Cisões e expurgos nos primeiros anos do PCB

A construção de um núcleo bolchevique no Brasil desde o início se viu marcada por dificuldades internas e externas. Por um lado, os fundadores do Partido Comunista do Brasil (PCB) eram oriundos principalmente do anarquismo ou do sindicalismo revolucionário e, diferente de países como a Argentina, não havia na época qualquer experiência de construção de uma forte organização socialista no Brasil. Por outro lado, o PCB nasceu no início do processo de degeneração do PC russo e da burocratização da Internacional Comunista (IC).O PCB viu sua fragilidade teórica e organizativa ser esmagada, com a conivência da maioria de sua direção, pela imposição das normas stalinistas. O próprio Astrojildo Pereira, secretário-geral do partido, apontou, em fevereiro de 1929, as fragilidades do PCB ao se referir à “[…] desproporção existente entra a real influência política do Partido e a sua debilidade orgânica. Ainda não aprendemos a consolidar organicamente o êxito de agitação e propaganda que temos alcançado. É que o recrutamento de novos membros se tem feito quase por acaso, segundo um critério puramente individual, sem nenhum plano de conjunto”1.

O partido foi fundado em 1922, a tempo de participar do congresso da IC e solicitar sua filiação como seção da Internacional. Contudo, seu pedido foi negado. Na resolução da IC, afirmou-se que o PCB “não é ainda um verdadeiro Partido Comunista”, na medida em que “conserva restos da ideologia burguesa, sustentados pela presença de elementos da maçonaria e influenciados por preconceitos anarquistas”2. Segundo a resolução, o PCB deveria ser o núcleo que viria a formar “um bom e forte Partido Comunista”3. Em função disso, o congresso aprovou que “provisoriamente, o Partido Comunista do Brasil deve ser aceito na Internacional Comunista como partido simpatizante”4.O PCB foi aceito como membro da IC apenas em 1924, quando o partido começou a se consolidar política e organizativamente.

Contudo, os erros políticos e teóricos foram uma marca ainda em seu início, como o impressionismo em relação aos levantes militares do começo da década. O PCB também construiu uma frente eleitoral com setores da pequena-burguesia, o Bloco Operário e Camponês (BOC). Em 1927, o BOC elegeu um deputado para a Câmara Federal, o médico Azevedo Lima, que não era militante comunista. No ano seguinte, Octávio Brandão e o operário Minervino de Oliveira, militantes do PCB, foram eleitos para a Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Essa política era exaltada na imprensa partidária, onde se afirmava: “Operários, empregados, lavradores, pobres, pequenos funcionários, só o Bloco Operário e Camponês representa os vossos interesses. Dá-lhe o vosso apoio”5.Contudo, essa tática se mostrou bastante contraditória, afinal:

“[…] esse projeto, inspirado nas concepções de etapas no processo revolucionário em voga na IC, previa inicialmente uma democrática revolução pequeno-burguesa, que agruparia os trabalhadores dirigidos por sua vanguarda, o PCB. Por sua vez, a pequena-burguesia teria a sua vanguarda, os chamados ‘tenentes’ e os setores da classe média a eles ligados. Vitoriosa esta, a ela se seguiria a revolução proletária dirigida pelos comunistas e que instalaria um governo dos trabalhadores.” 6

Segundo a análise então defendida pelo partido, impactado pelos desdobramentos das revoltas militares de 1922 e 1924, caberia ao PCB apoiar os revoltosos pequeno-burgueses num processo que almejava derrotar os “agraristas” e levar os “industrialistas” ao controle do Estado. Um passo seguinte, sem previsão exata, seria a tomada do poder pelo proletariado.

