Integrantes do grupo de “justiceiros" de Copacabana / Imagem: Reprodução, Redes Sociais

A violência urbana no Rio de Janeiro

Conflitos armados entre grupos de “tráfico” e “milícia” na Zona Oeste do Rio Janeiro inundam com sangue as emergências dos hospitais cariocas. Chacinas recorrentes em bairros proletários são realizadas por tropas policiais que tem como missão “entrar na favela e deixar corpos no chão”. Agressões, roubos e furtos ao comércio e a pedestres na Zona Sul não param de crescer e encontram como reação a formação de grupos de “justiceiros”.

Com uma taxa de desocupação e subutilização da força de trabalho, que somam em torno de 32%, e uma taxa de informalidade próxima aos 40% (PNAD, 20221), temos uma parte da juventude proletária e das partes inferiores da pequena burguesia no Rio de Janeiro em uma situação de luta desesperada pela sobrevivência, com setores ora resistindo à lumpenização, ora se entregando a ela. Os recentes dados de superávit nas receitas do Estado, oriundas principalmente do aumento da arrecadação dos royalties do petróleo2, são como chicotadas em um mar turbulento.

Enquanto serve de bucha de carne humana para o canhão econômico de uma burguesia que se divide em frações políticas raivosas, “direita” e “esquerda” aparecem dentro de um mesmo espectro. Na época das eleições, pedem votos para atender as reivindicações do alto do parlamento e da burocracia. Quando eleitos, realizam pequenos feitos que não os tornem “alvos” no conflito urbano para não acabar como Marielle Franco, e sempre de olho na reeleição.

Toda a estrutura do Estado se distancia e revela sua verdadeira face opressora, seja pela falta de uma vaga em uma creche, pelo projétil de fuzil que atravessa a janela de casa durante uma incursão policial ou pela simples impossibilidade de se despedir da família para o trabalho pela manhã sabendo que se chegará vivo pela noite. Em meio aos seguidos escândalos de corrupção, impeachment e prisões de governadores e ex-governadores, isso fica ainda mais fácil de ser percebido.

Toda a estrutura do Estado se distancia e revela sua verdadeira face opressora, seja pela falta de uma vaga em uma creche, pelo projétil de fuzil que atravessa a janela de casa durante uma incursão policial / Imagem: Tânia Rêgo, Agência Brasil

O pedido de confiança, à esquerda e à direita, nas instituições falidas da república e nos representantes políticos dos ricaços, portanto, tem encontrado pouco eco. Para o proletariado fluminense, os partidos políticos parecem mais grupos organizados para assaltar o erário público em benefício próprio, e o poder executivo uma tropa de assassinos armados sedentos por sangue de jovens e negros.

Contudo, nenhuma opressão pode permanecer a longo prazo sem válvulas de escape. A criminalidade urbana é onde se expressa algumas destas válvulas. Se manejada pelo Estado, partidos políticos e mídia adequadamente, ela pode servir para manter toda a opressão econômica e política disfarçadas.

De um lado, segundo estudo realizado em 2010, o varejo de drogas no Rio de Janeiro “emprega” 16 mil pessoas, o mesmo número de empregos que a Petrobras3. Apesar da insignificante receita diante do lucro das grandes empresas e do preço pago em sangue, o varejo é inegavelmente uma fonte de emprego e uma referência moral nos bairros proletários para muitos jovens que perderam a esperança em terem uma vida melhor vendendo sua força de trabalho para o capital legalizado.

Incapazes de se referenciar em parentes afundados em dívidas, com empregos e moradias precárias, imersos em conflitos familiares, destinados a sofrer em uma bicicleta, moto, carro de aplicativo ou no balcão de um comércio qualquer, o outro jovem que porta uma arma, que consegue uma renda acima da média trabalhando pra “boca”, que afronta as tropas assassinas da polícia, ou que simplesmente vai pro asfalto assaltar os “playboys” e as “patricinhas privilegiadas”, pode se transformar em uma referência a ser seguida.

Quando não há creche, escolas e universidades para todos, ou quando elas se tornam depósitos de crianças e jovens, a escola se torna a própria rua, e a educação é gerida pelos grupos armados que a dominam. E na escola da rua, a pedagogia é desumanizante. Precisa-se aguentar assédios, abusos sexuais, humilhações, socos, tapas e chutes, ou desferir os mesmos contra outros. É preciso, igualmente, aprender a negociar sobre pressão, extorquir, assassinar etc., tudo para que, mesmo que de maneira rudimentar, possa servir para organizar as atividades econômicas criminosas.

Do outro lado, temos o pequeno comércio e os serviços, que geram mais de 70% dos empregos no Rio de Janeiro4 e a maioria das novas vagas de trabalho formais5. A classe de pequenos burgueses e seus filhos, então, veem seus negócios ameaçados não apenas pela crise econômica, mas também pela violência urbana, que afugenta moradores e turistas e torna o deslocamento pela cidade arriscado. Copacabana, bairro mais populoso e onde se encontra o maior centro comercial da Zona Sul, tem se destacado negativamente nesse aspecto. Bem, essa classe também encontra suas válvulas de escape.

Se em meados do século XX formaram-se os “esquadrões da morte”, inicialmente como uma resposta à criminalidade urbana, que mais tarde se transformaram em grupos anticomunistas durante a ditadura, na polícia mineira do bairro Rio das Pedras, e nas milícias na Zona Oeste – sempre apoiadas por parte do aparelho de repressão do Estado ou originadas nele –, hoje vemos surgir grupos de “justiceiros”6 que se organiza por redes sociais, composto principalmente por jovens moradores da Zona Sul que querem combater roubos e agressões na região.

