Combater a censura de livros e obras de arte, defender as liberdades democráticas!

Juliana Maciel (PL), prefeita de Canoinhas, SC, voltou a chamar a atenção para uma pauta levantada pela direita mais reacionária nos últimos meses, a censura de livros. Em um vídeo publicado em sua conta do Instagram, Juliana joga dois livros da Mundoteca na lata de lixo e em seguida vomita o velho discurso moralista e hipócrita de defesa dos valores da família. Mesmo para o direito burguês, a ação da prefeita é criminosa, afinal, joga livros comprados com dinheiro público. Entre as obras descartadas, encontramos “As Melhores do Analista de Bagé”, de Luis Fernando Verissimo, obra que pode nos dar uma boa ideia do que fazer com essa direita tão irritada com os livros “perigosos”: aplicar uma boa terapia do joelhaço, vale a pena conhecer a obra.

A prefeita alega que os livros em questão são destinados a crianças, mas, de acordo com o Ministério da Cultura, “o livro Aparelho Sexual e Cia, de Zep e Hélène Bruller, tem indicação para público juvenil e foi emprestado para somente uma pessoa adulta na biblioteca em questão. E o livro As melhores do Analista de Bagé, de Luís Fernando Veríssimo, é recomendado para o público adulto e nunca foi emprestado” (Estadão, 18/04).

O outro alvo de Juliana é o governo Federal e o PT, porém, o Ministério da Cultura também explicou que o projeto Mundoteca foi aprovado “por meio da Lei Rouanet, em 2018, e executado entre 2019 a 2023”.

O mesmo “equívoco” foi cometido pela diretora de uma escola estadual do Rio Grande do Sul, Janaina Venzon, que pediu no início do mês passado a retirada do livro “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório, da instituição. A obra foi incluída no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) em 2022, isto é, durante o governo Bolsonaro (PL).

Mas nem Juliana Maciel, nem Janaina Venzon se confundiram ao inventar histórias mirabolantes sobre as obras. “Embora isso seja loucura, mesmo assim há nela certo método”, como nos diz Polônio em “Hamlet”, de Shakespeare. O que elas fazem é repetir a tática do bolsonarismo de inventar um fato político apelando para a moral, buscando chamar a atenção de sua base em um ano em que, coincidentemente, ocorrerão eleições. 

Um bom exemplo, foi o a ação de um militante do Movimento Brasil Livre (MBL) em Joinville, SC, que discursou raivosamente contra uma bandeira LGBT pintada em um mural de uma escola (fruto de um trabalho escolar e pintado por decisão dos próprios estudantes), demonstrando ignorar os Parâmetros Curriculares da Educação Brasileira que “propõem que os jovens tenham acesso ao mais amplo conteúdo histórico, político e cultural e que a escola deve ser um ambiente para todos, gratuito e laico, livre de qualquer preconceito e censura”1.

Qualquer coisa pode ser um fato para seus discursos raivosos em defesa da moral e dos bons costumes, quando na verdade todos defendem as mesmas políticas de destruição de serviços públicos, privatização de estatais, reajustes fiscais, isto é, políticas que atacam diretamente a classe trabalhadora e seus filhos.

O discurso em defesa das crianças e jovens “ameaçados” por livros perigosos cai por terra quando vemos essas mesmas pessoas defendendo o Novo Ensino Médio (NEM), projeto de destruição da escola pública. Aliás, a obra “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório está incluída como leitura obrigatória no próximo vestibular da UFRGS, mas em muitas bibliotecas de escola públicas do país o livro foi retirado da biblioteca, ou seja, os alunos não têm acesso à obra no ambiente onde a literatura contemporânea é obrigatória. Os livros foram censurados em ao menos três estados: Rio Grande do Sul, Paraná e Goiás.

As tentativas de censura como as que estamos vendo novamente não é uma exclusividade do Brasil. Quem acompanhou os indicados ao Oscar desse ano deve ter notado entre os concorrentes para o prêmio de melhor documentário curta-metragem o “O ABC da proibição de livros”. Nele, uma série de entrevistas a crianças são intercaladas com capas de obras que sofreram algum tipo de censura nos Estados Unidos.

Muitos dos livros apresentados falam de casais homoafetivos, tratam da questão racial etc., temas que são alvos da camada mais reacionária da sociedade norte-americana por razões óbvias, mas obras como “O Hobbit”, de Tolkien, também aparecem na lista de livros censurados, além da famosa história em quadrinhos “Maus”, de Art Spiegelman (que trata dos horrores do Holocausto) e uma adaptação em quadrinhos do “Diário de Anne Frank”, produzida por Ari Folman e David Polonsky, entre tantas outras.

De acordo com o documentário, mais de 2 mil livros já foram removidos das escolas nos Estados Unidos atualmente, obras que não estão disponíveis para milhões de estudantes de mais de 37 dos 50 estados norte-americanos.

A tentativa de censurar obras literárias não é novidade no Brasil, mas não precisamos retornar à Ditadura Militar (responsável pela censura de 500 filmes, 450 peças e 200 livros) para recordar iniciativas semelhantes. Em 2010, ainda no governo Lula (PT), o Conselho Nacional de Educação (CNE) emitiu um parecer recomendando restrições à distribuição do livro “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, em escolas públicas do país por conter passagens que incitam o preconceito contra os negros.

