Sobre as cartas do Estado de Direito e quem luta pela democracia no capitalismo

Os meios de comunicação burgueses estão animados com a “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!”. O documento divulgado em 26 de julho pela Faculdade de Direito da USP ruma para 900 mil adesões virtuais. Entre estudantes, professores, advogados, intelectuais e artistas se misturam banqueiros, operadores financeiros, ex-ministros do STF e políticos burgueses. Outras cartas também passaram a rodar o cenário nacional, como a intitulada “Em Defesa da Democracia e da Justiça” e impulsionada pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Por todo o país, atos foram convocados para este dia 11 com o fim de repercutir seu conteúdo.

Ambas as cartas contaram com a adesão, desde o primeiro momento, de várias centrais sindicais, entre as quais a CUT. Ato contínuo, a UNE também agregou-se à lista de apoiadores. As grandes organizações dos trabalhadores e da juventude estão em campanha para colher assinaturas de suas bases. À lista da carta formulada pelos uspianos se somaram ainda tanto presidenciáveis da direita como Simone Tebet (MDB), Felipe D’Ávila (Novo) e Ciro Gomes (PDT), quanto os candidatos da esquerda Lula, Sofia Manzano (PCB) e Leonardo Péricles (Unidade Popular).

Como explicado na declaração da Esquerda Marxista distribuída nos atos de 11 de agosto

“A carta de 2022 é um documento reacionário que quer salvar este sistema político e suas instituições. Em sua redação somos informados que “Temos muito a caminhar no desenvolvimento de nossas potencialidades econômicas”. Para onde se vai junto com gente da estirpe de Michel Temer, que aprovou a contrarreforma trabalhista e que também aderiu à carta? A maioria da burguesia avalia que Bolsonaro não tem força para implantar um regime bonapartista que impeça as massas de se mobilizar. Por isso sua resposta é formar um governo de união nacional em que Lula atenda aos interesses dos empresários e banqueiros.”

Para justificar sua defesa do Estado de Direito, por exemplo, a carta pela democracia da Faculdade de Direito da USP afirma se basear no “espírito cívico que lastreou a Carta aos Brasileiros de 1977”. Toda essa carta de 2022, na verdade, faz referências e está fundamentada na carta divulgada em 8 de agosto de 1977, num ato realizado no Largo São Francisco. Esse momento é apresentado pelos comentaristas burgueses como um ponto de inflexão política na sociedade brasileira, a partir do qual a Ditadura Militar teria começado a ruir. Trata-se, porém, de uma revisão dos verdadeiros acontecimentos e da luta política que levou à democratização. A carta aos brasileiros de 2022 apresenta uma análise histórica a favor da burguesia e de seus porta-vozes, uma análise ideológica da classe dominante que serve aos seus interesses de hoje. Nossa primeira tarefa consiste, portanto, em estabelecer uma análise que corresponda à verdade histórica.

“Milagre Econômico” e “Anos de Chumbo”

O ano de 1977 concentrou uma tensão política que vinha se acumulando na sociedade brasileira. A base dessa situação foi o baixo desempenho da economia brasileira nos anos anteriores. O capitalismo brasileiro havia sido fortemente atingido pela crise do petróleo de 1973. Os fundamentos econômicos da Ditadura Militar começavam a ruir. Como resultado dessa situação houve uma escalada da inflação no país, com arrocho de salários na casa dos 34% e elevação da taxa de desemprego e miséria entre as massas. Essa situação se desenvolveu depois do “milagre econômico”, um período de 1969 a 1973 em que a economia do Brasil cresceu a taxas altas e proporcionou enormes lucros para a classe dominante. Acontece que foi uma bonança promovida sobre a base de rebaixamentos de salários, perda de direitos trabalhistas, intervenção ditatorial nos sindicatos, proibição da livre atividade política, censura à imprensa, repressão selvagem às greves e intensa coação a toda atividade da sociedade civil. A festa do empresariado foi promovida por meio dos “anos de chumbo” daquela noite que começou em 1º de abril de 1964 e durou 21 anos.

