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Os estados operários depois da Segunda Guerra Mundial

Artigo publicado no jornal Foice&Martelo Especial nº 14, de 03 de setembro de 2020. CONFIRA A EDIÇÃO COMPLETA.

As décadas posteriores ao fim da Segunda Guerra Mundial foram marcadas por processos revolucionários em todo o mundo. Muitas dessas revoluções foram derrotadas, em especial por conta da traição de suas direções, como na Espanha e na França, na década de 1930, por parte do stalinismo, e na Bolívia e no Ceilão, nas décadas de 1950 e 1960, onde os trotskistas tiveram condições de tomar o poder.

Em outros processos, mesmo tendo direções que se reivindicam de esquerda ou mesmo socialistas, processos vitoriosos deram origem a governos burgueses, como as lutas de libertação nacional na África e na Ásia ou a Revolução Sandinista na Nicarágua. Existe também o caso dos países que foram ocupados militarmente pela União Soviética, como Polônia e Tchecoslováquia, onde o stalinismo tentou construir as chamadas “democracias populares” (ou seja, governos de colaboração de classes), onde a pressão do imperialismo e a luta dos trabalhadores destes países impuseram a expropriação da burguesia. Há também processos em que a organização e a luta dos trabalhadores levaram à expropriação da burguesia e à construção de regimes políticos liderados por partidos comunistas, como em Cuba e na China.

Uma das marcas mais importantes desses processos certamente passa pela hegemonia stalinista na esquerda em âmbito mundial. Em muitos países imperialistas o Partido Comunista teve influência considerável. Na França e na Itália, os regimes burgueses só se mantiveram em virtude do apoio direto dos PCs. Na Inglaterra, por outro lado, o Partido Trabalhista assumiu o governo através das eleições e manteve o regime burguês. Em todos estes países, para evitar a revolução, a burguesia foi obrigada a fazer concessões em torno dos direitos dos trabalhadores, no que ficou conhecido como “Estados de Bem Estar Social”, e que estão sendo progressivamente desmontados desde o final da década de 1980.

O processo de conciliação com as burguesias evidenciou-se também nas lutas anticoloniais, ao apoiar os novos governos como parte de uma “revolução por etapas” que deveria primeiro consolidar o capitalismo e deixar a luta pelo socialismo para um futuro distante. Contudo, essa hegemonia stalinista se deu de forma mais marcante principalmente nos países pretensamente socialistas, com seus regimes burocráticos e autoritários, que serviram para manter os interesses políticos e materiais da camarilha governante. Cumpriram, além disso, o papel de estagnar a revolução mundial, procurando conter as lutas dos trabalhadores ou, quando isso não era possível, controlar esses processos de forma rígida e burocrática.

Na União Soviética a revolução foi liderada por um partido operário e o regime nascido desse processo teve os sovietes como principal força, ou seja, tratava-se de um poder que se sustentava na permanente organização e mobilização dos trabalhadores. Com a degeneração do partido e as dificuldades provocadas pelo enfrentamento com o imperialismo, se constituiu uma camarilha que passou a controlar o poder dos sovietes com métodos burocráticos e por meio do terror, liquidando a democracia operária existente nos primeiros anos da revolução. Com isso, consolidou-se um Estado operário que, a despeito de ter suas bases na economia planificada nascida da expropriação da burguesia, não avançou para o socialismo.

Para a burocracia governante na União Soviética, o fundamental passava pela defesa de seus interesses materiais, evitando ameaças de qualquer tipo, fossem de oposição interna ou de atritos com o imperialismo. Produto disso foi o pacto de não agressão assinado com a Alemanha, governada por Hitler, em 1939. Fazem parte disso também a política traidora dos partidos comunistas em diversos países, como na Espanha e na França, na década de 1930, promovendo todo o tido de ações para enterrar a revolução e manter a ordem burguesa, por meio principalmente da tática de frente popular. Essa é a gênese da política de “coexistência pacífica”, que veio a ser a marca da política stalinista nas décadas seguintes.

Com o fim da Segundo Guerra, embora tenha sido vendida a ideia de que a democracia burguesa foi vitoriosa, são os trabalhadores que se colocaram como destaque. Centrais na derrota dos nazistas e de seus aliados, seja pela participação em exércitos regulares, pela organização de greves contra a ocupação de aliados da Alemanha ou mesmo na participação de milícias, os trabalhadores de diversos países entenderam que não caberia a eles deixar que suas burguesias governassem. Contudo, para a burocracia, respeitando os termos dos acordos de Yalta e Potsdam, os trabalhadores não poderiam seguir a sua própria dinâmica de luta, revolução e tomada do poder.

