Os 60 anos do golpe de 1964 e a luta contra a ditadura

Durante o mês de março, publicaremos uma série de artigos analisando a ditadura militar instaurada no Brasil em 1964, o papel do imperialismo nesse processo, a tática de guerrilhas entre outros aspectos do golpe que completa 60 anos no próximo 1º de abril.

Nesse primeiro artigo, de Michel Goulart, explicamos o contexto, os motivos do golpe, e os erros das direções do proletariado.

Evento central na história do Brasil, o golpe de 1964, que colocou em cena uma articulação burguesa e militar apoiada pelo imperialismo para esmagar as lutas e organizações dos trabalhadores, deve ser estudado e analisado em todas as suas contradições. Por um lado, muitos dos que apoiaram a ditadura tentam minimizar a brutalidade tanto do golpe como do regime ditatorial, inventando explicações como a da “ditabranda”, expressa anos atrás pelo jornal Folha de São Paulo. Por outro, parte da esquerda busca transformar a luta contra a ditadura em uma resistência meramente democrática, procurando apagar o protagonismo da luta revolucionária no período.

O golpe de 1964 derrubou o governo de João Goulart, que havia sido eleito vice-presidente defendendo o programa centrado nas “reformas de base”, colocado como prioridade quando assumiu a presidência, após a renúncia do presidente Jânio Quadros, em setembro de 1961. Tratava-se de um conjunto de medidas que tinham como objetivo reestruturar as instituições políticas, jurídicas e econômicas. Entre as principais reformas estavam a agrária, a urbana, a bancária, a tributária, a eleitoral, a do estatuto do capital estrangeiroe a universitária. Eram propostas de reforma do capitalismo dentro de uma perspectiva nacionalista. No Comício da Central, em 13 de março de 1964, João Goulart assim explicava:

O caminho das reformas é o caminho do progresso e da paz social. Reformar, trabalhadores, é solucionar pacificamente as contradições de uma ordem econômica e jurídica superada, inteiramente superada pela realidade dos momentos em que vivemos.”1

Contudo, a burguesia associada ao imperialismo não estava disposta a ceder e pagar o preço que Goulart propunha. Os latifundiários não tinham interesse em entregar suas terras, mesmo mediante indenização, colocando-se uma perspectiva de embates violentos no campo. O programa de Goulart, contraditoriamente, apesar de seus limites, se chocava com os interesses da burguesia e do imperialismo, sendo considerado uma declaração de guerra pelas classes dominantes.

O Partido Comunista Brasileiro (PCB), dentro de sua perspectiva de “revolução por etapas” e de que no Brasil ainda existia um modo de produção com características semifeudais, apontava um caráter estratégico para as “reformas de base”. Luís Carlos Prestes, principal liderança do partido, afirmava em março de 1964, depois do Comício da Central:

lutar pelo socialismo é lutar pela vitória da revolução nacional e democrática e acabar com os obstáculos que impedem o progresso de nosso país, é lutar pela expulsão de nossa terra dos monopólios imperialistas, é lutar pela revolução agrária. Temos consciência que é assim que estamos lutando pelo socialismo.”2

Nessa lógica, seria preciso fazer uma revolução burguesa que consolidasse o Brasil como nação capitalista e, numa etapa posterior, lutar pelo socialismo. Contudo, nas primeiras décadas do século, ainda que sem fazer uma revolução burguesa aos moldes dos países europeus, o Estado brasileiro cumpriu o papel de fomentar a industrialização e diversificar os diferentes ramos da economia. No Brasil, na década de 1960, conviviam formas de produção das mais diversas, com regiões e ramos da economia atrasados ao lado de uma indústria com setores avançados. Como consequência desse desenvolvimento desigual e combinado, colocavam-se tensões internas que poderiam se chocar com os interesses imperialistas. O golpe foi a única forma de resolver essas tensões e permitir a execução de um desenvolvimento atrelado ao imperialismo.

Na burguesia, ainda que houvesse setores nacionalistas, havia o compromisso majoritário com um projeto de nação atrelado aos interesses do imperialismo, no qual a economia brasileira estaria dominada por empresas estrangeiras. Esse projeto era defendido abertamente pela burguesia. Em novembro de 1961, a FIESP declarava “que a taxa de formação de capitais nacionais é reduzida e, portanto, devemos incrementá-la com recurso de fora”3.

Nesse contexto, para os militares, colocava-se no horizonte a defesa da “segurança nacional”, que, no âmbito interno, estaria ameaçada por João Goulart, seus apoiadores e pelos partidos de esquerda. No Exército, a maioria dos oficiais tinha se formado em meio ao combate contra o PCB e contra Prestes, que carregava a aura de militar com larga experiência de batalha na “Coluna Prestes”. Um manifesto assinado por membros da cúpula militar em janeiro de 1963 afirmava que “o governo está violando a constituição permitindo que o comunismo ilegal desenvolva livremente sua atividade revolucionária e nitidamente contrária à carta magna do País”4.

Nesse período, havia mobilizações de trabalhadores em diferentes categorias, nas quais atuavam trabalhistas e comunistas e, mesmo no interior das Forças Armadas, um setor defendia umprojeto nacionalista.