Como uma grande represa que começa a apresentar rachaduras, o regime político instituído pelos militares apoiados pela burguesia passava em 1977 a sentir cada vez mais a pressão das enormes contradições econômicas e sociais que ele tentava conter. O centro político do problema era que, de um lado, a burguesia que apoiou o golpe contra o governo eleito de João Goulart começava a ficar descontente com os resultados econômicos obtidos com os militares no governo. De outro lado, os trabalhadores iam se insubordinando contra as condições de vida cada vez mais humilhantes a que eram submetidos, apesar da intensa repressão política sofrida. A mesma situação econômica que desagradava os capitalistas implicava em mobilizações e protestos que dificultavam ainda mais a impulsão econômica. Nesse contexto de agitação social crescente, estudantes, intelectuais e artistas se viam animados a desafiar o autoritarismo e a também ocupar o espaço público.

A carta de 2022 declara que foi em 8 de agosto de 1977 que começou uma virada na situação do país, com a leitura do documento que “denunciava a legitimidade do então governo militar e o estado de exceção em que vivíamos” e cuja “semente plantada rendeu frutos”. Porém, a grande mudança na situação começou meses antes, em 5 de maio de 1977, quando estudantes da USP e da PUC protagonizaram uma passeata de rua até o Viaduto do Chá. Foi a primeira concentração política fora dos campus universitários desde o fechamento completo do regime com o AI-5 em 1969. Esse foi um marco que revelou o real estado de forças da Ditadura Militar, evidenciou a dificuldade dos agentes governamentais em continuar sua repressão e mostrou as possibilidades que se abriam para a atividade política.

Dialética da luta de classes: a quantidade se converte em qualidade

O protagonismo estudantil, entretanto, longe de se tratar de uma mobilização autônoma, consistia em parte de todo um movimento político em curso na sociedade. O motor desse processo foi uma verdadeira dialética da luta de classes, que combinava mobilizações em bairros e igrejas, demandas democráticas, lutas econômicas e o próprio questionamento do regime político, e que em determinado momento se converteu numa explosão de greves. Desde 1972, os trabalhadores vinham ensaiando mobilizações, paralisações e lutas políticas desde os seus locais de trabalho e moradia. A cada passo, entretanto, defrontavam-se com uma violenta repressão por parte dos patrões, do governo e dos sindicatos dirigidos por pelegos e interventores do governo. Demissões, prisões, torturas e assassinatos eram a tônica da atividade sindical combativa.

Ainda assim, a insatisfação entre os operários e as massas da sociedade crescia e ia encontrando expressão em lutas econômicas nos bairros e nas fábricas. Uma vez que a ditadura impunha uma repressão violenta nos sindicatos e na atividade política, a organização dos operários ia se desenvolvendo via sociedades de amigos de bairro e comunidades eclesiais de base (CEBs). Era um momento em que as lutas reivindicatórias se davam de forma localizada, seja por fábricas, que em geral não chegavam à greve, seja em articulações que se davam nas regiões de moradia e igrejas. A partir de 1972 e 1973, começam a ocorrer mobilizações em alguns setores operários. Greves localizadas ocorrem nas fábricas de Vilares, Volkswagen, General Motors e Ford. Operações-tartarugas são protagonizadas na Metalúrgica Matarazzo e Saad. Protestos diante das condições de trabalho e ameaças de demissão eclodem na Stork, Inox e De Nigris.

A região industrial da Grande São Paulo vivia a expectativa de uma mobilização que iria se generalizar para toda a classe trabalhadora brasileira. A frustração dos trabalhadores no atendimento de suas reivindicações acabava por se converter em pautas políticas, tais como a substituição da política salarial pela contratação livre e direta entre sindicatos e empresas sem a ingerência das autoridades e órgãos públicos, a organização sindical livre e autônoma do Ministério do Trabalho, a partir dos locais de trabalho, e o direito à greve. Essas reivindicações se dirigiam mais e mais contra as autoridades ditatoriais e contra todo o regime político, conectando-se cada vez mais a pautas democráticas levantadas por outros setores da sociedade como os estudantes e os artistas.

Foi nesse contexto de efervescência política que transcorreu o ano de 1977. Na preparação para o 1º de maio daquele ano, por exemplo, alguns ativistas sindicais foram presos ao panfletarem na região do ABC falando sobre o dia dos trabalhadores e sua origem. Como resposta àquela arbitrariedade, em junho os artistas protestaram liberando a entrada das suas peças de teatro e a cada sessão lotada liam um manifesto contra as prisões e a favor das liberdades democráticas. A partir do segundo semestre, a situação começa a mudar radicalmente, com a campanha salarial dos metalúrgicos do ABC e que vai levar à primeira greve operária em 12 de maio de 1978. Esse momento marcou a entrada em cena da classe trabalhadora como protagonista dos processos políticos.

