Foto: Ramiro Furquim, Sul21

A saúde mental que o governo Bolsonaro quer para o Brasil: um projeto de sucateamento

No início do mandato de Bolsonaro (fevereiro de 2019), foi anunciada pelo Ministério da Saúde a liberação de compras de eletroconvulsoterapia (eletrochoques) como forma de tratamento da saúde mental, incluindo crianças. A notícia certamente assustou boa parte da população quanto à possibilidade de regresso a um tempo em que a desumana internação em manicômios, em que os pacientes eram torturados e aprisionados, muitas vezes sem direito a um contato com os seus familiares. Por outro lado, isso já era de se esperar de um sujeito que sempre demonstrou apoio à ditadura militar, explicitando uma doentia admiração pelo coronel do Exército Brasileiro, Brilhante Ustra, notório torturador durante o regime militar.

Ocorre que as intenções políticas iniciais anunciadas por Bolsonaro somadas às pretensões na atualidade por parte do governo ao que tange à saúde mental escondem um plano muito mais sórdido do que o resgate de aspectos desumanos da ditadura. Em meio à pandemia, o Ministério da Saúde se prepara para revogar várias portarias referentes às políticas conquistadas no âmbito da saúde mental, como é caso do programa De Volta para Casa, que visa à reinserção de pacientes com transtornos mentais à sociedade. Entretanto, é importante salientar que que os beneficiários do programa recebem uma quantia irrisória de R$240,00 dificilmente conseguem vagas em uma residência terapêutica, sendo esta alternativa mais adequada para pessoas que ficaram muitos anos internadas.

A questão é que o governo não quer responsabilidades, tampouco gastos com a população. Por isso, apoia a PEC 241 (ou 55) de congelamento das despesas públicas com a educação e a saúde por 20 anos. Assim, neste momento, constata-se que o Estado já está pondo em prática tal projeto. Mais do que isso, a aliança estabelecida entre o governo e a bancada evangélica vem se firmando como forma de dominar uma parcela da sociedade que depende de tratamento de saúde mental, como é o caso dos indivíduos com distúrbios psiquiátricos e usuários de drogas, que, à mercê do descaso do Estado, realizam “tratamentos” em clínicas ligadas à Igreja evangélica.

Assim, com a revisão da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) proposta pelo governo, e sem um amplo debate social a respeito do assunto, o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) deixará de atender os usuários de drogas, pois a ideia é que esse atendimento seja transferido para o Ministério da Cidadania. Isso sem contar a intenção de desconstruir as residências médicas, uma vez que as consideram vinculadas ao setor de assistência social e não ao da saúde. Da mesma forma, cogita-se a possibilidade de encerramento de atendimento terapêutico aos moradores de rua com transtornos psiquiátricos, que recebem tratamento por meio do programa Consultório de Rua. Todas essas pretensões do governo são bastante perigosas. Analisaremos as causas a respeito disso detalhadamente.

Primeiramente, é importante salientar que o desmonte do programa de saúde mental no Brasil não afetará apenas os pacientes, mas as suas famílias, as pessoas à sua volta, que convivem em maior ou menor grau com eles, bem como provocará desempregado na área da saúde psiquiátrica. Pacientes ficarão desassistidos, como é o caso de vários andarilhos, que muitas vezes apresentam graves distúrbios psiquiátricos e não podem ficar sem atendimento. Além disso, com o fechamento dos CAPSs – que é uma forma de tratamento em saúde mental que preserva a liberdade dos pacientes, isto é, evita a internação involuntária ao mesmo tempo em que busca o envolvimento da família no tratamento –, a tendência é que a política de internação compulsória volte a ser predominante no país.

Foto: Caroline Ferraz, Sul21
Em relação aos usuários de drogas, a tendência será a inserção de um programa de caráter religioso. Aliás, na realidade, isso já vem acontecendo há bastante tempo. Ocorre que se o plano de desmonte do governo entrar em vigor, a conversão à fé será a única escolha para essa parcela da sociedade, que vive sem esperanças de direitos sociais. Tudo isso numa situação em que o Estado teoricamente se afirme laico.

De toda forma, o tratamento antidrogas deve estar sempre vinculado ao conhecimento científico. Embora muitos casos de uso de drogas tenham motivações extremamente pessoais, uma parte significativa dos usuários, com destaque aos que usam crack, se entrega a tal condição de vida por não suportar as pressões sociais e econômicas da sociedade em que vivemos. Na verdade, pesquisas mostram que esses indivíduos especificamente intencionam, na maioria das vezes, é o direito à moradia, emprego educação e saúde. A dependência de drogas é sintoma de uma sociedade adoecida pela lógica do capital.

