Foto: Polícia Federal

Uma análise sobre o controle e o destino das armas de fogo no Brasil

No Brasil, o acesso legal ao treinamento militar e às armas de fogo é historicamente restrito ao seletíssimo grupo de oficiais das forças armadas, aos membros das forças de segurança (policiais e seguranças privados – estes apenas em serviço), assim como a parte superior da pequena burguesia e a burguesia, que conseguem pagar caro por esse acesso. O mesmo não se pode dizer aos grupos criminosos, que, auxiliados diretamente por essas forças, possuem arsenais de guerra.

Mesmo nos períodos políticos mais críticos, em que se requisitou ampliar as forças armadas pensando em assuntos externos, como na fundação do Exército Brasileiro, na Guerra do Paraguai e na Segunda Grande Guerra imperialista, essa situação não se alterou. Tais acontecimentos não estabeleceram um “armamento geral do povo” ou a abertura dos quarteis às massas de camponeses e operários. Quando a crise foi fundamentalmente interna, como nas insurreições republicanas, nos movimentos do tenentismo, na Coluna Prestes ou na Campanha da Legalidade de Brizola, os números de aderentes armados, seja às forças de repressão ou às revoltosas, não mudou a qualidade da situação do país como um todo.

Ao contrário do que dá a entender o discurso de Bolsonaro, que atribui à causa de um povo desarmado as políticas de “esquerda”, aos “direitos humanos” ou ao “comunismo”, ela é anterior aos governos do PT e a Nova República. Além disso, a história das revoluções socialistas e democráticas mostra exatamente o contrário do que diz Bolsonaro: os comunistas só conseguem dirigir um Estado ou ter influência decisiva em uma transformação radical se as massas de trabalhadores e camponeses estão armados.

Salvador Allende, ex-presidente socialista eleito no Chile, ao se apoiar apenas em setores “legalistas” das forças armadas e no parlamento para implementar medidas graduais de expropriação da propriedade privada, mostrou como uma situação política favorável pode terminar em um grande desastre. Enquanto negava armar o povo, por apostar em uma transição gradual ao socialismo, a “via chilena”, generais de alto escalão e a CIA ganharam tempo para organizar um golpe que acabou com a experiência revolucionária e instaurou uma carnificina sem grandes dificuldades.

Portanto, o desarmamento do povo tem origem nos interesses da classe que Bolsonaro representa: a classe capitalista. O regime militar no Brasil pós-1964, tão vangloriado por Bolsonaro, não deu um passo na direção do armamento do povo trabalhador e “de bem”. Pelo contrário, foi durante esse regime que se iniciou o desvio sistemático de armamentos de uso exclusivo das forças armadas para as gangues criminosas ligadas ao tráfico de drogas no Rio de Janeiro[1]. Hoje, armas são desviadas pelas forças armadas, assim como pelas forças de segurança, não só para gangues ligadas ao tráfico, mas também para grupos paramilitares mafiosos conhecidos como “milícias”. Se, no Rio de Janeiro, 33,1% da população vive sob comando das milícias[2] e 25,2% sob comando do tráfico de drogas[3], parte desse acontecimento é devido ao poder que essas armas têm de dissuadir qualquer intenção de resistência por parte do povo.

Por que o povo está desarmado?

Para um empregador de centenas de trabalhadores, um latifundiário ou mesmo para um gigante acionista de uma sociedade anônima com milhares de funcionários, ter trabalhadores armados e treinados em um país onde a desigualdade e a miséria não têm esconderijo seria colocar em risco não só a estabilidade do seu capital, mas a ordem social como um todo. Os capitalistas podem agir de maneira mais ou menos independente na tentativa de ganhar mercados uns dos outros, mas na hora de proteger sua dominação, a conclusão é unânime: o monopólio do uso da força, ou ao menos da parte mais importante dela, precisa ser estatal ou regulado diretamente pelo Estado.

