Foto: Isac Nóbrega/PR
Foto: Isac Nóbrega/PR

Bolsonaro, a ditadura e o anticomunismo fora de época

Bolsonaro e seus apoiadores ideológicos, desde a campanha eleitoral, parecem ter ampliado seus ataques à esquerda, em geral, e ao comunismo, em particular. Em um ato de campanha, Bolsonaro chegou a falar em “varrer do mapa os bandidos vermelhos” e, na véspera da posse, discursou contra o “lixo comunista”. Recentemente Bolsonaro voltou a falar sobre o tema, mostrando um claro desrespeito às vítimas perseguidas pela ditadura. Bolsonaro parece viver numa realidade que lembra o passado clima da Guerra Fria, em que supostamente haveria uma infiltração comunista em curso no Brasil. Contudo, ainda que pareça paranoico ou mesmo maluco, em realidade Bolsonaro tem clareza de qual é o inimigo a ser combatido: os trabalhadores e seu potencial de transformação da sociedade.

O governo Bolsonaro se coloca como um agente do capital financeiro, pretendendo vender estatais e privatizar serviços, e delimita claramente contra quem está lutando e quem precisa derrotar. Coloca como um dos espaços de batalha, além do combate à organização dos trabalhadores, o próprio campo da cultura e da disputa ideológica, sendo essas uma das razões de apresentar como um dos eixos de sua campanha e do seu governo o combate a uma genérica “doutrinação”, defendendo o projeto Escola Sem Partido e uma verdadeira cruzada contra a “ideologia de gênero”. Essa retórica serve também para mobilizar permanente parte de seu “exército”, que precisa estar de prontidão para defender o governo diante do desgaste provocado pelos ataques aos direitos dos trabalhadores e às liberdades democráticas.

O fato de ter colocado essas disputas culturais em destaque durante a campanha não se deu por acaso. Os militares brasileiros, décadas atrás, ao justificarem seu alinhamento político ao campo político liderado pelos Estados Unidos, elaboraram uma doutrina que afirmava ser preciso estar sempre de prontidão para uma guerra iminente contra a União Soviética e seus aliados. Em 1964 essa foi uma das desculpas dos militares para o golpe, afinal, segundo eles, um governo de esquerda teria trazido o caos ao Brasil. Dando continuidade a essa mentira, contava-se, nas décadas seguintes, que os militares teriam encarada a tarefa de restabelecer a ordem e promover o desenvolvimento econômico do Brasil.

Essa narrativa foi criada e repetida em livros e nos bancos escolares durante muitos anos, ainda na ditadura, mas sua completa falta de relação com a realidade fez com que fosse não apenas questionada como facilmente derrubada. Na década da 1970, com os parcos núcleos guerrilheiros destroçados, não havia mais sentido em associar o “perigo vermelho” a uma iminente ação militar de forças de esquerda. Nesse período, a crise na mentira difundida pelos militares e o fim do período de crescimento econômico estão entre as razões para que até mesmo uma parcela das Forças Armadas tenha passado a defender a necessidade de uma transição “democrática”. Essa nova ordem institucional deveria manter o domínio do capital financeiro e ser efetivada sem instabilidade política e social.

Na Europa, em paralelo à crise da ditadura brasileira, a esquerda reformista, em especial os partidos socialistas e comunistas, estava integrada à ordem burguesa. Para esses setores da esquerda não se colocava mais a necessidade de superação do capitalismo e de construção de uma nova sociedade, mas apenas a conquista de reformas por dentro da ordem burguesa. Para os militares brasileiros, essa postura da esquerda, que logo teve seus reflexos no Brasil, não passava de fingimento. Os militares acreditavam que a priorização por parte da esquerda da disputa institucional, ocupando espaços nas eleições e respeitando as leis, era somente uma mudança tática, mantendo a estratégia anterior de tomada do poder. Segundo os militares, as esquerdas buscavam a construção de uma “hegemonia cultural” que, quando estivesse consolidada, permitiria aos comunistas tomar de forma violenta o controle do Estado.

Essa mudança foi percebida por Jorge Boaventura, ainda em 1980. Colaborador do Ministério da Educação durante a ditadura e ligado à Escola Superior de Guerra, Boaventura procura mostrar no livro “Ocidente traído” que há um perigoso ataque do materialismo contra as tradições cristão, em âmbito internacional, desde pelo menos as Revoluções Burguesas, a partir do século XVII. Boaventura analisa as mudanças táticas discutidas no movimento comunista internacional, apontando que ela teria como objetivo se infiltrar em espaços como imprensa e até mesmo igrejas, como forma de preparar as ações revolucionárias. Boaventura não percebe, em sua cegueira anticomunista, que as mudanças táticas discutidas pelos comunistas não eram uma mentira para chegar ao poder, mas que esses partidos estavam integrados à democracia burguesa e não tinham nenhum interesse em destruí-la.

Temas como o de doutrinação e de infiltração por parte das esquerdas seriam melhores trabalhadas posteriormente, tendo uma de suas primeiras sistematizações num livro de Marco Polo Giodani. Publicado em 1987, o livro Brasil: sempre, que pretendia ser um contraponto ao Brasil: Nunca mais, além de apresentar os costumeiros delírios sobre o suposto perigo comunista, também se dedica a discutir as formas como atuariam as organizações subversivas. Entre outras coisas, afirma que os comunistas teriam como objetivo se infiltrar “em cada organismo associativo da sociedade civil”, podendo esse trabalho ser realizado tanto em fábricas e sindicatos como em escolas e universidades. Giodani define doutrinação como “incutir na mente das massas os princípios da ideologia marxista”, nos espaços onde estão infiltrados, com vistas a promover a derrubada de governos e do regime então constituídos.

Enquanto a cúpula militar participava das negociações que levaram ao acordo entre os governantes e a oposição institucional, buscando consolidar uma democracia “segura” para os interesses do capital, setores da caserna continuavam a ter delírios sobre a suposta mudança de tática dos comunistas. Bolsonaro incorpora à sua retórica um conjunto de ideias de uma parcela desses militares que se mostravam insatisfeitos com a transição negociada. Como demonstraram em numerosos livros e depoimentos, publicados ao longo das últimas décadas, essa parcela de militares se mostrava ressentida com a forma que sociedade encarava sua atuação nos governos. Para eles, ao mudar sua tática de atuação, as esquerdas teriam ganhado a batalha no âmbito da disputa cultural e, ao buscar outras formas de tomar o poder, por meio da infiltração em espaços como a imprensa e as universidades, continuaram a colocar em risco a sociedade Ocidental.

Bolsonaro, portanto, em certa medida, é inimigo da Nova República e, não por acaso, assumiu o governo pretendendo ser uma tentativa (bastante capenga) de bonapartismo no momento de falência do regime que se estruturou a partir da negociata final da ditadura. Ainda que invoque o inimigo que há décadas ruiu com os regimes stalinistas do Leste Europeu, Bolsonaro parece estar em prontidão para uma guerra contra os trabalhadores, que encara como inimigos doutrinados pelo “marxismo cultural” que supostamente domina as escolas e universidades pelo Brasil. Se Bolsonaro está esperando a subversão e a tentativa de tomada do poder, cabe aos trabalhadores se colocar na ofensiva não apenas para derrubar o candidato a Bonaparte, mas também destruir por completo o capitalismo.