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Sistema capitalista em colapso

O coronavírus se tornou o catalizador de um crash nas bolsas de valores, com quedas drásticas em todos os lugares na “Segunda-Feira Negra” [Black Monday]. A recente epidemia é um acidente histórico que expôs a profunda enfermidade do sistema capitalista, que, a qualquer momento, corre o risco de cair em uma recessão ainda mais profunda do que a de 2008. Em artigo publicado no dia 9 de março, Rob Sewell, editor de Socialist Appeal, explica.

“As pessoas estão ficando assustadas”, disse Andrew Sullivan, diretor da corretora de Hong Kong Pearl Bridge Partners, enquanto o sistema capitalista enfrenta um colapso econômico.

Esta é a Segunda-Feira Negra mais uma vez. Os mercados de ações de todo o mundo, de Londres a Tóquio, estão em queda livre. Tudo está apontando para uma repetição de 2008, mas em nível superior. Em outras palavras, estamos à beira de uma profunda recessão mundial.

“Seus problemas econômicos se espalharão exatamente como o vírus”, declara Ray Dalio, o bilionário capitalista, em um comentário perspicaz.

As ações europeias caíram depois da abertura de hoje, com o FTSE 100 de Londres caindo 7,7% e a caminho para o pior dia desde a crise econômica de 2008-09. O S&P 500 de Wall Street caiu 7%, provocando uma parada comercial de 15 minutos, deixando-o a caminho da maior queda desde a crise financeira de 2008. O Dax da Alemanha e o Cac 40 da França caíram mais de 6% enquanto o índice Stoxx Europe 600, que rastreia as maiores empresas da região, deslizou quase 8%. O petróleo bruto estava a caminho de sua maior queda de um dia desde a Guerra do Golfo em 1991.

O crescimento da China está entrando em colapso, caindo de um crescimento de 6% a 2% e entrando em território negativo pela primeira vez desde 1976. As exportações entraram em colapso e as importações caíram. Em fevereiro, a indústria manufatureira apresentou seu maior declínio já registrado. Dados recentes do Financial Times situam a utilização econômica abaixo dos 20%. No passado, a China era a força-motriz do capitalismo mundial. Agora, isso se reverteu, com consequências calamitosas. A Europa está caminhando para a recessão, como o Japão. As “economias emergentes” enfrentam uma contração massiva.

A OCDE já alertou que o crescimento mundial poderia cair para 1,5%, mas mesmo isso parece otimista.

O pior para a economia ainda está por vir nos próximos meses”, disse Joachim Fels, consultor econômico global do administrador de ativos Pimco. Ele adicionou que uma recessão nos EUA e na zona do euro no primeiro semestre do ano era agora “uma possibilidade clara” e que o Japão já estava em uma “muito provavelmente”.

O Sr. Fels não está enxergando muito bem. A crise está se desenvolvendo diante de nossos próprios olhos. Todas as empresas zumbis mantidas vivas pelas taxas de juros baixíssimas estão prestes a falir.

Mais preciso é o comentário do analista de Gavekal Research, Tom Holland. “Se você já se perguntou o que aconteceria se alguém jogasse uma granada de mão em uma matança, agora você sabe. Não é bonito”, disse ele.

Sistema doente

A epidemia de coronavírus não é a causa da crise, mas é o gatilho que desencadeou uma reação econômica em cadeia. Isso intensificará à medida que cada vez mais setores forem apanhados pela crise. Será como o colapso nuclear em Chernobyl, onde, uma vez iniciado o processo, se tornou imparável.

O vírus age como um detonador da mesma forma como a crise do petróleo de 1973 precipitou a recessão mundial de 1974, ou o estouro da bolha desencadeou a recessão de 2000-01, ou o colapso das hipotecas subprime detonou a recessão de 2008-09. Até mesmo a recessão de 1929-33 foi precipitada pelo Crash de Wall Street, um produto da especulação anterior. Cada um a seu modo agiu como o catalizador de uma profunda crise econômica, que já estava se formando. Qualquer coisa a poderia ter desencadeado, qualquer acidente poderia ter desempenhado esse papel.

A epidemia de coronavírus não é a causa da crise, mas é um gatilho que desencadeou uma reação econômica em cadeia / Foto: Pixabay

Todas as medidas que os bancos centrais adotaram para prolongar a chamada “recuperação” – a mais longa recuperação já registrada – se transformarão em seu oposto. Basicamente, foi gasta toda a munição para adiar a próxima recessão. Mas quando a recessão finalmente chegar será pior do que no passado. É o que está acontecendo agora.

O nível de endividamento dos governos em todo o mundo aumentou desde a crise de 2008, alcançando níveis nunca vistos antes em tempos de paz. Uma análise do Deutsche Bank revela que as principais empresas do mundo têm níveis astronômicos de dívida, os mais altos durante os últimos 150 anos e que se tornaram insustentáveis.