A defesa da soberania de uma nação pelo povo em armas, na forma de uma tropa tão grande que abrange praticamente todos os cidadãos capazes de lutar, virou uma ideia perigosa. Os capitalistas de países semicoloniais, como o nosso, querem tropas bem equipadas e enxutas de combatentes profissionais que possam atuar rapidamente em prol da estabilidade social interna – essa sim, uma grande preocupação. As gangues com centenas de narcovarejistas ou de paramilitares fortemente armados são menos perigosos para o stablishment do que os operários de uma fábrica que, porventura, decidam se armar, mesmo que se armassem dentro dos limites da legislação burguesa.

Lutas salariais ou políticas amplas, até mesmo lutas específicas como contra a demissão de um colega em uma empresa, constituem um confronto entre grupos com interesses distintos. Mais precisamente, classes diferentes se enfrentam e disputam forças. O uso da força física e letal nem sempre é o elemento decisivo na luta de classes, mas, certamente, é seu elemento último. Um morto não reivindica, não organiza, não ataca, nem se defende. Sendo assim, quem detém superioridade letal costuma ter vantagem nas negociações. A superioridade armada e técnica de um aparato armado só pode ser superada pela superioridade numérica esmagadora ou pela divisão das tropas da repressão.

Bolsonaro representa os capitalistas, os patrões, e quer mantê-los protegidos pelas armas. Seu discurso pró-armas como forma de democracia é demagogia para o pequeno-burguês ver e acreditar que pode ser o exército de um homem só, ou que pode formar uma tropa com seus amigos da partida de futebol do final de semana. Isto é, são palavras jogadas ao vento, que junto a sutis flexibilizações na legislação, tentam seduzir indivíduos raivosos e insatisfeitos com a criminalidade dos grandes centros urbanos e que dispõem de recursos para comprar armas, assim como agradar o clube de especuladores da indústria bélica.

Para armar o povo, o primeiro grupo que Bolsonaro teria que enfrentar seria o de generais que compõem seu próprio governo, os quais nunca concederam o amplo direito de posse e porte de armas às praças – soldados, cabos, sargentos. Ora, para a população enfrentar grupos criminosos fortemente armados, defender a democracia, e se um líder de Estado quer fornecer alguma medida de incentivo a isso, a primeira deveria ser usar os quartéis para treinar massivamente trabalhadores e camponeses.

O papel das forças armadas brasileiras

A história da constituição das forças armadas no Brasil é repleta de insurreições e revoltas, grande parte vindas da parte intermediária e do topo da hierarquia, o que forçou os generais a se esforçarem para construir um oficialato puro de influências revolucionárias, principalmente dos comunistas.

Preferiram, então, construir uma força armada com poucas possibilidades de profissionalização nas bases, utilizando-se, principalmente, de uma seleção e formação cuidadosas do corpo de oficiais superiores. A obra Forças Armadas e Política no Brasil (2005), de José Murilo Carvalho, fornece-nos valiosas informações históricas baseadas em fontes documentais primárias.

Apesar de o Exército Brasileiro se divulgar como “povo em armas” e “braço forte que garante a soberania”[4], os slogans mais adequados a sua história seriam os de “classe dominante defendida e armada” e “braço forte que garante a submissão do país ao imperialismo e seu status colonial”. O golpe de 1964 seria impossível sem a união das forças armadas e dos serviços de inteligência dos Estados Unidos. As forças armadas brasileiras não são abertas ao povo, apesar de os generais tentarem influenciá-lo de maneira crescente.

A democratização das armas de fogo e do conhecimento militar na base das forças armadas seria uma tragédia no cumprimento da sua função atual de garantia da lei e da ordem. Se ocorresse em nosso país uma insurreição popular, como as que explodiram em vários locais do mundo em 2020, as praças armadas poderiam se dividir, ameaçar seus generais, decidir eleger seus superiores, criar uma exército paralelo, etc.

Enquanto o topo da hierarquia pode engordar comendo caviar, camarão e bebendo espumante em festas exclusivas pagas com dinheiro público[5], soldados, cabos e sargentos estão morando e se alimentando mal em favelas e bairros proletários com possibilidades quase nulas de carreira interna. Alguns cursos fornecidos internamente ajudam as praças a acessarem profissões melhores remuneradas no mercado de trabalho, mas esses cursos atingem apenas uma pequena minoria. As forças armadas estão longe de ser uma escola profissionalizante.

