A ditadura, os trabalhadores e a necessidade da frente única

Artigo publicado no jornal Foice&Martelo Especial nº 10, de 09 de julho de 2020. CONFIRA A EDIÇÃO COMPLETA.

Uma das questões mais urgentes para a esquerda na atual conjuntura passa pela frente única, construindo a unidade entre as organizações dos trabalhadores para lutar contra os ataques a direitos e derrubar o governo Bolsonaro. Contudo, essa necessária ação sempre esbarra nos equívocos das organizações que se dizem de esquerda, em especial por aqueles que se aferram à unidade com setores da burguesia na defesa da ordem e pelos sectários, que não entendem a necessidade prática da frente única. Com toda a sua complexidade, o contexto do golpe de 1964 e a ditadura que o sucedeu apresentam elementos importantes para analisar a situação política atual.

Conforme discutido em texto anterior, a maior parte da esquerda apoiava politicamente o governo João Goulart e suas “reformas de base” no contexto anterior a 1964. Nessa conjuntura, a posição das esquerdas não se limitava a defender a manutenção do mandato do presidente diante do golpe ou a defesa das reformas como parte de um programa de transição a ser superado na mobilização e organização dos trabalhadores, mas da compreensão de que seria preciso lutar por uma revolução democrático-burguesa e que, a partir da consolidação do capitalismo, poderia-se caminhar para o socialismo. Essa política, defendida pelo PCB e outras organizações, teve como consequência prática o fato de os trabalhadores não construírem uma auto-organização independente do bloco com a burguesia nacionalista, naquele momento encabeçado por João Goulart. Este, por sua vez, constantemente chamava os trabalhadores a confiarem nas instituições, inclusive nas Forças Armadas, e tentava a todo momento conciliar os interesses dos trabalhadores com os da burguesia e mesmo do imperialismo.

O desastre da política do PCB e de outras organizações teve um profundo impacto entre os trabalhadores e a juventude. Afinal, a ditadura iniciou um profundo massacre contra os trabalhadores, não apenas do ponto de vista da censura ou da repressão, mas também de ataques a salário e direitos. Além disso, as organizações políticas até então existentes passam por um processo de fragmentação, seja por conta da repressão, seja por conta do balanço político negativo sobre a política desenvolvida até 1964. PCB, PCdoB, Organização Revolucionária Marxista Política Operária (POLOP) e mesmo o pequeno Partido Operário Revolucionário (POR) trotskista passam por cisões das mais diversas, que, na maior parte dos casos, enfatizavam o erro de confiar na legalidade burguesa. Contudo, mesmo diante desse processo de discussão, poucas organizações, sejam as já existentes ou as novas, fizeram um efetivo balanço sobre as razões da derrota de 1964.

O PCB continuou a apontar que o centro da política deveria ser a manutenção da unidade com a burguesia. Em seu balanço, o partido chegou a apontar que teria tido uma postura sectária ao exigir de João Goulart mais do que seria possível naquela conjuntura. Em resolução do congresso realizado em 1967, o PCB afirmava que o partido teria deixado “de lado a necessidade de formular soluções concretas para as questões colocadas na ordem do dia, e apresentar ao governo e às massas alternativas viáveis que contribuíssem para o encaminhamento dos problemas e avanços do movimento nacionalista e democrático”. Portanto, entre outros equívocos, o balanço do PCB seria o de que o partido deveria ter assumido um claro papel como governo, organizando os trabalhadores para um projeto de defesa da democracia burguesa. Na ditadura, como desdobramento disso, o PCB defendia uma frente “bem mais ampla do que era aquela que tínhamos em mira antes do golpe”. Essa frente incluiria a “burguesia nacional”, uma abstração que somente pôde ser explicada pela compreensão equivocada do PCB de que haveria ainda resquícios feudais no Brasil, e até mesmo “outros setores das classes dominantes, cujos interesses são contrariados pela política do governo ditatorial”.

