteiramente negativa. Desprezávamos seus aspectos positivos de grande importância, como, em sua política externa, a defesa da paz, da autodeterminação dos povos, do princípio de não-intervenção, o desenvolvimento das relações diplomáticas e comerciais com os países socialistas, e, sua política interna, relativo respeito às liberdades democráticas, o atendimento de reivindicações dos trabalhadores”.9

Portanto, para o PCB, João Goulart não teria sido derrubado por sua política vacilante em relação ao imperialismo nem por sua confiança de que os militares respeitariam a democracia burguesa, mas por suas medidas pretensamente progressistas. O erro do PCB, segundo seu balanço, não estava em ter se negado a organizar os trabalhadores de forma independente do governo, mas em não ter visto os esforços de Jango para aplicar tais medidas. O PCB assim afirmava:

“Concentrando nosso fogo no governo, exigíamos medidas cada vez mais avançadas, sem levar em conta nossas próprias debilidades e a fraqueza do movimento nacionalista e democrático, bem como a efetiva correlação de forças sociais que então existia, o que põe a nu a persistente influência do subjetivismo em nossas atividades”.10

Os trabalhadores não estariam prontos para uma luta mais avançada. Contudo, o que o PCB parecia esquecer era o fato de que esse avanço na organização e na consciência era tarefa do próprio partido.

Essa postura do PCB se manteve durante a ditadura, em particular na política de alianças com a burguesia. Segundo o partido, os trabalhadores deveriam aproveitar os embates internos dentro das classes dominantes e, a partir disso, se aliar às frações que se colocassem em oposição, mesmo que apenas pontualmente, à ditadura. Em 1967, afirmava o PCB:

“A burguesia nacional participa da frente antiditatorial, embora sua oposição ao regime seja limitada. Outros setores das classes dominantes, cujos interesses são construídos pela política do governo ditatorial, podem participar de ações contra o regime e ser úteis à ativação e fortalecimento da frente antiditatorial”.11

Essa compreensão levou a política do PCB a uma completa integração à institucionalidade, priorizando a intervenção dentro do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido burguês de oposição consentida da ditadura, e a construção da unidade com o sindicalismo “pelego”. Na estratégia do PCB, o centro da sua política continuava a ser a colaboração com a burguesia, conforme mostra sua posição em 1975:

“Na luta contra a ditadura fascista, os comunistas consideram necessário aglutinar todas as forças que, em maior ou menor grau, estão em contradição com o regime, incluindo não só o MDB, a Igreja e a burguesia não monopolista, mas também setores das FFAA, da ARENA e até mesmo de alguns representantes dos monopólios, descontentes com o caráter fascista assumido pelo regime”.12

Em relação à dinâmica da revolução, sua perspectiva pouco mudou em relação ao desenvolvimento capitalista, submetendo a luta dos trabalhadores à defesa da democracia burguesa. Em 1981, o PCB afirmava:

“O caminho da revolução brasileira, orientado para o socialismo, é democrático e nacional. Ele exige a mais completa democracia e a supressão dos obstáculos históricos que impedem o progresso nacional, a supressão da dominação imperialista, monopolista e latifundiária”.13

O PCB se limitava ao combate indireto contra à ditadura, institucionalizado e tendo como centro a “frente democrática” e sua inserção nas disputas institucionais. O PCB acabou priorizando a unidade ampla a todo custo, inclusive do ponto de vista partidário e sindical, afastando-se dos setores mais combativos, que construíram o PT e a CUT, a partir do final da década de 1970.

O PCB, ao se integrar às instituições da ditadura, acabou por se tornar defensor dessa mesma ordem, mostrando-se, assim, partidário da transição “lenta e gradual”. Os trotskistas denunciavam em 1979:

“A atuação do PCB se torna cada dia mais evidente. Essa afirmação geral foi inteiramente confirmada no desenrolar das mobilizações deste ano. Colocando-se contra as greves. Bombardeando-as por dentro quando não conseguia quebrá-las. Apoiando a anistia restrita de Figueiredo, sustentando o bipartidarismo, a “unidade” do MDB. Negando-se a lutar pela sua legalidade – e sufocando a palavra-de-ordem de “livre organização partidária” – o PCB joga um peso fundamental no sentido de sustentar a ditadura militar, de legitimar suas instituições”.14

Por outro lado, na medida em que não era mais possível afirmar a necessidade de superar os “resquícios feudais”, o PCB passou a fazer novas elaborações sobre as “etapas” para a revolução. Nesse sentido, o regime democrático, ainda que burguês e com o pleno funcionamento das forças de repressão, seria uma etapa para o socialismo. Em 1982, o PCB afirmava: “a democracia é um valor estratégico para o proletariado e para o socialismo”, pois “será nela e através dela que a classe operária poderá capacitar-se como classe hegemônica, competente para articular uma ampla aliança com as demais forças populares”.15 Em 1987, o PCB defendia uma “alternativa para o futuro do Brasil”, materializada em “uma política para a democracia na perspectiva do socialismo, garantindo-se outro tipo de desenvolvimento, uma nova economia que crie empregos, favoreça o trabalhador e realize suas aspirações”.16

Esses elementos da trajetória do PCB diante do golpe e ao longo da ditadura mostram importantes lições. Em primeiro lugar, a necessidade da organização independente dos trabalhadores, no sentido da luta pela revolução e pelo socialismo. Em segundo lugar, que não é possível nutrir ilusões na burguesia e nas instituições do Estado, na medida em que defendem interesses antagônicos aos dos trabalhadores.

Notas e referências

1 IV Congresso do PCB (dezembro de 1954 a fevereiro de 1955). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1943-1964). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 2, p. 128.

2 IV Congresso do PCB (dezembro de 1954 a fevereiro de 1955). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1943-1964). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 2, p 132.

3 Declaração sobre a política do PCB (março de 1958). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1943-1964). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 2, p. 187.

4 Declaração sobre a política do PCB (março de 1958). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1943-1964). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 2, p 192.

5 Resolução política do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (1965). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1964-1982). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 3, p. 24.

6 Resolução política do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (1965). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1964-1982). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 3, p. 26.

7 Organização Comunista 1º de Maio. Algumas considerações sobre a formação da direção revolucionária do proletariado [janeiro de 1971]. In: Daniel Aarão Reis Filho & Jair Ferreira de Sá (org.). Imagens revolucionárias. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 392.

8 Organização Comunista 1º de Maio. Algumas considerações sobre a formação da direção revolucionária do proletariado [janeiro de 1971]. In: Daniel Aarão Reis Filho & Jair Ferreira de Sá (org.). Imagens revolucionárias. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 393.

9 Resolução política do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (1965). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1964-1982). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 3, p. 25.

10 Resolução política do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (1965). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1964-1982). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 3, p. 25.

11 VI Congresso do PCB (dezembro de 1967). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1964-1982). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 3, p. 73.

12 Resolução política do CC do PCB (dezembro de 1975). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1964-1982). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 3, p. 169.

13 Teses para um debate nacional pela legalidade do PCB (maio de 1981). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1964-1982). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 3, p. 280.

14 Quem sustenta a ditadura? A Luta de Classes, nº 2, set. 1979, p. 27.

15 PCB. Unidade, renovação e democracia. São Paulo, Caetés, 1982, p. 48.

16 PCB. Documentos aprovados pelo 8º Congresso (Extraordinário), julho de 1987, p. 2-3.