Roubos e agressões, em geral, realizados por moradores de favelas próximas ou distantes, que aproveitam os dias ensolarados de praia, repletos de turistas, para realizar os arrastões e até competirem entre si sobre quem rouba mais Iphones7. Os grupos são formados por amigos, conhecidos da região de moradia, mas também se formam por redes sociais, sempre de maneira rudimentar e com lideranças improvisadas.

E as facções criminosas ligadas ao comércio de drogas e armas? Usando como base os bairros proletários, frequentemente divulgam a ideia de que limitam a ação opressora direta da polícia contra os moradores. No entanto, o resultado são centenas de mortes nas operações policiais e milhares de jovens sendo cooptados ou se inspirando nas facções para realizarem atividades criminosas ou iniciarem o uso de entorpecentes. Uma opressão sobrepõe-se a outra. Não há nada de progressista nas facções.

Apesar dos esquadrões de justiceiros se apoiarem no sentimento legítimo de revolta das massas com o crescimento da violência urbana, com destaque para os arrastões, o resultado só pode ser a formação de tribunais racistas espalhados pelas esquinas da Zona Sul. Os julgamentos, sempre sumários e repletos de sadismo, no lugar de reestabelecerem uma ordem ou tranquilidade públicas, colaboram com a expansão da barbárie e retroalimentam o ódio.

Para os lúmpens da pequena burguesia e do proletariado, o inimigo não é o grande capital, os grandes capitalistas, seus representantes e o Estado. Pelo contrário, veneram e invejam os grandes capitalistas na medida em que eles estão no topo do mundo, são fortes, fazem o que querem. Resta fetichizar o homem que porta uma arma, seja ele pago pelo Estado ou pelo lucro de uma atividade ilegal, sempre pronto para cometer atrocidades e demonstrando uma força acima de qualquer lei.

Apesar dos esquadrões de justiceiros se apoiarem no sentimento legítimo de revolta com o crescimento da violência urbana, o resultado só pode ser a formação de tribunais racistas espalhados pelas esquinas da Zona Sul / Imagem: Reprodução, Gabriel

A mídia burguesa, além de fazer da violência urbana um espetáculo gerador de telespectadores e interações nas redes sociais, forma uma imagem falsa da realidade que acua os trabalhadores. A raiz da violência urbana, que está no sistema econômico e político administrado pela classe de privilegiados e que só cruza as ruas em carros blindados ou de helicóptero, é atribuída aos de baixo, que de tão selvagens não param de se matar. Quando muito, é culpa da natureza humana ou faz parte da ação de forças sobrenaturais.

Quando os selvagens fogem ao controle, a burguesia oferece, através do seu Estado, operações militares punitivas e vingativas nos bairros mais pobres e milhares de ONGs, que levam o assistencialismo junto às ideologias do empreendedorismo e do identitarismo. Já que não há educação formal, emprego e salário dignos, já que a cidade do Rio de Janeiro é a capital com maior índice de informalidade do Brasil8, voilá, torna-te microempresário individual, “inicie uma startup, fique rico!”

Em suma, a violência urbana, especialmente na região metropolitana do Rio de Janeiro, é resultado da decomposição das classes sociais e de um capitalismo que caminha para a barbárie, ainda mais em um país que vai se apequenando na divisão internacional do trabalho. Na linha de frente das manifestações dessa degeneração, uma juventude que chegou ao ponto de pouco se importar se sairá gravemente machucada, presa ou até morta dos confrontos. Essa juventude é diariamente recrutada para o comércio de drogas, de armas, gangues de assaltantes, de justiceiros, milícias, polícias, e toda uma indústria de morte e destruição que cria lúmpens sanguinários em quantidade maior do que os que são mortos.

Uma solução imediata para garantir as liberdades democráticas de deslocamento, acesso à cultura, lazer, usufruto da propriedade pessoal etc., passa pela ação organizada da classe trabalhadora. São os trabalhadores os mais afetados pela violência urbana, desde dentro de casa até a chegada ao local de trabalho e nas horas livres. Logo, os sindicatos e as associações de moradores devem iniciar uma campanha de filiação e autofinanciamento para formar comitês de autodefesa dos bairros e locais de trabalho e lazer.

Essa está longe de ser uma solução definitiva, visto que o problema é sistêmico. Mas nós comunistas precisamos explicar para os trabalhadores que a polícia burguesa não tem capacidade para resolver nada, que ela é parte do problema. Sua “melhoria” significaria a expansão do massacre à juventude negra e proletária nas favelas e o fortalecimento de um instrumento que, já usado contra os movimentos sociais hoje, melhoraria seus músculos para atacar os movimentos de massa que se preparam no subterrâneo da luta de classes.

1 https://uenf.br/projetos/nuperj/files/2022/11/I-Dezembro-de-2022.pdf

2 https://g1.globo.com/economia/noticia/2023/02/27/contas-do-governo-tem-superavit-de-r-r-783-bilhoes-em-janeiro-diz-tesouro.ghtml

3 https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2811201033.htm

4 https://datampe.sebrae.com.br/profile/geo/rio-de-janeiro-3304557

5 https://agenciasebrae.com.br/economia-e-politica/pequenos-negocios-foram-responsaveis-por-8-a-cada-10-empregos-criados-em-outubro/

6 https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2023/12/06/soco-ingles-roupa-preta-lista-de-presenca-e-escolta-armada-justiceiros-criam-grupos-para-cacar-ladroes-em-copacabana.ghtml

7 https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2023/08/6697861-adolescentes-fazem-mutirao-nas-redes-sociais-e-se-organizam-para-roubar-celulares-no-show-do-alok.html

8 https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/06/05/rio-e-a-capital-com-maior-indice-de-informalidade-do-brasil-aponta-pesquisa-da-fgv-social.ghtml