Sim, a cruzada contra obras literárias também já veio da “esquerda”, mas da “esquerda” pós-moderna, que busca adequar palavras e termos de acordo com as pautas identitárias. Então, para não “cancelar” um livro, basta editá-lo, assim “quem antes era chamado de gordo passou a ser tratado como enorme. O termo ‘fêmea’ deu lugar a ‘mulher’. Homens pequenos perderam o gênero e viraram pessoas pequenas”2.

O livro “Abecê da Liberdade”, de José Roberto Torero e Marcus Aurélio Pimenta, foi recolhido pela própria editora, a Companhia das Letras, em 2021, após ser questionado “por mostrar cenas de crianças negras brincando em um navio negreiro” (Folha de S. Paulo, 16/03/2024).

O escritor Santiago Nazarian, autor de “Fé no Inferno” e “Veado Assassino”, assina um artigo interessante, intitulado “Verdadeira censura não é de direita ou esquerda, mas do mercado”, publicado pela Folha de S. Paulo em 16 de março desse ano. Nele, Santiago explica:

“A grande censura, porém, é bem mais silenciosa. No meio da literatura infanto-juvenil, temas, palavras e ideias são previamente vetados há muito tempo. Livros tidos como controversos não são nem mais considerados pelas editoras, porque podem causar atritos com pais e professores e dificultar a aprovação em editais de compra do governo, o que inviabiliza a edição comercialmente.

“Essa controvérsia se dá tanto com conteúdos sensíveis a grupos religiosos (que podem barrar até figuras clássicas da literatura infantil, como bruxas e dragões) quanto com temas que ferem a sensibilidade progressista, como a violência ou a representação exclusiva do modelo familiar clássico.

“(…) Desses livros impedidos de circular, nós nem ficamos sabendo.” (Folha de S. Paulo, 16/03/2024)

São diversas as formas de censura prévias, a partir da contratação de “leitores sensíveis”, que analisam “se certa palavra pode soar ofensiva a homossexuais, se uma ideia pode ecoar mal no movimento negro, se as mulheres vão se incomodar com certa cena, se o livro contém ‘gatilhos’ (conceito tão amplo e tão odioso que, na prática, significa qualquer coisa que possa despertar algo de negativo)”.

O autor explica, por exemplo, que para não correr o risco de perder a monetização, canais do YouTube sobre crimes reais, dedicados a analisar a violência, chegam a alterar algumas grafias (“v1olência”, “est*pro”, “m4t4r”).

Santiago acertadamente diz que “não é uma questão de não assustar as criancinhas, é não assustar os anunciantes”. (destaque nosso)

Essa preocupação mercadológica, inclusive, resultou na alteração das obras de Monteiro Lobato mesmo após o parecer do CNE de 2010 ter sido revisto um ano depois. A família de Lobato (que detém os direitos sobre as obras do autor) decidiu modificar o livro “Reinações de Narizinho”:

Se na edição original a personagem [Tia Nastácia] era a empregada da família, agora ela virou a melhor amiga de Dona Benta. Nas páginas, o avental deu lugar a turbantes e a roupas com estampas étnicas.” (Folha de S. Paulo, 21/05/2023)

O recolhimento de livros, a revisão ou destruição de obras de arte, a perseguição a artistas etc. rememoram diversos momentos na história em que as liberdades democráticas foram atacadas seja por regimes autoritários, como na ditadura instaurada no Brasil após o Golpe de 1964, ou até mesmo nas “democracias”, como foi no período do macartismo nos EUA.

O capitalismo vive a maior crise da história, não se trata de mais uma crise cíclica que logo será superada, é uma crise que “expressa-se não apenas na estagnação das forças produtivas, mas também em uma crise geral da cultura”3. Iniciativas como a de Juliana Maciel e Janaina Venzon buscam condenar obras que, segundo seus defensores, ofendem a moral, a religião, os bons costumes e a “família tradicional”. Esses ataques não devem ser analisados de maneira isolada, mas dentro do contexto de um regime moribundo que, enquanto não for superado por uma revolução, ameaça arrastar consigo a própria civilização para o precipício.

A censura de obras de arte ou literatura é um ataque às liberdades democráticas conquistadas a sangue pela classe trabalhadora ao longo da história. Permitir que um livro seja censurado ou modificado (desconsiderando o contexto histórico em que uma obra é lançada ou subestimando a capacidade de compreensão de seus leitores), abre um precedente perigoso que será usado contra a própria classe trabalhadora e a juventude cedo ou tarde.

Defendemos o conjunto do conhecimento acumulado pela humanidade. A própria história irá julgar se uma obra de arte deve permanecer viva, ser apreciada por novas gerações de leitores ou não. Essa decisão não cabe a uma camada reacionária, barulhenta e obscurantista e não deve atender apenas à necessidade do lucro.

Para que cenas de livros atirados à lata do lixo não ocorram mais, a classe trabalhadora e a juventude devem jogar bolsonaristas, reacionários de plantão e o capitalismo na lata do lixo da história. Socialismo ou barbárie!

1 Integrante do MBL ataca liberdade de expressão e incita preconceito em escola pública em Joinville. Disponível em: <https://www.marxismo.org.br/integrante-do-mbl-ataca-liberdade-de-expressao-e-incita-preconceio-em-escola-publica-em-joinville/>

2 Revisão de livros para excluir termos racistas inflama debate sobre censura. Folha de S. Paulo: 2023. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2023/05/revisao-de-livros-para-excluir-termos-racistas-inflama-debate-no-mercado-editorial.shtml>

3 Manifesto da Internacional Comunista Revolucionária. Disponível em: <https://www.marxismo.org.br/manifesto-da-internacional-comunista-revolucionaria/>