Um galinha verde responde: “Estado de Direito, Já!”

Foi na esteira dessa situação efervescente que surgiu a iniciativa da “Carta aos Brasileiros”, apresentada no Pátio das Arcadas da Faculdade de Direito da USP para um público seleto em 8 de agosto de 1977. Longe de se tratar do baluarte da luta contra a Ditadura Militar, tratou-se na verdade de um movimento retardatário e puxado pela mobilização de vanguarda protagonizada pelos estudantes, pelos artistas e pelos operários nas fábricas e bairros proletários. Sua divulgação deu um ponto de aglutinação para empresários e seus porta-vozes, cada vez mais em desalinho e conflito com o governo. A burguesia passava a criticar a atuação dos ministros e as indefinições do governo diante do fim do “milagre econômico”. E uma vez que as massas começaram a ocupar a cena, os capitalistas queriam também eles próprios apontar suas respostas para a situação.

Para a preparação da “Carta aos Brasileiros” de 1977 foi encarregado Gofredo da Silva Telles Júnior, diretor da Faculdade de Direito da USP. Sua escolha foi feita por suas posições notoriamente anticomunistas e para assegurar de que tipo de democracia estavam falando os professores, estudantes da USP, advogados e demais signatários. O ilustríssimo senhor Gofredo era um ferrenho inimigo dos trabalhadores. Desde jovem, foi um militante da Ação Integralista Brasileira, organização inspirada no fascismo italiano de Mussolini e dirigida por Plínio Salgado. Exatamente. O grande paladino da democracia, o “mestre de todos nós”, como anunciado na carta de 2022, era um “galinha verde”. A expressão era usada pelos antifascistas na década de 1930 para se referir aos integralistas, devido ao uniforme verde por eles utilizado. Gofredo foi um dos dirigentes da organização integralista em São Paulo, tomou parte no levante da burguesia paulista de 1932 e fez carreira política defendendo a doutrina integralista e atuando como deputado em diversos momentos. Após ver frustrado seus planos de impor um regime inspirado no fascismo no país, Gofredo dedicou-se à carreira universitária, encobrindo suas posições políticas e teóricas, ao ponto de afirmar que defendeu o integralismo para combater o fascismo.

“Carta aos Brasileiros” de 1977, uma receita ideológica

A “Carta aos Brasileiros” de 1977, que conclui com a fórmula “O Estado de Direito, já!”, foi elaborada no espírito do positivismo filosófico, muito presente entre a burguesia e a pequeno-burguesia do século passado, como evidenciado pela análise de suas ideias fundamentais. Logo de início, a carta se propõe a ir ao fundo teórico que a baseia: “Toda lei é legal, obviamente. Mas nem toda lei é legítima. Sustentamos que só é legítima a lei provinda de fonte legítima. Das leis, a fonte legítima, primária é a comunidade a que as leis dizem respeito; é o Povo ao qual elas interessam, comunidade e povo em cujo seio as idéias das leis germinam, como produtos naturais das exigências da vida.” Aqui podemos depreender o núcleo da carta, que contrapõe o regime ditatorial a uma forma de governo com a participação do povo. A fórmula teórica apresentada para se obter legitimidade é o Estado de Direito. Acontece que, em primeiro lugar, o “povo” a que se referia Gofredo não é e nunca foi uma entidade una. Pelo contrário, o Brasil era em 1977 e continua sendo em 2022 uma sociedade dividida em classes sociais, baseada na exploração de uma classe por outra.

As abstrações vazias do ilustríssimo galinha verde seguem para os conceitos de ordem, força e poder. Por um malabarismo jurídico, somos informados que o poder legítimo tem seu fundamento em um senso grave de ordem, esse consistindo na livre decisão popular, que se vale da força apenas como um mero instrumento de poder. Entre os fantasmas citados por Gofredo nada encontramos sobre os interesses econômicos de uma minoria convertidos em força de lei por meio do Estado. Fiel a sua concepção antimarxista, o integralista ignorava que a Ditadura Militar era um regime de tipo bonapartista onde o corpo de homens armados instituído para defender a classe dominante se colocou como árbitro das classes sociais e gerente dos interesses nacionais. No lugar das relações reais de domínio e exploração estabelecidas desde a opção brasileira de 1964, encontramos na carta da Faculdade de Direito da USP de 1977 abstrações teóricas cujos fundamentos provém da imaginação positivista fecunda de um antigo galinha verde convertido em catedrático.

