110 anos desde a Revolta da Chibata: o que temos a aprender com ela?

Artigo publicado no jornal Foice&Martelo Especial nº 20, de 26 de novembro de 2020. CONFIRA A EDIÇÃO COMPLETA.

Há 110 anos, no dia 22 de novembro de 1910, ocorria um dos mais importantes movimentos operários da luta contra o racismo no Rio de Janeiro: a Revolta da Chibata.

Na verdade, o que ocorreu, foi uma revolta contra a chibata. Um conjunto de marinheiros decidiram se colocar contra as leis racistas de raízes escravocratas que ainda ocorriam dentro da Marinha.

Quando um dos marinheiros, Marcelino Rodrigues Menezes, recebeu como punição 250 chibatadas na frente de seus companheiros marinheiros, como medida corretiva, a revolta contra os maus tratos, que já estava sendo organizada, teve que ser adiantada. Uma dessas lideranças era João Cândido Felisberto, um jovem negro, de voz serena, nascido no Rio Grande do Sul, que na juventude fora aprendiz de marinheiro. Com seu empenho e grande capacidade, o jovem marujo ganhou reconhecimento dentro de seus postos, tendo a oportunidade de viajar por muitos países da Europa, embarcado. Essas viagens fizeram João conhecer muitas culturas e povos, o que foi fundamental para ele perceber que a condição dos marinheiros do Brasil era uma das piores do mundo.

Uma das viagens mais importantes para sua construção, enquanto militante dos direitos dos marinheiros, foi sua viagem para a Inglaterra. O objetivo era aprender a manusear os navios de guerra que a Marinha Brasileira havia comprado da indústria inglesa, os encouraçados. Durante essa viagem, João Cândido teve contato com os militantes sindicalistas ingleses, que já estavam em um nível de organização muito maior que os brasileiros.

Uma das histórias mais latentes nessa época foi a revolta do couraçado Potemkin, que ocorreu durante a Revolução Russa de 1905 contra o Czar. Nessa revolta, os marinheiros russos se organizaram contra os maus-tratos e as péssimas condições dentro do navio, e apontaram os canhões contra a cidade, para que suas reivindicações fossem atendidas.

Durante esses anos de Marinha, João Cândido não apenas aprendeu com maestria as técnicas de manuseio do navio Minas Gerais, como também as táticas de organização sindical, e se tornou, cada vez mais, um dirigente respeitado entre seus companheiros de navegação. Assim, mesmo não sendo um socialista e tendo uma compressão de que apenas com o fim da sociedade de classes (e, portanto, com uma revolução socialista) seria possível pôr fim a todos tipo de desigualdade social, ele foi capaz de dirigir um dos movimentos mais importantes da luta contra o racismo no Brasil.

O nível dessa organização dos “amotinados” era muito grande e começou anos antes da revolta. Os marinheiros se organizavam em grupos que recebiam o nome de Comitês Revolucionários, e que tinham dirigentes em cada navio e repartição.

João Cândido participou da organização dessa luta porque entendia que não era mais aceitável que, após mais de duas décadas desde a abolição da escravatura (1888) e da proclamação da república (1889), ainda houvesse os antigos castigos da época da escravidão. Em entrevista ao Museu da Imagem e do Som -1968, em plena ditadura militar, o “almirante negro” responde ao repórter de onde surge essa ideia:

Dos próprios marinheiros. Para combater os maus-tratos e a má alimentação da Marinha. E acabar definitivamente com a chibata da Marinha. O causo era isto. Nós que vínhamos da Europa, em contato com outras marinhas, não podíamos mais admitir que na Marinha do Brasil, ainda um homem tirasse a camisa para ser chibatado por outro homem.

Assim, como em um grito de liberdade, cerca de 2400 marinheiros tomaram o controle dos encouraçados. Minas Gerais, São Paulo e o cruzador Bahia, prenderam os oficiais e apontaram os cerca de 40 canhões para a Guanabara, na época, capital do Brasil. E enviaram uma carta com as exigências ao presidente recém-empossado, Marechal Hermes da Fonseca. Carta esta, escrita pelo marinheiro conhecido como Mãos Negras, um dos poucos que eram alfabetizados entre os militares de baixa patente.

Foto: Carta dos Marinheiros. Acervo da Marinha. Disponível em: http://www.tve.com.br/wp-content/uploads/2015/12/carta.jpg

As reinvindicações eram básicas: fim dos castigos corporais, fim das humilhações, direito à instrução para os marinheiros e direitos trabalhistas básicos. Os marinheiros não queriam nada demais, apenas aquilo que todos nós, trabalhadores, queremos, mas que a sociedade de classes nos nega. Assim, a revolta, na verdade, não tinha um caráter revolucionário, no sentido de querer romper com as estruturas capitalistas e tomar o poder. Eles apenas queriam direitos básicos, garantidos pelas leis republicanas, mas que obviamente eram negados aos mais pobres, ou seja, os negros. Na realidade, as lideranças tinham ilusões nas forças armadas brasileiras. A revolta foi uma necessidade, uma ação em legítima defesa, como ocorre em todos os processos revolucionários, ou seja, como explica Trotsky, ninguém faz uma revolução de boa vontade porque deseja, ela é sempre fruto da necessidade, sempre é a “última alternativa”.

Os navios chegaram a disparar contra a capital, o que causou um terror imenso entre população e políticos. Algumas pessoas fugiram para bairros mais do interior com medo de que os revoltosos realmente destruíssem a cidade. Em um acordo com os marinheiros, o presidente prometeu cumprir as exigências e anistiar os marinheiros envolvidos, porém, essa promessa não foi cumprida. Na realidade, grande parte dos marinheiros foi expulsa da Marinha, alguns mortos e torturados. O próprio João Cândido foi preso, algum tempo depois, na Prisão da Ilha das Cobras, junto a outros marinheiros.