A maioria dos oficiais subalternos e praças que entram pelo serviço militar obrigatório serão defenestrados do serviço em até um ano, sem terem realizado treinamento militar consistente, a não ser o treinamento para obedecer a seus superiores e algumas noções de combate. Os verdadeiros comandantes serão formados na Escola Superior de Guerra e terão pouco contato com a base da tropa, encarada como serviçais. Diversos jovens que são jogados pela janela dos quarteis serão recrutados posteriormente pelo mercado ilegal das gangues do tráfico ou das máfias parapoliciais e milicianas. Uma parte também vai trabalhar no mercado legal ou semilegal das empresas de segurança privada.

E o serviço militar obrigatório? Não treinaria uma parte do proletariado pobre? A tradição histórica que deu origem ao serviço militar obrigatório foi a incorporação das massas da população em amplos programas de serviço e treinamento militar voltados para a guerra, como foi na Guerra Civil Americana e na Revolução Francesa[6]. No Brasil, o alistamento militar foi subvertido, atingindo seu ápice na Lei do Serviço Militar de 1939. Ao invés de ser utilizado para preparar o povo para defender interesses nacionais, ele serviu ao seu contrário: para ampliar o recrutamento de forma a diminuir a quantidade de negros, mulatos, camponeses e operários nas tropas, que, para o oficialato, eram elementos instáveis, passíveis de organizar revoltas e insurreições.

A Lei do Serviço Militar foi, portanto, um instrumento antidemocrático de filtragem, que buscou atrair para o interior do exército os filhos da burguesia e da pequena burguesia. Até 1918, esses jovens abastados eram orientados por suas famílias a integrar, exclusivamente, a Guarda Nacional. A extinção da Guarda Nacional foi uma vitória do comando das forças armadas, pondo fim à dualidade do serviço militar[7] e abrindo uma via única para esses jovens seguirem carreira nas armas. Hoje, o número de jovens que ingressam no serviço militar “obrigatório” é tão pequeno quanto insignificante. Uma parte deles, mesmo querendo, não consegue ingressar por “excesso de contingente”.

Em suma, o objetivo da lei foi ampliar a influência das forças armadas na sociedade, incorporando no oficialato os filhos de industriais, comerciantes e funcionários públicos de alto escalão, além de reduzir a influência da sociedade nas forças armadas, principalmente em nível de praças graduadas, os sargentos; e dos oficiais subalternos, os tenentes. Também, o serviço militar obrigatório no Brasil deu início ao fim da profissionalização total da tropa, pois, ao mesmo em tempo que aumentou os canais de ingresso, também criou vários de saída. A rotatividade dos subalternos e das praças se tornou uma regra e a carreira, uma exceção. Verdadeira vitória dos conservadores[8].

Portanto, um muro se ergueu ao longo do século XX entre os militares e a sociedade no Brasil. Cada revolta no interior da tropa, sejam aquelas com viés democrático ou até as insurreições comunistas, sem terem tido uma direção revolucionária capaz de unir conspiração militar com mobilização política de classe, serviu principalmente para os conservadores eliminarem, pouco a pouco, os elementos indesejáveis. As forças armadas se tornaram uma tropa semiprivada de mercenários bem pagos pelo Estado, com seus comandantes ideologicamente próximos aos interesses do capital e do imperialismo norte-americano. É um erro tremendo ver, neste momento, as forças armadas como um corpo de funcionários públicos em armas disposto a defender os interesses do povo.

Se levarmos em conta a possibilidade de intervenção militar constitucional (artigo 142 da Constituição Federal), mesmo com uma compreensão bastante larga de democracia em geral, percebemos o seu caráter semiprivado. Se, uma parte minoritária da sociedade, as forças armadas, pode utilizar, constitucionalmente, das armas para “garantir os poderes constitucionais”, assim como “a lei e a ordem”, seja com a autorização do presidente ou de qualquer outro poder constitucional, isso significa que a Constituição carrega consigo a possibilidade de uma ação independente do povo por parte de certas instituições burguesas. A constituição prevê a “legitimidade” de um golpe contra a maioria para garantir as palavras escritas no papel da Constituição e os interesses da maioria!