Ao passar a se referir à parte mais prática da carta, Gofredo afirmava que “Uma lei só é válida se a sua elaboração obedeceu aos preceitos constitucionais, que regulam o processo legislativo” e que “sendo lei, a Constituição há de ter também, sua fonte legítima”. Aqui voltamos ao primeiro problema: “a Constituição é obra do Poder Constituinte. Mas o que se há de acrescentar, imediatamente, é que o Poder Constituinte pertence ao Povo, e ao Povo somente”. Ou seja, toda fonte de poder é essa figura abstrata do povo, mas o povo tal como o conceitua Gofredo não existe na realidade. Trata-se de um conceito da ideologia burguesa, que camufla a real composição do tecido social. A constituição jurídica em uma democracia fundada numa sociedade de classes sempre vai expressar sob a forma de relações jurídicas e políticas uma determinada correlação de forças entre as classes sociais em luta num determinado momento. A legitimidade da Ditadura Militar residia na derrota, esmagamento e repressão generalizada ao movimento operário e as suas organizações políticas de 1964 a 1969. Sob essa base, a burguesia conseguiu estabelecer a Constituição de 1969, imposta pelo general Emílio Garrastazu Médici, que deu aos interesses particulares da classe dominante – o “milagre econômico” – a forma de lei, penalizando não apenas o movimento operário, mas também todos os demais setores da sociedade.

Quando Gofredo afirma que “Ao Povo é que compete tomar a decisão política fundamental, que irá determinar os lineamentos da paisagem jurídica em que deseja viver” ele visualiza um processo constituinte “por meio de seus Representantes, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte, ou por meio de uma Revolução vitoriosa”. Em outras palavras, qualquer mudança política precisaria ser feita com a participação da burguesia, seja por via pacífica, ou por uma “revolução” da qual ela faça parte. Aqui se completa o caráter democrático burguês dessa proposta, que vai afirmar que o Estado legítimo é o Estado de Direito, com governos e governantes que obedeçam a uma Constituição pactuada com e pela burguesia brasileira. Há uma fração de verdade quando os comentaristas burgueses da carta de 2022 dizem que a carta de 1977 desempenhou um papel central na redemocratização do Brasil. Foi a perspectiva apontada pelo documento lido por Gofredo a que se impôs ao fim das contas no curso da luta política do país. A ditadura não foi derrubada por uma revolução dos trabalhadores, apesar de suas bases políticas terem sido derretidas pela onda de greves, mobilizações e lutas políticas desencadeadas de 1977 em diante. A burguesia golpista conseguiu conduzir a transição de regime políticos sem grandes solavancos, estabelecendo um pacto social com o movimento dos trabalhadores sob a forma da Constituição de 1988.

Bolsonaro e outras maravilhas do Estado de Direito

O Brasil dos dias de hoje é o Brasil do Estado de Direito, pregado pelo ilustríssimo professor galinha verde Gofredo. Como reconhecem os próprios signatários da carta uspiana de 2022:

“Nossa democracia cresceu e amadureceu, mas muito ainda há de ser feito. Vivemos em um país de profundas desigualdades sociais, com carências em serviços públicos essenciais, como saúde, educação, habitação e segurança pública. Temos muito a caminhar no desenvolvimento das nossas potencialidades econômicas de forma sustentável. O Estado apresenta-se ineficiente diante dos seus inúmeros desafios. Pleitos por maior respeito e igualdade de condições em matéria de raça, gênero e orientação sexual ainda estão longe de ser atendidos com a devida plenitude.”

A grande promessa dos legisladores da burguesia formados pela Faculdade de Direito da USP, discípulos do “mestre de todos nós”, é assim um país marcado pela gritante desigualdade econômica, pela fome crônica de milhões de cidadãos, pelo florescimento da barbárie da violência a cada esquina e pela dominação imperialista estrangeira do país por meio dos mecanismos da dívida pública e do capital investido no país. Mas alto lá! Os senhores da lei nos esclarecem que ainda “temos muito a caminhar”. Porém, para onde e com quem vamos? Para onde vamos com o signatário da carta Michel Temer, que aprovou a contrarreforma trabalhista? Qual o destino do trem em que embarcou também Fernando Henrique Cardoso, que privatizou o que pôde e atacou os trabalhadores quando esteve no governo federal? Na verdade, a “potencialidade econômica” e a “eficiência” de que falam é aquela da propriedade privada dos grandes meios de produção e da busca anárquica pela acumulação de capital, que em seu caminho destrói a natureza e barbariza os seres humanos. Por esse caminho preferimos não nos embrenhar, obrigado.