As condições na prisão eram desumanas, e os relatos apontam que a Marinha tentou assassinar esses presos. A prisão foi lavada com produto químico tóxico (ao que tudo indica, cal) e 16 presos morreram por asfixia durante aquela noite. Apenas dois sobreviveram, um deles era João Cândido.

Algum tempo depois ele foi solto, porém, um homem negro, desempregado, sem qualquer dinheiro e apenas com as roupas do corpo não era visto com bons olhos naquela época (e ainda não é). Em virtude disso, ele foi levado para uma clínica psiquiátrica e detido dois anos como doente mental. Alguns historiadores sugerem que esta foi mais uma ação planejada para deslegitimar sua luta com a alegação de que ele havia enlouquecido, e para que abafasse a revolta que havia tomado uma repercussão muito grande na impressa.

Na prática, João Cândido sofreu perseguição durante o resto de sua vida, sempre sendo demitido sem motivo aparente de vários empregos e, por fim, viveu uma vida humilde, como trabalhador de pesca na região do porto. Morreu sem qualquer reconhecimento da Marinha, sem anistia e sua família, sem qualquer apoio ou pensão. No fundo, as ilusões que João Cândido e outros marinheiros tinham sobre a Marinha e os militares que estavam no poder, fizeram ele não se ligar às lutas do movimento operário da época, como as greves gerais de 1918 e 1919, no Rio e em São Paulo. Com isso, por mais que tivesse um movimento organizado, forte e com reinvindicações legítimas, dificilmente suas lideranças conseguiriam manter as conquistas sem sofrerem uma forte repressão.

Os governantes não poderiam deixar passar esse tipo de ação, afinal “vai que a moda pega”, e as baixas patentes das forças armas começam a pegar as armas para enfrentar as injustiças. O controle das forças militares é sempre um difícil trabalho para os capitalistas, porque esse aparato de repressão pode sempre se rebelar e levar as armas para o outro lado, no caso, para o lado das reinvindicações da classe trabalhadora.

Inclusive, é isso que ocorre em muitos casos em que as forças armadas são usadas para reprimir a classe que se coloca em processo de insurreição; os militares de baixas patentes passam para o lado dos que eles estavam reprimindo, afinal, eles se reconhecem. Para a burguesia, é preciso um forte aparato de disciplina militar, além de um aparato ideológico que venda a ilusão de que os militares estão cumprindo uma missão. O nacionalismo (o patriotismo) é uma das principais ferramentas para manter um certo controle. Além disso, é preciso dar condições mínimas de vida para esses soldados, senão eles se revoltam, como ocorreu na Rússia, em 1905, ou aqui no Brasil, em 1910.

É justamente por isso que o governo Bolsonaro precisa aumentar o “orçamento de guerra”, porque ele sabe que, quando houver uma insurreição no Brasil, como está ocorrendo em outros pontos da América Latina e do mundo, ele precisa garantir o controle das baixas patentes ou elas se juntarão aos insurretos e levarão as armas  consigo.

Assim, é preciso uma ideologia que faça uma parcela da classe acreditar que o problema do Brasil é o comunismo, a esquerda, os antinacionalistas ou qualquer outro “espantalho” que sirva para desviar o foco da classe dominante, que é quem mais está lucrando com a crise, sobretudo na pandemia, enquanto o pobre fica cada vez mais pobre. Por isso, Bolsonaro faz alianças com os patrões e generais e tenta jogar os trabalhadores contra si mesmos, dividindo a classe, para que ela não enfrente o problema em sua raiz: o sistema capitalista. Esse cenário de confusão ideológica e de falta de uma direção revolucionária que una toda a classe trabalhadora em uma revolução, fez com que muitas lideranças se ligassem a movimentos que eram, na verdade, contrários aos interesses dos trabalhadores, como foi o caso de João Cândido, que chegou a se ligar aos movimentos fascistas na década de 1930, bem como outras lideranças do movimento negro. Por isso, é tão importante uma firme teoria revolucionária, que aborda a importância do materialismo histórico, para entendermos o papel do indivíduo na história, e não sermos levados por teorias antioperárias, que se disfarçam de teorias dispostas a nos ajudar, quando querem nos dividir e desarticular.

A revolta contra a chibata é um episódio da luta da classe operária e do movimento negro, que deve ser estudada e comemorada por nós. Porque ela, de fato, transformou a realidade dos marinheiros que vieram depois de João Cândido e dos insurretos. Ou seja, os marinheiros arrancaram da classe dominante uma conquista importante, apesar de pagarem o preço desse valente enfrentamento.

É nosso dever conhecer esse episódio, extrair aprendizados dele e ampliar a luta contra todo tipo de injustiça que nós, negros (e não negros), ainda vivemos no mundo capitalista. A revolta da chibata mostra que uma luta em escala muito maior, com a unidade de toda classe trabalhadora, pode arrancar vitórias ainda maiores, até o dia em que não precisemos mais lutar pela liberdade, pela igualdade e pelos direitos mais básicos.

É para essa luta, inspirados nos lutadores do passado, que convocamos todos a enfrentarem Bolsonaro, seu orçamento de guerra e  patrões e generais, para construirmos um governo dos trabalhadores, em que nenhum ser humano seja humilhado por outro em virtude da cor de sua pele ou qualquer outro tipo de opressão.