Como consequência dessa política, o PCB procurou construir nos sindicatos a unidade com o sindicalismo “pelego”, ignorando as formas de expressão que surgiram de modo independente na base do movimento operário. Por outro lado, ao buscar a unidade com os setores “democráticos” da burguesia, o PCB acabou priorizando ações políticas por dentro do partido de oposição consentido pela ditadura, o MDB. Essa política levou o PCB a se adaptar à estrutura sindical estatal e à legalidade eleitoral burguesa. No final da ditadura, o PCB se eximiu de construir por dentro o amplo movimento de massas que redundou na fundação do PT e da CUT, permanecendo atrelado até onde foi possível ao PMDB. Esse processo de adaptação à legalidade burguesa levou o PCB à sua completa falência e ao abandono do marxismo, simbolicamente marcado pela transformação do partido em PPS, em 1992.

Contudo, não era apenas ao PCB que cabiam os equívocos políticos. Carlos Marighela, um dos mais destacados militantes da luta armada durante a ditadura, não compreendeu todas as lições do golpe de 1964. Corretamente fez um balanço negativo da atuação do PCB, afirmando em 1966: “a resistência tornou-se impossível porque nossa política – no essencial – vinha sendo feita sob a dependência da política do governo. Quer dizer, sob a dependência da liderança da burguesia, ou melhor, do setor da burguesia que ocupava o poder”. Contudo, mesmo com esse balanço, escrito no ano anterior à sua expulsão do partido, Marighela não abandonou a estratégia de unidade com a burguesia, afirmando: “sustentamos – como antes – a necessidade de nossa aliança com a burguesia nacional, levando em conta não somente tudo o que dela nos aproxima, quando se trata de objetivos comuns na defesa de interesses nacionais, mas também tudo o que dela nos separa em questões de classe, tática, métodos, ideologia e programa”.

Embora essas análises fossem as hegemônicas na esquerda, outras apontavam caminhos diferentes, como os trotskistas organizados no POR. Essa organização, embora se constituísse em um pequeno grupo, tinha uma importante intervenção no movimento camponês em Pernambuco. Sobre o caráter da revolução, o POR afirmava, em novembro de 1963: “Nossa luta é para aprofundar, por meio da luta das massas, o processo da revolução. Se isso é feito em meio a golpes de Estado e a uma guerra civil, onde se defrontam de início duas alas burguesas, não deixaremos de ver os elementos revolucionários que nela se encerram e, intervindo a fundo contra a reação e o imperialismo, continuaremos a levar a batalha pela organização e luta das massas independentemente da burguesia”. Portanto, ao mesmo tempo que identificam a tarefa de lutar contra o golpe, apontavam para a necessidade de que deveria ser feita construindo uma organização independente do campo nacionalista da burguesia.

O problema maior do POR passava pela influência teórica internacional, em estrita ligação com o conjunto de elaborações feitas por Posadas. Naquele contexto, Posadas e a maior parte das demais organizações trotskistas se deixam influenciar pelo pablismo e sua política de “entrismo sui generis”, colocando-se como esteio de partidos stalinistas ou mesmo de movimentos nacionalistas em vários países. Um dos principais exemplos dessa política se deu na derrota da Revolução Boliviana, quando os trotskistas, mesmo dirigindo a Central Obrera Boliviana (COB), optaram pela unidade com a burguesia reunida no Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) na década de 1950. Embora essa política tivesse se mostrado desastrosa, continuava a reverberar em organizações de diversos países, como no Brasil, onde o POR identificava em Leonel Brizola uma “ala esquerda do reformismo burguês”. O POR afirmava, em maio de 1963, que o brizolismo se desenvolve “como uma força e um peso político que não tem nenhuma relação com sua base no seio da classe dominante. Esses setores são levados a evoluir e radicalizar-se, muitas vezes, por fora do que são os reais interesses da classe onde eles surgiram e além de todos os limites aceitos pela classe dominante”. Em termos práticos, ao semear ilusões de que uma parte da burguesia poderia ser uma aliada estratégica na revolução, o POR pouco se diferenciava do stalinismo defendido pelo PCB.

Nos anos seguintes ao golpe, além da fragmentação das organizações de esquerda e da continuidade da política de unidade com a burguesia defendida pelo PCB, um dos marcos fundamentais foi a aposta que pequenas organizações fizeram na luta armada. Embora pouco tenham conseguido avançar politicamente em suas ações, sendo marcadas por alguns assaltos a bancos ou em busca de armas, sequestros de diplomatas e, no campo, pela Guerrilha do Araguaia, a luta armada acabou tendo um forte impacto em meio a uma esquerda fragmentada e incapaz de fazer uma análise coerente sobre o golpe.