De acordo com o Financial Times, as estimativas sugerem que os níveis mundiais de endividamento agora excedem os US$ 250 trilhões, o equivalente a 320% do PIB mundial, metade dos quais no Japão, na China e nos EUA. Isso é um castelo de cartas prestes a entrar em colapso. Agora enfrentam a perspectiva de ter de realizar resgates massivos, o que não poderia ter ocorrido em pior momento.

Por suas ações agressivas durante a última década, os bancos centrais se viram efetivamente encurralados a continuar intervindo continuamente no mercado de bônus governamentais. Estão indiscutivelmente além do ponto de retorno”, disse Jim Reid do Deutsche.

Com taxas de juros próximas a zero, alguns bancos estão em graves dificuldades neste momento, à medida que as margens de lucro são comprimidas. O Fed [Sistema de Reserva Federal – sistema de bancos centrais dos Estados Unidos] acabou de reduzir sua taxa e outros provavelmente o seguirão, mas isso não fará nenhuma diferença para a economia em geral e prejudicará ainda mais alguns bancos. Mas eles não têm nenhuma alternativa. Enquanto J P Morgan está ganhando muito dinheiro, outros, como o Bank of America, com sua base de depósitos baratos, perderam US$ 80 bilhões em capitalização de mercado em apenas poucas semanas. Silicon Valley Bank perdeu mais de um terço de seu valor. Há 5.200 bancos, pequenos e médios, nos EUA que estão prestes a serem atingidos gravemente, e logo serão engolidos pelos grandes bancos.

A expansão da globalização, que beneficiou o capitalismo intensificando o comércio mundial, agora está sendo empurrada para trás. As extensas cadeias de suprimento, as linhas de produção just-in-time, enfrentam grandes interrupções. Todos os fatores que promoveram o auge estão, dialeticamente, se transformando em seu contrário.

De acordo com Resilinc, um grupo da Califórnia que rastreia milhões de peças para mapear a cadeia de suprimentos, descobriu-se que cerca de 1.800 componentes fabricados foram produzidos nas áreas de quarentena da China.

“O mais assustador que vimos é que o maior número de peças [feitas em Hubei e no seu entorno] é de tampas e resistores – coisas pequenas com as quais ninguém se importa – além de componentes térmicos, plásticos e resinas, e chapas de metal”, disse Bindiya Vakil, executiva-chefe de Resilinc.

Esse é o equivalente moderno de se perder uma chave inglesa na obra. Ou do bater de asas da borboleta que cria um furacão no outro lado do mundo.

Ela advertiu que “nenhuma cadeia de suprimento sairá incólume” e continuou prevendo que 70% das empresas manufatureiras globais poderiam ficar isoladas do suprimento de peças incidentais. A Ford esteve nessa posição em 2011 e foi obrigada, junto a outras, a fechar fábricas.

Como disse Peter Hasenkamp, que esteve envolvido no plano da cadeia de suprimento do Tesla Modelo S: “São necessárias 2.500 peças para a construção de um carro, mas apenas uma para não o construir”.

Colapso

Com esse colapso econômico, agravado pelo coronavírus, que ameaça se transformar em pandemia, os bancos centrais e governos parecem desamparados.

Ray Dalio, o bilionário e co-presidente de BridgeWater Associates, emitiu uma advertência contundente, mas realista. “Relembrando os períodos da história em que essa combinação de circunstâncias ocorreu”, diz ele sombriamente, “a última vez foi nos anos 1930”.

Qualquer pessoa que tenha conhecimento e seja franco lhe dirá que o impacto econômico negativo do surto de coronavírus provavelmente será grande, e que a política monetária será de pouca utilidade para combatê-lo, e que a coordenação entre os líderes políticos e os banqueiros centrais é tanto essencial quanto improvável”, escreveu ele.

Embora o surgimento do coronavírus e o choque econômico que advirá dele, sejam uma surpresa, várias coisas ficaram óbvias durante algum tempo… ficou claro que algum dia a desaceleração econômica viria a partir de um gatilho ou outro” (Financial Times, 9/3/20).

O que ele diz é absolutamente correto. Essa crise vai ser grande. Da mesma escala da crise dos anos 1930. Mas as políticas que os burgueses normalmente empregariam para lidar com ela são agora, em grande parte, inúteis. A situação mundial nunca foi tão precária. Além disso, o coronavírus é um “acidente”, e deve ser considerado apenas como um “gatilho”, pois a crise econômica era inevitável em certo momento.

Ele continua: “Agora imagine-se somando os dois choques, o econômico e o de saúde, causados pelo surto, e para onde isso levará. Imagine muitas empresas sofrendo perdas de receita debilitantes, alguma muito endividadas por causa do dinheiro persistentemente barato e outros incentivos para empréstimo, que as forçarão a cortar o pagamento de seus empregados e deixar de pagar suas dívidas”.