Se um presidente, diante de um momento de ascenso de greves e manifestações de massa, vê as ruas em chamas ou centenas de fabricas ocupadas em todo o Brasil por trabalhadores – que  apenas querem garantir seus empregos diante de uma forte crise, caso as negociações com os patrões e o judiciário falhem – as forças armadas podem ser convocadas por ele, constitucionalmente, para pôr fim à rebelião e reestabelecer a “ordem social” e os “poderes constitucionais”. Em terras tupiniquins, não é preciso estabelecer diálogos sólidos ou levar as negociações até o fim, pois o “cacete” está sempre em cima da mesa como forma de dissuadir os divergentes. A lei da intervenção militar constitucional legaliza um estado de exceção dentro do suposto estado democrático de direito. A propaganda em defesa do caráter democrático do Estado brasileiro serve apenas de fachada para uma estrutura autoritária e burocrática sob a qual ele realmente opera.

Repressão a greve de trabalhadores na Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), que resultou em 3 mortos e dezenas de feridos.

Portanto, as forças armadas regulares, integradas burocraticamente ao Estado burguês por generais leais, bem pagos e uma tropa profissional e enxuta, servem, em essência, para reprimir os trabalhadores e impedir qualquer mudança qualitativa no regime. É quase contar uma piada dizer que, com um presidente de esquerda ou socialista, as forças armadas atuais poderiam intervir em situações como as descritas acima para defender a “função social da propriedade” garantida no Artigo 5º da Constituição, expropriando os capitalistas e abrindo caminho para uma transição ao socialismo.

A fabricação e o comércio ilegal de armas

Além dos grupos minoritários que hoje têm acesso legal às armas, há uma grande rede ilegal que começa na fabricação de armas por empresas multinacionais como a Colt, Smith & Wesson, Sig Sauer, CZ, Taurus, entre outras, e chega até as favelas cariocas. Essas fabricantes se beneficiam da existência de grandes contrabandistas, os “senhores das armas”, que as fazem chegar até pequenas mulas que atravessam territórios e encontram grupos criminosos nos locais mais pobres do mundo.

Operário na fábrica de armas da gigante norte-americana Colt

Todo esse comércio ilegal só pode existir no Brasil, pois é regulado e protegido informalmente por parte do aparelho de repressão do Estado, isto é, por agentes corruptos de variados tipos. Alguns desses agentes afirmam defender ideias de justiça e pacificação social para organizarem “milícias” que ofertam “segurança”; outros apenas querem fazer fortuna o mais rápido possível. Todos eles estão unidos. O fato é que o comércio ilegal de armas não é feito pelas costas do Estado, e sim debaixo do seu nariz. A chegada de milhares de armas vindas de fábricas nos Estados Unidos, Suíça ou da Alemanha é pouco comentada na mídia burguesa, enquanto jovens negros usando chinelos e segurando fuzis AK-47 ou M16 podem ser facilmente manchete de capa nos principais jornais, caso a foto ou vídeo tenham qualidade razoável.

Nenhum traficante ou “dono do morro” constrói seu império sem estabelecer negociações com os comandantes de um batalhão local de polícia. Nenhuma força parapolicial feita para controlar territórios em nome da “segurança” é liderada exclusivamente por civis. Ou seja, para que as armas cheguem à favela, ou ao bairro proletário, é preciso que funcionários das forças armadas e de segurança participem de um balcão de negócios mortíferos.