O Estado de Direito pelo que choram democratas do tipo o banqueiro Roberto Setubal, o empresário do agronegócio Blairo Maggi e o ex-ministro do STF Joaquim Barbosa é o sistema político que faz com que a burguesia eleja seus representantes, tais como Jair Bolsonaro, e que imponha sobre os trabalhadores seus interesses de classe mesquinhos.  Os grandes avanços da “nossa democracia” são uma legislação política e eleitoral draconiana. Essa grande obra democrática mantém artificialmente partidos políticos sem vínculo social, que sobrevivem do fundo partidário e de outros mil truques para se apropriar e negociar com o dinheiro público. Ao mesmo tempo, o Estado de Direito proíbe a formação de novas agremiações que representem a real conformação do tecido social, impondo cláusulas cada vez mais absurdas e atendíveis apenas por enormes máquinas eleitorais e econômicas. 

Os mesmos que enchem a boca para falar sobre “respeito e igualdade de condições” são aqueles que calam sobre a corrupção do processo eleitoral com o fundo eleitoral, sobre a fusão forçada de partidos por meio da imposição das federações partidárias e das diversas reformas políticas que estrangulam e tentam tutorar a vida política. Essa é a mesma democracia que proíbe as organizações dos trabalhadores, que representam a maioria da sociedade, de fazer doações para seus candidatos e mesmo de utilizar suas estruturas para fins partidários ou eleitorais. Os que nos chamam a defender as instituições da República são os que validaram a Operação Lava Jato, que aplaudiram a prisão sem provas de Lula e que agiram para preparar a fraude eleitoral de 2018 que deu vitória a Bolsonaro.

União nacional para salvar o capitalismo

A burguesia e seus porta-vozes que agora clamam pela defesa do Estado de Direito são os mesmos que apoiaram a derrubada do governo eleito de João Goulart em 1964 e que fizeram fortuna sob a proteção dos milicos com suas mãos cheias de sangue. Essa gente de princípios foi a que mais tarde se reagrupou para garantir a transição pacífica entre os regimes da Ditadura Militar para o da Nova República instituída pela Constituição de 1988, que anistiou os torturadores e manteve os privilégios da burguesia. Acontece que o seu Estado de Direito está fazendo água desde as Jornadas de Junho de 2013. As massas trabalhadoras estão se dando conta cada vez mais que todo esse sistema está contra elas, que as instituições da Nova República, longe de serem legítimas, são na verdade reacionárias, servindo a interesses outros que não os seus.

Toda a dramaticidade da crise política em curso desde então, passando pelo impeachment de Dilma em 2016 e pela eleição de Bolsonaro em 2018, está marcada pela dialética da luta de classes que se desenrola sob a forma do regime da Nova República. Esse é o fundo das tentativas da burguesia para construir uma candidatura eleitoral para chamar de sua para as eleições deste ano. Porém, os navios da “terceira via” naufragaram antes mesmo de serem lançados ao mar. Diante da crescente polarização social no âmago da sociedade, o centro político brasileiro se derreteu, enquanto os polos políticos se cristalizaram.

Diante disso, a burguesia responde com uma política da unidade nacional por meio das várias cartas que agora circulam, pintando qualidades às instituições reacionárias da Nova República e revisando a história para justificar sua permanência. Faz assim contraponto à política proposta por Jair Bolsonaro, que prepara o questionamento da derrota eleitoral indicada por todas as pesquisas de opinião. O presidente calcula seus movimentos e tenta emplacar uma saída política que inclua sua própria sobrevivência. Foi isso que fez ao convocar embaixadores de diversos países para conformar um clima internacional para sua investida. É isso o que está fazendo ao tentar retirar a autoridade dos governadores sobre o comando das polícias militares. Porém, a maioria da burguesia, que se agrupou em torno da iniciativa da Faculdade de Direito da USP e de outros manifestos, como o da FIESP e da Febraban, deu seu recado. Ela não apoiará a escalada golpista almejada por Bolsonaro e preparada por seus apoiadores para 7 de setembro. Pelo menos não por ora.