Em outras palavras, as empresas reduzirão os salários e não pagarão suas dívidas. Haverá falências generalizadas, que terão mais um efeito adicional. Eles têm medo de que, com as empresas deixando de pagar suas dívidas, os mercados da dívida corporativa, onde os níveis de “alavancagem” e de endividamento geral estão subindo, poderiam facilmente se recuperar. “Dificuldades financeiras que pioram a crise são o maior risco”, disse Adam Slater, economista-chefe de Oxford Economics.

Enquanto o Fed reduziu os juros em pequena quantia e provavelmente os levou para mais perto do zero, o Banco Central Europeu (BCE) está tratando de se atualizar. Depois de dizer há poucas semanas que as perspectivas da economia europeia pareciam prometedoras, eles agora enfrentam uma recessão, com um terço da população da Itália bloqueada. As economias da França e da Itália encolheram no último trimestre do ano passado, enquanto a da Alemanha estancou. Para a economia da zona do euro, que com 1,2% em 2019, já havia desacelerado para sua menor taxa de crescimento em sete anos, a crise dificilmente poderia ser menos oportuna.

“A pergunta mais valiosa é: quanto tempo durará?” disse Jörg Asmussen, ex-economista-chefe do BCE. “É temporário? Quantos meses antes de uma recuperação em forma de V começar?”

A esperança é eterna no coração humano. Eles esperam que, depois de alguns poucos meses, tudo voltará ao normal. Dada a escala da crise, e estamos vendo só o seu início, muitos estão pensando em nove meses ou um ano. Mas estamos navegando em águas desconhecidas.

Christine Lagarde, chefe do BCE, está entalada entre a espada e a parede. Diferentemente do Fed, o BCE manteve a taxa de juros em zero e agora ficou sem opções. Na verdade, reduziu a taxa já em setembro para um recorde de menos 0,5%. Isso equivale efetivamente a pagar ao banco para guardar o seu dinheiro!

A própria Lagarde disse recentemente que isso “reduziu significativamente o alcance” de se reduzir ainda mais a taxa. Sério? E essas pessoas são os principais estrategistas do capital. Não é de estranhar que tenha havido desacordos abertos no BCE sobre a política a seguir. Quando estás na borda de um vulcão em erupção, é difícil pensar com clareza.

Os mercados financeiros acreditam que o BCE se verá obrigado a agir. Levaram em conta um novo corte miserável da taxa a menos 0,6%. Mas isso não os levará a parte alguma. Essa política desesperada é como tomar esteroides, que podem ser altamente efetivos em pequenas doses, mas não no longo prazo, já que debilitam o sistema. Em poucas palavras, as drogas não funcionam.

Estão falando em se centrar nos empréstimos às empresas, mas isso é como enfrentar uma praga de gafanhotos com um mata-moscas. Isso revela o quão impotentes se sentem à frente dessa crise do capitalismo.

Isso parece uma repetição da crise de 2008, mas possivelmente mais profunda. Naquele momento, lograram resgatar o sistema capitalista e evitar uma nova depressão. Isso também foi graças aos recursos colossais injetados na economia chinesa, que mantiveram flutuando a economia mundial.

Sem saída

Hoje as tensões comerciais já aumentaram e uma guerra comercial incipiente está ocorrendo entre a China e os EUA, apesar de um acordo frágil; e entre os EUA e a Europa. Com o colapso da economia mundial e do comércio mundial, as potências capitalistas buscarão escapar de seus problemas impondo-os a outros. Isso pode levar à adoção de uma política de empobrecer o vizinho, assim como as desvalorizações competitivas. Foi isso o que sucedeu em 1930, e mais a adoção nos EUA da Lei Alfandegária Smoot-Hawley e a abertura de uma guerra comercial. Isso foi desastroso e terminou na depressão mundial da década de 1930.

Isso pode acontecer facilmente agora com Trump na Casa Branca, que adotou uma política de “América Primeiro”. Seus instintos se alinham com o protecionismo, que pode converter facilmente uma recessão numa depressão. Uma vez iniciada, será extremamente difícil detê-la. Será uma reação em cadeia, onde outros países também adotarão o protecionismo para salvaguardar seus interesses.

Já estamos presenciando uma guerra comercial (de preços) entre a Arábia Saudita e a Rússia, e entre a Rússia e os EUA pelo petróleo, onde o preço do petróleo bruto caiu de US$ 65/barril a US$ 30/barril hoje. Foi a maior queda de preços desde a Guerra do Golfo em 1991, mas pode cair muito mais, possivelmente a 20 dólares. Estamos numa trajetória descendente muito mais aguda.