Durante o governo Lula, quando foi aprovado o Estatuto do Desarmamento, traficantes realizavam simultaneamente uma corrida armamentista no Rio de Janeiro, acessando até mesmo armas que nunca seriam usadas e que serviam apenas ostentação no teatro da guerra, como metralhadores capazes de derrubar helicópteros ou perfurar a blindagem de veículos de guerra[9]. As armas vinham pelo Paraguai, eram desviadas dos paióis do Estado[10][11], ou simplesmente “roubadas, furtadas e perdidas”[12] dos acervos dos “CACs” (sigla que designa aqueles indivíduos que são registrados no Exército para serem caçadores, atiradores esportivos e colecionadores de armas).

O principal destino das armas não se alterou com o Estatuto do Desarmamento. Pelo contrário, intensificou-se o contrabando que– alimentado por uma crise econômica que empurra diversas tiranias locais para se enfrentarem na busca por novos territórios ou para tomar os negócios dos grupos rivais – cria novas ramificações e incorpora cada vez mais agentes do Estado no seu interior.

O acesso legal às armas

Tanto o discurso supostamente “pró-armas” de Bolsonaro, que prega a autodefesa em um dos países mais violentos do mundo, quanto o do “desarmamento” defendido pelos governos petistas, voltado para o fortalecimento do Estado de direito e para a humanização das forças policiais, mantêm intactas as estruturas sociais que fazem cada vez mais pessoas serem assassinadas por armas de fogo.

As tiranias paramilitares locais lideradas por agentes do Estado, os pequenos exércitos do varejo de drogas e o jogo do bicho continuam crescendo. Igualmente, os pistoleiros do latifúndio matam cada vez mais e de maneira mais ousada no campo, assim como a polícia se torna mais corrupta e sanguinária em suas operações. Mesmo com um forte controle à concessão da posse e do porte, o Brasil se mantém como um dos países mais violentos do mundo e um dos 10 com mais homicídios por armas de fogo.

Com as medidas de flexibilização do governo Bolsonaro, o acesso às armas se alterou muito pouco: escolas e clubes de tiro, times de Airsoft/Paintball, lojas de armas e grupos políticos pró-armas[13] cresceram nas grandes capitais brasileiras, e em número expressivo. Entretanto, apesar de terem triplicado o número de registros de armas no Brasil entre 2018 e 2020[14], estamos longe de um cenário de armamento do povo. As barreiras econômicas são tão decisivas quanto antes, assim como as políticas. Se surgisse uma organização política que decidisse fornecer treinamento militar gratuito para operários e camponeses, assim como agilizar o registro de milhares de armas de fogo para estes, ocorreria um verdadeiro escândalo em escala nacional.

Quem está se armando é apenas uma parte da pequena burguesia e de trabalhadores com melhores salários, como funcionários públicos ou empregados de camadas intermediárias e superiores da hierarquia de empresas privadas, que agora podem, legalmente, gastar pequenas fortunas comprando fuzis[15], pistolas de calibre restrito e treinar perto de casa em um clube de tiro – ou que ao menos decidiram fazer isso após a eleição de Bolsonaro e impulsionados por seu discurso. Milhares dessas armas compradas legalmente, como dissemos acima, vão acabar sendo “roubadas, furtadas e perdidas”, o que nos dá indícios de que essa flexibilização pode estar servindo apenas para aumentar o arsenal de grupos criminosos e para fornecer uma falsa sensação de segurança a alguns indivíduos.

Imaginemos a seguinte situação: a Central Única dos Trabalhadores (CUT) decide formar uma empresa privada de segurança para proteger suas sedes sem precisar terceirizar o serviço. O objetivo seria apenas reduzir custos. Após legalizada a empresa, os diretores contratam 1.000 trabalhadores em todo o Brasil e abrem um centro de treinamento em lugar esmo, de maneira que lá possam ser fornecido cursos profissionalizantes na área de segurança, de formação de vigilantes e reciclagem profissional. Nesse centro de treinamento, haveria armamentos, salas de aula, espaço para treino com armas de fogo, academia de ginástica, etc. Quanto tempo essa iniciativa iria durar sem causar um escândalo na mídia e os cutistas sendo acusados de guerrilheiros?