Em âmbito internacional, mostravam-se um desastre as ações dos comunistas liderados por Stalin. Em 1928, Trotsky assim analisava as causas das derrotas do proletariado:

“Até 1923, foram as derrotas dos movimentos e das insurreições do pós-guerra, devido, em um primeiro momento, à ausência e, em um segundo momento, à imaturidade e à debilidade dos partidos comunistas. A partir de 1923, a situação se modifica abruptamente. Não temos apenas as derrotas do proletariado, mas as derrotas da política da Internacional Comunista. Os erros dessa política na Alemanha, Inglaterra, China e – em menor medida – em uma série de outros países são tais que é completamente impossível encontrar semelhança em toda a história do Partido Bolchevique: é preciso recorrer à história do menchevismo nos anos de 1905-1917 ou voltar a década atrás.”7

Desde 1924, quando assumiu o controle do aparato do partido, Stalin e seus apoiadores perseguiam as correntes de oposição. Em âmbito internacional, em nome da “bolchevização”, conduziu-se “em toda a sua amplitude a depuração dos elementos dirigentes que, originários da esquerda ou da direita, não se alinham incondicionalmente com a equipe dirigente da Comintern em Moscou”8.Essa ação tinha como objetivo consolidar o controle da burocracia stalinista sobre a IC e seus partidos, para tanto sendo fundamental a atuação das direções dos partidos nacionais. O PCB não passou ileso a isso, conforme apontavam os trotskistas em 1930:

“[…] Nada se transformou. Houve apenas uma simulação de reforma: substituíram alguns pequeno-burgueses por operários de boa-fé que debilmente se deixam manobrar. Formalmente, no papel, e para informar ao Secretariado da IC – dirigem os operários; mas de fato, mexendo os pauzinhos por detrás das cortinas, são os mesmos pequeno-burgueses os que dirigem.”9

Esse processo ocorreu no chamado “terceiro período”, no qual o stalinismo articulou uma “política sectária de isolamento sistemático que seus idealizadores chamam de maneira redondamente equivocada de ‘classe contra classe’”10.Essa política se concretizava num giro abrupto da direção da IC diante da desastrosa posição adotada na Revolução Chinesa, onde a aliança dos comunistas com a burguesia terminou com a repressão e a perseguição contra os trabalhadores insurretos em 1927.

No Brasil, a partir da segunda metade da década de 1920, observa-se o aprofundamento da disciplina partidária, o que levaria à cisão ou desligamento de militantes e mesmo dirigentes do partido. Em carta aos membros do PCB, escrita em dezembro de 1930, Aristides Lobo relata que foi expulsa uma célula “pelo simples fato de que seus membros, na maioria operários, ‘buscaram’ expor as suas opiniões ao Partido”11.Em documento da IC publicado no jornal A Classe Operária de abril de 1930, apontava-se uma série de problemas na política e na organização do PCB. No documento afirmava-se:

“Diversos fatos indicam que, no seio do Partido Comunista do Brasil, muito longe estão ainda de compreender a importância da hegemonia do proletariado na revolução democrático-burguesa e a necessidade absoluta de um partido ‘independente’ do proletariado para realizá-la. No partido, prega-se abertamente a teoria da ‘revolução democrática pequeno-burguesa’, sob cuja cobertura ‘o proletariado poderia preparar-se para a conquista do poder’ (camarada Brandão).”12

O documento criticava a política de aproximação a setores da chamada “pequena-burguesia”, especialmente os tenentistas. Criticava-se a “direitização” das atividades do partido, sua política de alianças com “elementos da pequena-burguesia”, a exemplo do BOC, o que estaria prejudicando “sua independência como condutor da classe operária”13.No III Congresso do PCB, realizado entre dezembro de 1928 e janeiro de 1929, essas posições foram revistas, reavaliando o papel da pequena-burguesia na revolução democrático-burguesa. Embora o partido mantivesse essa caracterização, passava a adotar a avaliação de que a única classe historicamente habilitada para realizar tal tarefa seria o proletariado. O partido deveria se diferenciar da pequena-burguesia, ou, mais precisamente, dos setores identificados como tenentistas.

