Imagem: Ricardo Stuckert, PR

Vigilância em Tempo Integral: a educação capixaba na vanguarda do atraso

A presunção da inocência parece ser invertida para a Secretaria de Educação do Estado do Espírito Santo. Os professores são, de antemão, considerados culpados e, portanto, obrigados a criar evidências que comprovem sua inocência. As acusações são várias: somos incapazes de planejar nosso ensino; somos responsáveis pelo fracasso escolar, preguiçosos e, por isso, devemos ser vigiados.

Esse insulto que ofende a categoria dos professores esconde um ataque brutal à liberdade de cátedra, que pressupõe a pluralidade de abordagens pedagógicas e métodos de ensino e de avaliação (Art. 206 da Constituição Federal e Art. 3º da LDB/ Lei n. 9.394/96 ). Os professores sentem na pele o estado avançado de podridão do capitalismo, em que a degradação social e a necessidade de avançar contra a classe trabalhadora não permite, sequer, que a legislação burguesa, nesse caso, a LDB, seja cumprida. 

É evidente que a educação no Brasil enfrenta inúmeras dificuldades, mas nem de longe o centro do problema é o desempenho do professor. Poderíamos falar das condições precárias de trabalho e de estudo que envolvem a comunidade escolar, intensificadas pelo acirramento da crise do capitalismo, que incide diretamente nos lares da classe trabalhadora com desemprego, insegurança alimentar, trabalho infantil, envolvimento com o tráfico, entre outros crimes. No entanto, aqui vamos nos concentrar no inferno que o próprio Estado tem criado para os professores.

Desde o ano passado a palavra “EVIDÊNCIA” ganhou um significado perverso na boca da gestão da educação capixaba. Por meio de comunicados internos e e-mails absolutamente arbitrários, a Sedu/ES impôs um regime de vigilância insuportável, no qual os professores são obrigados a tirar fotos (com seus próprios aparelhos de celular) e a criar toda sorte de evidências que comprovem seu trabalho. E o trabalho para Sedu/ES se limita em tratar dos DESCRITORES que definem o caminho para se alcançar as HABILIDADES da BNCC. Ou seja, há um esvaziamento dos conteúdos e uma desorganização de sequências lógicas e históricas que permitem aos estudantes um acesso mínimo ao conhecimento científico acumulado pela humanidade.

A Gestão do Monitoramento, como se autointitulam, é a Gestão da Vigilância. Após a reeleição, na última disputa pelo Governo do Estado, a mão de ferro pesou sobre a educação. Não podemos esquecer que Renato Casagrande (PSB) foi eleito com apoio da maioria das organizações de esquerda do ES, que fizeram a campanha com o slogan de “luta contra o fascismo e pela democracia”. Palavras abstratas, vazias, que iludiram grande parte dos trabalhadores da educação, em especial professores, e que não resistiu nem mesmo aos poucos meses posteriores à posse do novo mandato.

O ano de 2023, primeiro ano do atual mandato, começou com várias movimentações de diretores e demais agentes da gestão escolar, com o intuito declarado de investir no “monitoramento”. Obviamente que esse monitoramento é apenas um eufemismo para a vigilância absoluta, que é um dos elementos fundamentais de um governo autoritário. Será essa a democracia defendida pela direção da classe trabalhadora capixaba?

Não há dúvidas de que, todos os que fizeram a campanha de Casagrande na educação, se sentem constrangidos e desmoralizados, ou ao menos deveriam se sentir, caso tivessem qualquer compromisso com os interesses da classe e da categoria. Membros da direção do PSOL/ES chegaram a tirar foto com o secretário de Educação, Vitor de Ângelo, e a postar em suas redes, fazendo propaganda para o candidato do PSB. É a mesma política de adaptação do PSOL observada nacionalmente, com a submissão ao governo Lula e às direções do PT; a mesma política tão criticada do Sindiupes de submissão ao governo estadual.