A “consciência cívica” desses burgueses tem suas bases materiais na avaliação de que, diferente da situação em 1964, Bolsonaro e sua horda reacionária não têm a força necessária para implantar um regime bonapartista que impeça as massas de se mobilizar e que garanta um novo “milagre econômico”. A “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito” de 2022, assim como suas variantes, trata-se, portanto, de uma resposta da burguesia brasileira para retomar a iniciativa diante da crise política por que passa o regime que ela montou em substituição à Ditadura Militar. Por isso sua resposta é formar um governo de união nacional em que Lula atenda aos interesses dos empresários e banqueiros. Tentam assim cavalgar o movimento que as massas trabalhadoras preparam ao votar em Lula para se livrar deste governo que sabiamente identificam como seu inimigo.

Para desagrado dos discípulos do “mestre de todos nós” Gofredo, a luta de classes vai mais uma vez, assim como em 1977, colocando cada coisa no seu lugar e lançando luz sobre o sentido da atuação de cada um dos atores políticos. Os autores da carta da USP de 2022 escreveram que queriam celebrar uma festa cívica neste ano, mas ao invés disso estão preocupados com a continuidade das instituições de sua República. Nenhuma convocação ao “espírito cívico” ou à “consciência cívica” das massas vai mudar a situação de crescente polarização que a sociedade vivencia e seus efeitos como crise política. Já explicamos e reafirmamos que, ao invés de se fortalecer, o regime da Nova República está se esfacelando e que viverá de convulsão em convulsão no próximo período.

Agonia da Nova República

A base da desagregação do regime da Nova República, assim como se deu no regime da Ditadura Militar, é a crise do capitalismo brasileiro, na esteira da crise econômica mundial de 2008 e suas consequências. Nesse contexto, a burguesia busca manter seus lucros sobre a base do fechamento de postos de trabalho, do rebaixamento dos salários, da retirada de direitos trabalhistas, previdenciários e sociais, e da privatização de serviços públicos e saque aos cofres governamentais. Acontece que, numa situação de crise como a atual, cada medida dos governos de recuperar uma estabilidade econômica implica em aumentar a instabilidade política no país. Toda a agonia do Estado de Direito reside nisso, em se tratar de um regime político que tem seus fundamentos numa sociedade dilacerada por uma luta entre classes sociais antagônicas.

Nenhuma estabilidade do regime político brasileiro poderá ser alcançada no próximo período sem uma luta decisiva que implique na derrota de um dos lados em disputa. Não se trata, porém, de uma luta da democracia contra o autoritarismo, mas sim uma luta mais complexa, que tem seu fundamento na estrutura econômica do país. O pano de fundo das disputas palacianas, das escaramuças econômicas e dos protestos de rua, o que confere o caráter de crise política à Nova República, é a crise do capitalismo brasileiro. É a condição econômica que empurra a burguesia a explorar mais os trabalhadores e esses por sua vez a resistir às investidas cada vez piores contra o pouco que detêm. 

A agonia da Nova República não pode continuar indefinidamente. Cedo ou tarde, assim como em 1977, o acúmulo de contradições encontrará um canal por onde se converter em um salto de qualidade. A crise da Ditadura Militar foi resolvida a favor da burguesia com a instituição da fórmula de Estado de Direito. A crise da Nova República, porém, ainda não tem sua solução definida e nem pode ser solucionada de antemão. Essa é uma questão a ser resolvida pelas forças sociais vivas e em luta. Numa situação tensa como essa, inclusive, uma investida bolsonarista pode, nas palavras de Marx, fazer com que o chicote da contrarrevolução incite a revolução e embaralhe ainda mais o cenário político. A burguesia sabe disso e faz seus movimentos preventivos. Cabe aos trabalhadores preparar os seus.

Como os trabalhadores lutam pela democracia

Como vimos no começo deste artigo, porém, as principais organizações dos trabalhadores e suas lideranças, ao primeiro rufar dos tambores bolsonaristas, decidiram capitular ao canto da sereia da burguesia golpista convertida para a “consciência democrática”. A CUT, a UNE, o PT e o PSOL de pronto anunciaram sua adesão às cartas em defesa do Estado de Direito. Presumivelmente também aderiu Lula, que tão zelosamente costurou sua chapa com o homem da burguesia Alckmin. Chama atenção, porém, que até ditos “marxistas” – que falam de Marx, mas não compreendem seu método – cederam à gritaria democrática. Notoriamente o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e o partido Unidade Popular (UP), esse impulsionado pelos stalinistas do Partido Comunista Revolucionário (PCR).