O partido, assim, mudava sua linha política. A política de “revolução por etapas”, concretizada por meio do BOC, era criticada no documento da IC de 1930:

“O Bloco Operário e Camponês não representa, no Brasil, um partido operário e camponês. Ele não tem nenhuma ligação com a massa camponesa e com o proletariado agrícola. De fato, o Bloco Operário e camponês transformou-se num segundo partido operário, que não faz uma política revolucionária consequente.“14

Nesse sentido, além de modificar sua política, a IC apontava para a necessidade dos expurgos em suas fileiras. No documento propunha-se:

O partido deve depurar resolutamente os quadros dirigentes de todos os elementos liquidacionistas, oportunistas de direita, que se arrastam a reboque da massa e escolher a composição de órgãos dirigentes de modo a assegurar a realização consequente e firme da política proletária revolucionária.15

O PCB buscou implantar as orientações, inclusive a desarticulação do BOC, além de qualquer tática de frente única. Contudo, diante do golpe de Getúlio Vargas e do crescimento de organizações fascistas, o que se colocava urgente para o período era a necessidade de fortalecer a frente única dos trabalhadores. O PCB, expressando a política stalinista do “terceiro período” da IC, se negava a adotar essa tática. Diante da política do PCB, influenciado pelo sectarismo da IC, os trotskistas defendiam em julho de 1932:

“Especialmente na realização da frente única, o Partido não deve opor os objetivos finais do comunismo aos interesses imediatos do proletariado. O que se torna necessário, antes de tudo, é reunir todas as organizações operárias EXISTENTES para lutar por objetivos comuns, bem definidos e antecipadamente aceitos por essas organizações.”16

Em outro âmbito, no que se refere ao desligamento de dirigentes que não seriam considerados de confiança pela direção internacional, foi publicado no jornal A Classe Operária, no mês de novembro de 1932, um longo artigo no qual se anunciava que o Comitê Central havia votado “por unanimidade uma resolução expulsando Astrojildo Pereira como traidor e renegado da causa do proletariado”17. O texto afirma que o ex-secretário-geral do partido teria “passado inteiramente para o outro lado da barricada, para o lado dos nossos inimigos de classe”18.O partido deveria buscar “demarcar as fronteiras de classe na luta revolucionária”, utilizando adjetivos como “indivisível”, “monolítico”, “centralizado”, “bolchevizado”19. Entre os expulsos estavam Minervino de Oliveira e Everardo Dias, que tinham sido candidatos pelo BOC, e Cristiano Cordeiro, um dos delegados do congresso de fundação do partido em 1922.

Esse processo de exclusão da direção abriu espaço para a integração de Luís Carlos Prestes e outros militares oriundos do tenentismo. O processo redundou na chamada Intentona Comunista, tentativa de levante militar liderado pelo PCB em 1935. O levante se mostrou um grande fracasso, especialmente por conta da completa ausência de apoio entre a população, e serviu para o aumento da repressão contra as organizações de esquerda e os sindicatos. No balanço desse processo veio um novo expurgo, agora por conta da defesa que alguns militantes, especialmente de São Paulo, fizeram sobre a necessidade da frente única para derrotar os fascistas e suas versões locais, como o integralismo no Brasil. No ano seguinte, em âmbito internacional, o stalinismo dá um novo giro em sua política, agora à direita, passando a defender blocos de unidade dos partidos operários com a burguesia, conhecidos historicamente como “frentes populares”.

No PCB, em seus primeiros anos, observa-se, em primeiro lugar, uma fragilidade política e teórica oriunda da pouca penetração do marxismo nos primeiros anos de organização do movimento operário no Brasil. Em segundo lugar, a influência da política stalinista, que levou o partido a crises, cisões e mesmo ao expurgo de seus militantes e quadro dirigentes. Nesse contexto, apesar de todas as dificuldades, coube ao conjunto de militantes organizados em torno das ideias trotskistas manter firmes os princípios do marxismo e de construção de uma organização revolucionária, carregando uma perspectiva saudável de construção de uma organização baseada nos princípios do bolchevismo.