Existe um debate entre os economistas burgueses sobre que tipo de crise temos, uma crise de oferta, uma crise de demanda, simplesmente um choque financeiro ou alguma combinação dos três?

São incapazes de entender que esta é uma crise clássica do capitalismo. Foram criados e educados no entendimento de que o capitalismo nunca pode estar sujeito a crises profundas. Não aprenderam nada da crise de 2008: a crise mais profunda que o capitalismo enfrentou em sua história.

Martin Wolf, economista-chefe de Financial Times em meados de 2009, resumiu o seu dilema:

“Hoje, estão lidando com a recessão mais profunda desde a década de 1930, com um sistema bancário assistido vitalmente pelo governo e com o risco de deflação. Como podem as coisas terem ido tão mal?”

E continuou: “A maioria de nós, eu entre eles, pensávamos que finalmente havíamos encontrado o Santo Graal. Agora, sabemos que foi uma miragem” (FT, 5/6/09).

Crise inevitável

Foi Karl Marx quem descobriu as leis contraditórias da economia capitalista, o que é um anátema para os economistas burgueses. Estão influídos pelo economista francês, Jean Baptiste Say, que defendeu a ideia do equilíbrio econômico sob o capitalismo. Mas não existe tal equilíbrio.

Os economistas atuais, como David Ricardo antes deles, “não podem admitir que o modo de produção burguês contém em si mesmo uma barreira para o livre desenvolvimento das forças produtivas, uma barreira que sai à superfície nas crises e, em particular, na superprodução – o fenômeno básico das crises”, como expressou Marx (Teorias da Mais-Valia, parte 2, p. 527-528).

O desenvolvimento do capitalismo contém dentro de si as sementes de uma recessão. Podem manter o sistema capitalista funcionando através do crédito e outros meios artificiais, mas, mais cedo ou mais tarde, alcança os seus limites. “A banca e o crédito se converteram no meio mais poderoso para levar a produção capitalista além de seus próprios limites”, explicou Marx. No entanto, agregou de forma contundente, “e em um dos veículos mais efetivos da crise e do logro” (O Capital, vol. 3, p.593).

Como Marx explicou, a crise está embutida no sistema capitalista: quedas e turbulência social são inevitáveis / Foto: Domínio Público

Mais uma vez, ele explica: “Em um sistema de produção onde toda a interconexão do processo de reprodução se baseia no crédito, evidentemente deve explodir uma crise se o crédito é retirado repentinamente e só é aceito o pagamento em espécie. À primeira vista, portanto, toda a crise se apresenta simplesmente como uma crise creditícia e monetária” (O Capital, vol. 3, p. 621).

As forças produtivas sob o capitalismo superaram o mercado. Há uma enorme reserva de automóveis, aço, alumínio e outros produtos básicos, e há inclusive mais fábricas que estão inativas ou que funcionam lentamente porque os livros de encomendas estão vazios. Os economistas burgueses chamam isso de “excesso de capacidade”. Mas é um reflexo da superprodução e do fato de que o sistema alcançou os seus limites. É por essa razão que só podem utilizar 80% da capacidade em um auge e só 70% em uma recessão. Em novembro de 2019, a utilização da capacidade nas manufaturas dos EUA foi de 75,1%. Na China, a utilização industrial foi de 76,1% no terceiro trimestre de 2019, o que reflete um excesso de capacidade generalizado mesmo em uma “recuperação”.

Isso é um reflexo de uma crise orgânica do sistema capitalista. A propriedade privada e o Estado-nação se converteram em barreiras absolutas para o desenvolvimento da sociedade. A crise no capitalismo emerge quando o sistema alcança os seus limites. Segundo Marx, a barreira para o desenvolvimento do capital é o próprio capital. A classe trabalhadora não pode comprar tudo o que ela produz. Se bem os capitalistas podem superar essa contradição lançando a mais-valia no investimento de capital, isso aumenta a capacidade produtiva e conduz a uma maior produção. O mercado não pode absorver tudo isso indefinidamente e em certo ponto há uma crise de superprodução.

A base da crise capitalista se estabelece no período anterior. No entanto, para que ocorra é necessário um “acidente” que empurre o sistema ao seu limite. Foi isso o que ocorreu agora. Todos os fatores que promoveram o auge, agora se unem para impulsionar a recessão, mesmo uma depressão. Dado o material inflamável que existe em todo o mundo, essa depressão pode ser devastadora.

Tal cenário destroçará governos em todos os cantos. Tentarão fazer que a classe trabalhadora pague pela crise, como em 2008-20, com um período de austeridade. No entanto, a classe trabalhadora lutará. Mais que nunca, a questão da derrubada do capitalismo entrará na mente das massas. Os movimentos revolucionários estarão na ordem do dia.

TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.

PUBLICADO EM MARXIST.COM