Outra situação hipotética: constando o aumento da criminalidade nos bairros operários e o número de trabalhadores vítimas de abusos policiais dentro das residências, a CUT decide incentivar os trabalhadores sindicalizados a obterem o registro e a posse de armas de fogo, assim como a realizarem cursos de tiro, segurança residencial e legislação. Agindo dentro da legalidade, os trabalhadores apenas manteriam as armas dentro de suas casas e instalariam câmera de vigilância para defender, quando necessário, seu patrimônio e garantir a legalidade das ações policiais. Para tornar esse objetivo economicamente viável, oferta-se uma linha de crédito para financiamento do equipamento e dos cursos por um banco popular. Quanto tempo duraria essa iniciativa estritamente legal? Ela iria adiante?

A barreira econômica ao armamento do povo

O custo de treinamentos, das armas e munições – além do tempo necessário para vencer toda a burocracia para comprá-las – ainda é altamente restritivo. Vivemos em um país onde metade dos trabalhadores tem renda menor do que um salário mínimo[16]. No mercado legal de armas, um revólver ou pistola custa no mínimo R$3.000, e não se consegue treinamentos básicos em clubes de tiro por menos de R$500. Para treinar alguns minutos em alvos de papel, se gasta, ao menos, R$100, incluindo o aluguel do local de tiro e algumas dezenas de munições de revólver/pistola.

Se não bastasse o alto custo para a compra do equipamento, antes ainda são necessário exames psicológicos com psicólogo credenciado na Polícia Federal – credenciamento que os permite cobrar valores acima da média –, de aptidão para manuseio de armas de fogo com um instrutor de tiro, também credenciado, documentos pessoais autenticados, comprovante de residência (12% dos brasileiros vive em favelas[17], ou seja, têm dificuldade ou impossibilidade de comprovar residência, isso sem contar os camponeses sem registro de residência). Pelo menos, mais R$600 gastos nesse processo documental preliminar.

Totalizando em nossa contabilidade, ter uma arma de fogo no Brasil exige, inicialmente, R$4.200 disponíveis, sem contar o custo mensal com manutenção do equipamento, treinamentos (aluguel de stand de tiro, mensalidade do clube de tiro, transporte até o local de treino, etc.) e munição. Mesmo um operário qualificado ou um trabalhador com remuneração acima da média nacional[18] conseguiria comprá-la apenas com imenso sacrifício pessoal e familiar. Diferentemente de um automóvel popular, não há linhas de crédito vindas de bancos privados ou estatais voltadas às armas de fogo. Portanto, mesmo que formalmente todos que cumprirem certos requisitos possam ter, ao menos, a posse de armas de fogo, poucos conseguirão pagar por uma.

Os verdadeiros beneficiados pelas medidas do governo Bolsonaro

As medidas de Bolsonaro de flexibilização da compra, posse e porte facilitam o desvio de armas e munição, que vão acabar em massacres nas favelas, nos bairros proletários e no campo. Os CACs (atiradores esportivos, caçadores e colecionadores) podem, após decretos do governo, comprar um número de munições e armamentos sem precedentes. Cada CAC pode agora ter até 30 armas de uso permitido e 30 de uso restrito, sendo que 5 mil munições por ano para armas de uso permitido e 1 mil para as de uso restrito[19]. Ou seja, qualquer civil que cumprir as exigências legais e tiver dinheiro para tal poderá ter em casa 30 fuzis calibre .762 que fazem 600 disparos por minuto, comprar 30 mil munições todos os anos para eles, além de ter 30 pistolas 9mm, .40 e .45, as mesmas usadas pelas polícias e forças armadas, comprando 150 mil munições para elas.

A medida mais ousada do governo foi, sem dúvida, a conhecido como projeto de lei anticrime (PL 6.341/2019). Elaborado sob comando do ex-juiz federal e ex-ministro da justiça Sérgio Moro, ele prevê o seguinte excludente de ilicitude: “o juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso ocorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Isso significaria que, se o acusado por um “excesso”, por exemplo, um policial que comete o homicídio de uma criança na favela durante operação, for julgado por um juiz simpático à ideia de que o “excesso” pode garantir de alguma maneira a ordem social, ele será absolvido por ter agido com “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.