REFERÊNCIAS:

1 O III Congresso (dezembro de 1928 – janeiro de 1929) [fevereiro de 1929]. In: Carone, Edgard (org.). O PCB (1922-1943). São Paulo: Difel, 1982, p. 77.

2 Resolução sobre o Partido Comunista Brasileiro. In: Carone, Edgard (org.). O PCB (1922-1943). São Paulo: Difel, 1982, p. 33-4.

3 Resolução sobre o Partido Comunista Brasileiro. In: Carone, Edgard (org.). O PCB (1922-1943). São Paulo: Difel, 1982, p. 34.

4 Resolução sobre o Partido Comunista Brasileiro. In: Carone, Edgard (org.). O PCB (1922-1943). São Paulo: Difel, 1982, p. 34.

5 Fackel. O partido “democrático” do Rio é um partido dos grandes exploradores! A Classe Operária, Rio de Janeiro, Segunda Fase, Nº 2, 5 de maio de 1928, p. 2.

6 DainisKarepovs. A classe operária vai ao parlamento: o bloco operário e camponês no Brasil. Alameda: São Paulo, 2006, p. 170-1.

7 Leon Trotsky. Stalin, o grande organizador de derrotas. São Paulo: Iskra, 2020, p. 41.

8 Broué, Pierre. História da Internacional Comunista (1919-1943). São Paulo: Sundermann, 2007 t. 1, p. 479.

9 Aristides Lobo. Carta aberta aos membros do Partido Comunista. In: Fúlvio Abramo; DainisKarepovs. Na contracorrente da História: documentos do trotskismo brasileiro (1930-1940). 2ª ed. São Paulo: Sundermann, 2015, p. 50.

10 Broué, Pierre. História da Internacional Comunista (1919-1943). São Paulo: Sundermann, 2007 t. 1, p. 560-561.

11 Aristides Lobo. Carta aberta aos membros do Partido Comunista. In: Fúlvio Abramo; DainisKarepovs. Na contracorrente da História: documentos do trotskismo brasileiro (1930-1940). 2ª ed. São Paulo: Sundermann, 2015, p. 49.

12 Internacional Comunista. Resolução da Internacional Comunista sobre a situação brasileira. A Classe Operária, Rio de Janeiro, Segunda Fase, Nº 89, 17 de abril de 1930, p. 3.

13 Marques Neto, José Castilho. Solidão revolucionária: Mário Pedrosa e as origens do trotskismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 124.

14 Internacional Comunista. Resolução da Internacional Comunista sobre a situação brasileira. A Classe Operária, Rio de Janeiro, Segunda Fase, Nº 89, 17 de abril de 1930, p. 3.

15 Internacional Comunista, Resolução da Internacional Comunista sobre a situação brasileira. A Classe Operária, Rio de Janeiro, Segunda Fase, Nº 89, 17 de abril de 1930, p. 3.

16 Liga Comunista. Carta aos camaradas do Partido Comunista. In: Fúlvio Abramo; DainisKarepovs. Na contracorrente da História: documentos do trotskismo brasileiro (1930-1940). 2ª ed. São Paulo: Sundermann, 2015, p. 109.

17 BRADO. O astrojildismo e a luta pela formação do partido do proletariado. A Classe Operária, Rio de Janeiro, Ano VIII, Nº 145, nov. 1932, p. 2.

18 BRADO. O astrojildismo e a luta pela formação do partido do proletariado. A Classe Operária, Rio de Janeiro, Ano VIII, Nº 145, nov. 1932, p. 2.

19 BRADO. O astrojildismo e a luta pela formação do partido do proletariado. A Classe Operária, Rio de Janeiro, Ano VIII, Nº 145, nov. 1932, p. 2.