Em 1963, camponeses e operários urbanos estavam mobilizados, reivindicando as reformas de base. Em 12 de setembro de 1963, ocorreu a Revolta dos Sargentos. Os sargentos haviam sido proibidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de ocupar cargos no Legislativo. Os sargentos ocuparam prédios governamentais em Brasília, sendo rapidamente contidos. Como nenhuma ação punitiva foi tomada por Jango, transpareceu uma postura de impunidade para certa ala das Forças Armadas caso houvesse outras rebeliões. Nos primeiros meses de 1964, a situação de instabilidade política se agravou, com o descontentamento da burguesia diante da instabilidade política e a ameaça de realização das medidas previstas nas reformas de base.

O setor majoritário entre os militares, municiado pelo imperialismo, temia que o projeto nacionalista poderia significar um primeiro passo para a transição ao socialismo. O fantasma da Revolução Cubana, onde uma direção nacionalista foi empurrada pela mobilização dos trabalhadores para medidas de expropriação e enfrentamento com o imperialismo, persistia na situação política. O apoio do PCB ao governo João Goulart e o fantasma do comunismo colocavam os militares diante da necessidade de garantir a defesa da ordem burguesa e do alinhamento com os Estados Unidos. Em sua posse como presidente, em abril de 1964, Humberto Castelo Branco se referia ao golpe como um “remédio para os malefícios da extrema-esquerda”5.

Com a vitória do golpe em 1964, os militares iniciaram um projeto de desenvolvimento marcado pela repressão e pelo maior atrelamento ao imperialismo. Nesse contexto, a esquerda se viu reprimida pelo novo regime e em crise diante do desastre teórico e político da maioria de suas análises. As diferentes organizações políticas até então existentes passaram por um processo de fragmentação. PCB, PCdoB, Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop) e mesmo o pequeno Partido Operário Revolucionário (POR), de influência trotskista, sofreram com cisões das mais diversas. Contudo, mesmo diante desse processo de cisões e críticas, poucas organizações, sejam as já existentes ou as novas, fizeram um efetivo balanço sobre as razões da derrota de 1964.

O PCB continuou a apontar que o centro da política deveria ser a manutenção da unidade com a burguesia. Em seu balanço do golpe, o partido chegou a apontar que teria tido uma postura sectária ao exigir de João Goulart mais do que seria possível naquela conjuntura. Em resolução do congresso realizado em 1967, o PCB afirmava que o partido teria deixado

de lado a necessidade de formular soluções concretas para as questões colocadas na ordem do dia, e apresentar ao governo e às massas alternativas viáveis que contribuíssem para o encaminhamento dos problemas e avanços do movimento nacionalista e democrático.”6

Portanto, teria faltado ao PCB, segundo seu próprio balanço, ser ainda mais parceiro da governabilidade de João Goulart. O desdobramento político dos equívocos do PCB seria o de, durante a ditadura, defender uma frente “bem mais ampla do que era aquela que tínhamos em mira antes do golpe”, que tivesse a participação não apenas da “burguesia nacional”, mas até mesmo de “outros setores das classes dominantes, cujos interesses são contrariados pela política do governo ditatorial”7.

Durante a ditadura, com exceção de alguns pequenos grupos trotskistas, a esquerda não enxergava a necessidade da luta autônoma das organizações dos trabalhadores em relação à burguesia. Essa postura não se deu por acaso, afinal essas organizações, a maior parte oriunda de cisões do PCB, colocavam como estratégia a defesa da democracia burguesa, mesmo quando o regime ditatorial começou a ruir. Contra essa estratégia, diante do ascenso operário, os trotskistas apontavam em 1979:

“Quaisquer que sejam os obstáculos – e serão numerosos – quaisquer que sejam os ritmos e as vias seguidas, o processo em marcha chegará à derrubada da ditadura e de suas instituições. E a queda da ditadura, quaisquer que sejam as formas concretas e os desenvolvimentos intermediários – implicará inevitavelmente a desagregação desse Estado modelado pela ditadura, e a abertura da crise revolucionária e, mais além, a revolução proletária.”8

Com a vitória dos golpistas em 1964, os militares encabeçaram um projeto de desenvolvimento marcado pela repressão e pela subserviência ao imperialismo. O processo que levou ao golpe mostrou a necessidade da organização independente dos trabalhadores, que coloque como elemento estratégico o combate à ordem capitalista e a defesa da revolução.

Refrências:

1 João Goulart. Discurso no comício da Central. In: Carlos Fico. Além do golpe. Rio de Janeiro. Record, 2004, p. 286.

2 Novos Rumos, n. 264, 20-26 mar. 1964, p. 3.

3 FIESP. Posição sobre o capital estrangeiro. In: Carlos Fico. Além do golpe. Rio de Janeiro. Record, 2004, p. 234.

4 A Revolução de 31 de março. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1966, p. 6.

5 A Revolução de 31 de março. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1966, p. 33.

6 VI Congresso do PCB (dezembro de 1967). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1964-1982). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 3, p. 52.

7 VI Congresso do PCB (dezembro de 1967). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1964-1982). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 3, p. 73.

8 Resolução política do III Congresso da OSI. A Luta de Classe, nº 2, set. 1979, p. 14.