A incapacidade de interpretação da realidade e a covardia da direção da classe e da categoria semeia apenas desesperança, desespero e depressão no seio da escola. O assédio moral das direções escolares, o abandono do sindicato (Sindiupes), a falta de tempo para planejar e executar as demandas vindas da Sedu, as dificuldades de ensinar o básico para os estudantes, tudo isso vem adoecendo a educação. Não é por acaso que se multiplicam os casos de professores afastados por doenças psíquicas, sem contar os acompanhados por tratamento psiquiátrico. É preciso dizer que a realidade escolar pode ser o oposto do que é atualmente, mas é necessário compreender a raiz do problema para se chegar a essa outra realidade.

O estado avançado de degradação do capitalismo, que Lênin definiu como o imperialismo, não permite que a burguesia exerça qualquer papel progressista na sociedade. Ao contrário, os direitos conquistados pelos trabalhadores, com duras lutas, durante anos, décadas, são atacados. Entre esses direitos está o de acesso à educação e à permanência dos estudantes, que inclui, tanto a oferta de matrícula, quanto o transporte, uniforme e demais elementos ligados à rotina escolar.

No que diz respeito à permanência dos estudantes na escola e da garantia da possibilidade de um aprendizado pleno, é incontornável tratar do desemprego ou da precariedade dos modos de subsistência da maioria massiva da classe trabalhadora, pois nenhum estudante é capaz de se concentrar e aprender com uma rotina exaustiva fora da escola, seja trabalhando formal e informalmente, seja assumindo responsabilidades familiares precocemente.

Todos esses elementos estão diretamente relacionados à profunda contradição entre o atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas e o modo de produção capitalista, que gera uma degradação moral, cultural, social e científica, sobretudo em países dominados como o Brasil. A divisão internacional do trabalho que bloqueia nosso desenvolvimento científico e tecnológico e, internamente, o mercado, que exige maior qualificação, está crescentemente reservado para os filhos da classe burguesa e pequeno-burguesa. Não é por acaso que os filhos da classe trabalhadora estão sendo empurrados para o exército social de reserva e para os trabalhos menos remunerados, geralmente em escala 6×1.

A ideologia que hoje rege a Sedu/ES, esconde a verdadeira causa do fracasso educacional: coloca a culpa nos professores como mera desculpa para controlar e bloquear qualquer conteúdo e método de ensino que venha a elevar o grau de consciência dos filhos da classe trabalhadora. Esse é o conflito que se expressa na luta entre o velho e o novo currículo, que coexistem na prática dos professores como resistência política, muitas vezes inconsciente, contra a negação do direito aos mais elevados graus de desenvolvimento científico. Ou seja, ao impedir o acesso à universidade e à formação técnica qualificada outro direito conquistado com a LDB é negado.

A conexão entre a Rotina Pedagógica e o Protagonismo Estudantil demonstra a perversão do Estado, pois desvia o foco dos reais motivos dos problemas escolares e desvia qualquer energia dos estudantes em direção ao avanço da consciência de classe, considerando consciência, não apenas um conteúdo, mas sobretudo a capacidade dos estudantes de se auto-organizarem.

Aplicando com os estudantes uma tática parecida com a da cooptação do movimento sindical, o Governo do Estado, em vez de incentivar a formação de grêmios estudantis independentes, construiu o conselho de líderes e os estudantes protagonistas. Esses estudantes exercem uma série de funções na escola e são dirigidos pelos diretores e pela Secretaria da Educação. Uma das funções dos líderes de turma, no que diz respeito à Rotina Pedagógica, é a de vigiar se o professor está cumprindo com a determinação da Sedu de trabalhar qual ou qual “descritor”.

Na prática, em vez de os estudantes se organizarem  com os professores para lutar por melhorias nas condições de trabalho e ensino, como por exemplo, equipando as escolas com laboratórios adequados ao ensino técnico e científico, garantindo recursos para a permanência dos estudantes, o Governo do Estado divide a classe trabalhadora, jogando os filhos dos trabalhadores contra professores. Os estudantes são seduzidos pelo discurso liberal e empreendedor, pela proximidade com o pequeno poder de diretores, superintendentes e  secretário de educação. O protagonismo estudantil esconde, na verdade, a cooptação ideológica dos jovens que apresentam alguma ânsia por agir na realidade escolar. Por outro lado o abandono dos estudantes à sua própria sorte, concentra todo o resultado do fracasso no indivíduo.