Essas organizações e lideranças estão se colocando ideológica e objetivamente no campo da correlação de forças burguesas da sociedade de classes. Passam assim a representar no movimento dos trabalhadores e da juventude não os interesses históricos e imediatos dos explorados pelo capital, mas sim os interesses e posições políticas de seus inimigos de classe. A adesão da dita esquerda às cartas da Faculdade de Direito da USP e da Fiesp assinala mais um passo do fenômeno de dissolução da consciência de classe dos trabalhadores brasileiros promovido por Lula, PT, PCdoB, PSOL e CUT, e que acaba por arrastar todos aqueles sem fortes bases na teoria revolucionária e na luta de classes. A declaração da Esquerda Marxista distribuída nos atos deste 11 de agosto esclarece qual a tarefa número um diante dessa situação:

“É inadmissível que a CUT e a UNE tenham aderido a esse documento reacionário. Os trabalhadores e os estudantes precisam exigir que suas organizações rompam com essa carta e com a carta da Fiesp. A democracia não tem nada a ver com o Estado de Direito de que falam os frequentadores da Faculdade de Direito da USP. A democracia numa sociedade de classes apenas pode ser efetivada com a classe mais numerosa no poder. Essa maioria é hoje composta pelos trabalhadores, reunidos nos bairros operários, nas fábricas, nas empresas e espalhados pelos setores sem regulamentação impostos pela classe dominante.”

Os trabalhadores devem recusar somar sua adesão às cartas em defesa destas instituições reacionárias da Nova República, apelidadas de “Estado Democrático de Direito”. A luta pelas liberdades democráticas nada tem a ver com a defesa do atual sistema político. Pelo contrário, o “Estado democrático de direito” é hoje o regime que criminaliza greves, intervêm em ocupações de fábricas, mantêm orçamentos secretos e proíbe meninas de 11 anos estupradas de abortarem. O governo Bolsonaro é o produto mais acabado do Estado Democrático de Direito da burguesia. A superação definitiva de Bolsonaro e do bolsonarismo apenas pode ser feita com a superação do próprio Estado de direito proposto pela carta de 1977 e do qual o atual governo é fruto. A Nova República de 1988 foi a instituição de um Estado que serviu ao domínio da minoria dos patrões sob uma fachada democrática até aqui. 

A adesão da CUT, da UNE e demais organizações de trabalhadores e estudantes às cartas necessita ser revogada, por meio de uma pressão desde as bases. O atendimento das reivindicações dos trabalhadores não pode ficar condicionado ao calendário eleitoral e à eleição ou não de Lula para a presidência da República. Essa foi a tática utilizada pelos dirigentes do movimento operário durante a Ditadura Militar para restringir a luta dos trabalhadores ao campo econômico e respeitar o regime político. Foi essa a tática, que se recusava a dar às lutas locais seu caráter plenamente político, que permitiu à burguesia retomar a iniciativa e estabelecer um novo sistema político com a Constituição de 1988. Ao contrário, os trabalhadores precisam aproveitar a crise da burguesia e de seu regime para levar adiante suas próprias reivindicações em greves e mobilizações contra os patrões, os governos e suas fórmulas ideológicas.

À carta de 2022 os trabalhadores precisam contrapor um programa de reivindicações que anime as amplas massas dos explorados a se colocar em movimento. Essa é a resposta que a Esquerda Marxista propõe para o movimento operário e estudantil e que está propagandeando com suas candidaturas e comitês para derrotar Bolsonaro. Defender verdadeiramente a democracia significa defender um governo do povo, e numa sociedade de classes como a nossa, a maioria do povo é composta pelos trabalhadores. O Estado de Direito é um regime político em que governa a minoria do povo, a serviço dos capitalistas e seu sistema. Lutar verdadeiramente pela democracia, portanto, é lutar pela revolução, é lutar para colocar abaixo o capitalismo, é lutar pelo socialismo. Defender verdadeiramente a democracia sob o capitalismo significa defender um governo da maioria, um governo dos trabalhadores, sem patrões nem generais.