Sob impacto da Revolução Cubana e de processos de libertação em outros países, uma parcela significativa da esquerda brasileira abandonou a luta pela organização dos trabalhadores e da juventude. O trabalho clandestino, fundamental no contexto de ditadura, passou a se centrar na organização de conspirações em pequenos círculos, na maior parte dos casos isolados das lutas cotidianas dos trabalhadores. Esses grupos tiveram pouca importância nas principais lutas travadas nos primeiros anos da ditadura, protagonizadas pela juventude e pelas greves operárias em Contagem e Osasco, especialmente em 1968.

Nesse contexto, novamente foram os trotskistas a dar a melhor resposta à situação política. Em 1971, a Organização Comunista 1º de Maio (OC1M) fazia uma caracterização das mobilizações ocorridas em 1968, em que teria se observado “a classe operária e os trabalhadores de um modo geral se manifestando em todo país, por cima e contra as direções pelegas, em assembleias, greves, passeatas e ocupações de fábricas. O movimento estudantil, ao qual se ajuntaram professores, intelectuais, jornalistas e artistas, interveio de forma radical, caminhando cada vez mais rumo à união de suas lutas com as da classe operária”. Esse documento também fazia uma avaliação da atuação do PCB: “O pecezão que no período pré-golpe de 64 retinha os aparelhos que serviam de canais para a manifestação das massas, que era direção e atuava como freio dessas manifestações, com o seu comportamento pelego, decorrente de propostas puramente reformistas, esse pecezão, em 1968, recolheu sua cabeça ao casco para que as massas não a cortassem”.

Esse documento de 1971 também buscava apresentar uma análise da luta armada, destacando que ela teria arrastado setores da juventude. Segundo a OC1M, essa concepção militarista “teve por causa a crítica incompleta, parcial, da atuação do PCB, de onde saíram os principais dirigentes das organizações guerrilheiras (Marighella, Mario Alves etc.) mas, fundamentalmente, a ausência de uma organização de direção revolucionária que permitisse agregar a jovem direção que se forjou após 1964”. Como alternativa, essa jovem organização trotskista apontava que seria necessária “a constituição dos organismos independentes de combate da classe operária, os organismos de unificação, municipais, regionais, nacional, as oposições sindicais, os comitês de greve, os comitês de empresa, e sua organização máxima de direção revolucionária, o partido operário, indissoluvelmente fundamentado na concepção internacionalista da unidade do proletariado e da revolução, e da organização da IV Internacional”.

Esse e outros grupos tiveram papel importante no processo de reorganização da esquerda, a partir de um balanço da experiência do golpe e dos erros cometidos pela esquerda. Com a crise do POR e sua fragmentação, alguns dos grupos trotskistas criados a partir de suas cisões passaram, por um lado, a fazer um balanço dos equívocos do posadismo e, por outro, a construir pontes com organizações internacionais. Parte desse processo foi a aproximação entre a OC1M e a Fração Bolchevique Trotskista (FBT), que, a partir de um processo de discussão e unidade na luta, bem como de definição da linha política nacional e internacional, participaram da fundação da Organização Socialista Internacionalista (OSI) em 1976.

Considerando todo esse processo, pode-se destacar pelo menos duas questões que podem ser levadas em conta no presente. Uma primeira questão passa pela necessidade da organização da unidade da classe trabalhadora, independente da burguesia, o que se desdobra na questão estratégica da revolução socialista. Neste caso, não é possível semear ilusões na democracia burguesa falida ou que setores da classe dominante possam defender qualquer interesse dos trabalhadores. Uma segunda questão passa por buscar sempre a construção no movimento concreto dos trabalhadores, evitando os pequenos círculos ou ações de vanguarda sem nenhum impacto na luta de classes. Quando se aponta para a necessidade da frente única, se fala na necessidade de independência dos trabalhadores e pela construção nas fábricas, nas escolas, enfim, na base dos trabalhadores. Essa é a tarefa do momento, colocando no horizonte não apenas a derrubada do governo ou a revolução, mas a construção de uma nova sociedade dos e para os trabalhadores.