Todo o planejamento e execução do ensino capixaba é fundamentado em teorias alienígenas ao pensamento pedagógico brasileiro, tais como Edgar Morin e a ideia de Educação Integral, e ignora não só a falta de investimentos na educação, mas os constantes cortes realizados ao longo das últimas décadas. A filosofia da Educação Integral, que permeia, não apenas o Ensino em Tempo Integral, é outra das grandes falácias propagadas pelo Estado. Os estudantes são induzidos a se sentirem responsabilizados por seu fracasso financeiro e pessoal. Cadernos distribuídos pelo governo como “Meu dinheiro meu negócio” propagam a falácia do empreendedorismo individual como solução dos problemas sociais que assolam a juventude.

A Rotina Pedagógica é estabelecida por um documento publicado como Orientações Curriculares no site da Sedu/ES e determina os conteúdos, os objetos de ensino, os descritores e ainda encaminha atividades e slides com os conteúdos a serem trabalhados semanalmente. Vale apontar que, devido à falta de tempo para planejar essa série de elementos interligados (descritores+conteúdos+objetos de ensino), muitos professores, em especial de português e matemática, acabam cumprindo a determinação da Sedu/ES.

Muitos desses professores, embora não concordem com o método e distribuição de conteúdos, submetem-se, por medo de perder seus empregos, no caso dos professores em Designação Temporária (DTs) e efetivos em Estágio Probatório. Isso ocorre mesmo entre professores efetivos que já alcançaram estabilidade, pois sua avaliação está vinculada aos resultados alcançados pela escola nas Avaliações Formativas que são construídas com base nas exigências das Orientações Curriculares.

Aqui cabem inúmeros apontamentos e críticas, mas apenas tocando nos mais urgente e gritante, a sequência de conteúdos contém aberrações como a pressuposição de trabalhar todo o conteúdo de romantismo brasileiro em apenas uma ou duas semanas, trabalhar os gêneros textuais mais variados em duas ou três semanas. Além disso, as Avaliações Formativas Externas (Avaliações Diagnósticas), que são parâmetro para a colocação da escola no ranking estadual e para avaliação individual de todos os professores, cobram conteúdos e mesmo componentes curriculares que não fazem parte da grade curricular do estudante. Ou seja, os professores de biologia e geografia, por exemplo, são avaliados com base no desempenho que estudantes da 1ª série, que nunca foram seus alunos, alcançaram na prova.

A Gestão do Monitoramento, ou melhor, a Gestão da Vigilância, restringe a liberdade dos professores com o objetivo de fazer o Novo Ensino Médio dar certo, em especial, a educação em tempo integral. Não foram raros os gestores que, no início do ano de 2024, disseram que o objetivo da Secretaria da Educação do ES é que sejamos o modelo a ser aplicado em outros estados. Esse fato é extremamente preocupante, sobretudo considerando o papel ativo do Secretário Vitor de Ângelo na aprovação da Lei que amplia a oferta de vagas do Ensino em Tempo Integral no território nacional. Se estamos de fato na vanguarda do atraso, é fundamental que, enquanto professores, nos coloquemos à frente também da luta para barrar esse modelo de ensino.

Enquanto ações imediatas, compreendemos que precisamos nos organizar pelas seguintes pautas:

  • Fim do regime de vigilância! Em defesa da liberdade de cátedra!
  • Imediata suspensão da rotina pedagógica e restabelecimento da garantia do cumprimento da LDB, no que diz respeito à garantia da liberdade de métodos e abordagens sobre os dispositivos do currículo nacional e estadual;
  • Revogação Integral do Novo Ensino Médio, que deve continuar, pois apesar da vitória no restabelecimento das horas da formação geral básica, persistem problemas graves.

Nós, da OCI (ES) e do coletivo Professores Comunistas (ES) estamos na linha de frente dessa luta e convidamos os trabalhadores da educação capixaba a incorporar mais essa batalha conosco. Junte-se a nós!