Depois da Segunda Guerra Mundial, em diversos países se deram lutas com as mais variadas perspectivas políticas, com destaque para as de caráter anticolonial. No bojo desse processo, os trabalhadores tomaram o poder em países como China (1949) e Cuba (1959). Em países como Iugoslávia e Grécia os trabalhadores procuraram manter sua organização e mobilização, por meio de suas milícias, mesmo depois da derrota do nazismo, mas sem contar com o efetivo apoio de Stalin e da União Soviética. Esses processos mostraram que direções pequeno burguesas, inclusive stalinistas, mesmo que contra a sua vontade, foram forçados a ir mais além do que sua perspectiva reformista permitia, diante da mobilização dos trabalhadores.

Em 1949, o Partido Comunista Chinês iniciou a reconstrução da sociedade chinesa, após a vitória definitiva sobre o Kuomintang, um partido burguês subordinado ao imperialismo e que havia sido considerado “progressista” por Stalin. Inicialmente, seguindo a linha de Moscou, Mao Tsé-Tung planejava erguer seu regime aliado à burguesia local, chegando a dedicar a ela uma das cinco estrelas da bandeira do novo país. Contudo, a hostilidade da classe inimiga o forçou a expropriar toda a forma de grande propriedade privada.

Em 1959, em Cuba, após anos de luta ferrenha contra o regime ditatorial de Fulgencio Batista, o movimento guerrilheiro liderado por Fidel Castro e Che Guevara – um partido pequeno burguês nacionalista, apoiado por um amplo movimento de greves de massa – tomou o poder. Inicialmente, o novo governo planejava realizar apenas reformas pontuais, que em nada alteravam as estruturas da sociedade cubana. Somente depois de atritos com os EUA, que culminou com a tentativa de invasão da Baía dos Porcos em 1961, que Fidel expropriou toda a propriedade dos imperialistas e seus sócios locais.

Nesses e em outros processos estiveram à frente das lutas organizações burocratizadas que não expressavam a democracia operária defendida pelos bolcheviques em 1917. O partido chinês era ferrenhamente controlado por uma burocracia que se espelhava em Moscou, ou seja, um partido sem democracia interna e com um braço militar, e em Cuba a revolução foi liderada por uma guerrilha, ou seja, uma organização militarmente hierarquizada. O fato é que essas direções obviamente deram origem a regimes políticos autoritários, burocráticos e voltados para seus próprios interesses, não havendo espaço para a participação ativa dos trabalhadores no controle do Estado. Os estados operários surgidos depois da Segundo Guerra nasceram burocratizados desde o início.

Em âmbito internacional, apesar da propaganda de que seria um “mundo socialista”, tratava-se de uma rede de burocratas defendendo seus próprios interesses políticos e materiais. Como consequência, ao colocar seus próprios interesses à frente de qualquer coisa, se deram disputas ou mesmo cisões, em especial por conta do controle que buscava exercer Moscou. Nesse processo a China se aproximou dos países autodenominados “não alinhados”, ou seja, nações nascidas da vitória das lutas anticoloniais ou países que buscavam escapar da disputa bipolar da chamada “guerra fria”, realizando inclusive reuniões internacionais, na década de 1950.

Contudo, para as burocracias governantes desses países o grande problema era a oposição interna. Esses regimes foram marcados pela perseguição a dissidentes políticos, pela ausência de espaços de discussão pública, pela limitação dos espaços de imprensa e por um ferrenho controle interno nos partidos governantes. O produto da resistência a esses processos autoritários foram as rebeliões e revoluções, que reclamavam um verdadeiro socialismo, sendo esmagadas na Hungria (1956), em Berlim (1953), na Polônia (1956), na Tchecoslováquia (1968) e, novamente, na Polônia (1970).

Esses processos expressaram a necessidade da revolução política, defendida por Trotsky, na discussão sobre a União Soviética. Trotsky afirmava, no Programa de Transição:

“ou a burocracia, tornando-se cada vez mais o órgão da burguesia mundial no Estado operário, derrubará as novas formas de propriedade e lançará o país de volta ao capitalismo, ou a classe operária destruirá a burocracia e abrirá uma saída em direção ao socialismo”.

Os trabalhadores, com vistas a defender as conquistas da revolução e da economia planificada, deveriam derrubar a burocracia governante e construir um poder baseado em sua auto-organização e mobilização permanente, ou seja, um socialismo que fosse concreto e não mera propagando das burocracias governantes. Caso essa revolução política não acontecesse, mantendo-se um regime de transição que oscilava entre a defesa da coexistência com o imperialismo e o enfraquecimento das lutas dos trabalhadores nos demais países, os Estados operários estavam fadados a caminhar para a restauração capitalista.