Há muitas denúncias de brutalidade e exploração nesses espaços criados pelas empresas religiosas, que afirmam estar atuando na recuperação dos usuários de drogas. Além de serem dopados com remédios constantemente, também são obrigados a servir como mãos de obra barata para essas empresas e/ou seus templos religiosos. Por isso, nem sempre suportam essas falsas casas de tratamento psíquico e voltam para as ruas. Por outro lado, ao resistirem, acabam sofrendo com a violência policial, que é uma constante nos espaços de uso de drogas. De toda forma, a verdade é que esses usuários têm se transformado em uma fácil fonte de lucro para a bancada protestante, afinal, pelo fato de esses dependentes químicos apresentarem transtornos psiquiátricos e desvios de conduta, as suas vozes são abafadas, o que os torna mais vulneráveis ainda nas mãos dessas sanguessugas capitalistas sem ter quem os defenda.

Sabe-se que durante o período da ditadura militar no Brasil, várias pessoas foram diagnosticadas como loucas, termo que é considerado um estigma, muito embora isso tenha sido algo bastante questionável tempos depois. Assim, mães solteiras e presos políticos, por exemplo, foram severamente maltratados em manicômios, sendo o hospício de Barbacena (MG) um dos destaques quanto às denúncias e às polêmicas envolvendo maus-tratos nas internações compulsórias durante os anos de chumbo. Por conta do tratamento desumano, iniciou-se uma luta nessa época contra os manicômios, que persiste até hoje. Nesse contexto, surgem os CAPSs.

No conto O alienista (1887), do escritor brasileiro Machado de Assis (1839-1908), a linha tênue que situaria o sujeito entre a normalidade e a loucura é posta em xeque. Na trama, o psiquiatra Dr. Simão Bacamarte se aprofunda em seus estudos sobre distúrbios mentais, mas acaba internando a população quase inteira de Itaguaí (RJ) na Casa Verde, um manicômio onde ele estava realizando os seus experimentos na área da saúde psíquica. Isso aconteceu porque em cada indivíduo Bacamarte percebia um traço diferente na personalidade que, para ele, seria algo determinante quanto à insanidade do sujeito. Esse texto foi publicado pela primeira vez em um período de grandes transformações no universo científico, fim do século XIX. No fim do enredo, o próprio psiquiatra resolve se internar sozinho na Casa Verde, uma vez que ele passa a se entender como o único normal na cidade.

Essa obra nos conduz a pensar sobre como é impossível não existir diferenças psicológicas se vivemos em um mundo tão desigual. Além disso, a revolta da Canjica, promovida pelo ambicioso barbeiro Porfírio, demonstra como o poder de domínio social influencia nos rumos da rotulação de normal ou louco. Isso porque o barbeiro, que, a princípio pretendia fechar a Casa Verde como um líder da revolta da Canjica, acabou se aliando ao Dr. Bacamarte por este ter o poder de internação da população de Itaguaí. Em síntese, Machado de Assis, por meio da literatura, nos conduz a refletir como o conceito de loucura é algo bastante questionável.

Nesse sentido, na atual conjuntura brasileira, compreende-se que o governo Bolsonaro tem um sórdido projeto de retirada de direitos, exploração e dominação social, e o caminho é pela fé. Vale ressaltar que isso não está restrito ao campo da saúde. No setor da educação, o governo anunciou a sua intenção em reservar uma boa parcela da verba proveniente do Fundeb para profissionais evangélicos, não vinculados à área educacional. Contudo, as sociedades evangélicas já possuem verba própria, através de arrecadamentos em igrejas. Isso sem contar que a formação desses supostos educadores religiosos é bastante duvidosa.

Aliás, vale destacar aqui o peso da atuação da pastora Damares Regina Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Bolsonaro. Com muitos fiéis sob sua influência, ela tem contribuído consideravelmente na construção de uma mentalidade infantil e subordinada ao sistema conservador burguês, através de uma lógica religiosa, em que o pensamento mágico é supervalorizado em detrimento do conhecimento científico.

Aliás, isso se constata pelo crescimento do pensamento religioso. Esse é certamente um assunto muito delicado de ser abordado, já que se cristalizou a ideia de que é preciso respeitar todas as religiões num país teoricamente laico. Porém não se pode ignorar como esses templos, vinculados ao Estado burguês, têm contribuído para a permanência dos pensamentos mágicos de muitas pessoas, afastando-as do conhecimento acumulado e embasado pela ciência. O caso polêmico de estelionato do pastor Valdemiro, que vendeu feijão mágico por mil reais aos seus fiéis evangélicos, é um exemplo bizarro dessa prática.

Nesse sentido, observa-se que o cenário político atual aponta para um grande projeto de destruição de conquistas públicas. Sendo assim, até quando iremos suportar o avanço deste monstruoso projeto?

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