Um presentão para os agentes das forças de segurança ligadas ao Estado, latifundiários e capitalistas. Dos coronéis do sertão aos chefes das máfias paramilitares que atuam dentro dos batalhões da polícia militar, todos poderiam ser absolvidos se agirem com “medo, surpresa ou violenta emoção”. Somando à flexibilização criminal para agentes de segurança e à flexibilização da compra de equipamentos, temos um convite público ao extermínio de grupos indesejáveis.

Estamos próximos do fascismo ou de um golpe militar apoiado por grupos armados?

A virulência da família Bolsonaro contra a esquerda, como declarações de disposição a derramar sangue contra o comunismo[20], a simulação pública de fuzilamento de petistas[21], entre outras barbaridades, demonstrou ser, em maior parte, demagogia para agradar uma base eleitoral reacionária. Explicarei porquê.

A burguesia pode ser muita coisa, mas aventureira certamente não é. Grupos de combate de paramilitares de extrema-direita atacando sindicatos, espancando operários em greve e matando lideranças de organizações dos trabalhadores causaria mais desordem social do que preservação da mesma. A construção de uma tropa com características fascistas é a cartada final da burguesia, o bote salva vidas para quando ela se vir com a corda no pescoço. No momento, não há uma organização proletária ou movimentos de massa que coloquem a corda no pescoço da dominação econômica e política da burguesia. A burguesia tropeça em suas crises por conta própria, contando, inclusive, com a ajuda das direções de grandes partidos que se reivindicam de esquerda, como PT, PCdoB e PSOL, para tentar superar a crise nos marcos do capitalismo.

Para que grupos de combate paramilitares contra sindicatos e organizações de esquerda se consolidem, é preciso não só de palavreado reacionário e ameaças emitidas por um presidente da república, mas também de rios de dinheiro dos capitalistas. São necessárias quantias astronômicas de dinheiro para que, grupos com inspiração fascista, formem seus quartéis e treinem oficiais e soldados ávidos por derramar sangue, assim como para que alcancem, com sua propaganda e agitação, alguma capilaridade popular.

Não há indício algum de que a burguesia tenha aberto seus bolsos para financiar grupos com táticas fascistas. O fascismo é uma teoria e um movimento social em que tropas de assalto financiadas pelo capital financeiro internacional se preparam para tomar o poder do Estado e instaurar um governo terrorista de ataque ao movimento operário. Bolsonaro nem mesmo consegue assinaturas suficientes para registrar um partido, o Aliança Pelo Brasil, para disputar as eleições em 2022, quanto mais animar a burguesia a abrir seus bolsos e financiar tropas de assalto.

A tese do PT de que Bolsonaro estaria mobilizando as milícias para uma tentativa de golpe de Estado em 2022[22] é manca, afinal, o que Bolsonaro tem a oferecer a essas milícias de tão especial que outro presidente da república também não possa oferecer? O negócio dos grupos paramilitares criminosos no Rio de Janeiro já estava prosperando mesmo antes de Bolsonaro; e, para que continuem prosperando, basta que o Estado continue deixando eles tomarem pouco a pouco mais agentes do seu aparelho e territórios pelas sombras. Se tudo continuar como está, com ou sem Bolsonaro, a tendência é que as milícias parapoliciais cariocas se expandam para outros lugares do Brasil, como um modelo de negócio criminoso e muito lucrativo.

Cenas do filme “Tropa de Elite 2”

Um confronto direto dessas forças mafiosas contra o aparelho do Estado, isto é, um descolamento delas para a realização de um assalto ao poder, seria um tiro no estômago da sua própria estrutura. Todo o sucesso expansionista atual está baseado na aliança dessas forças com o aparelho do Estado. Por que então enfrentá-lo? Além disso, para um assalto ao poder, seria preciso organizar regimentos com soldados armados e treinados, o que custaria milhões de reais em propaganda e agitação para convencer pessoas a se juntarem à causa, assim como armamentos caros. As máfias podem até receber alguma simpatia do povo devido aos serviços assistenciais que prestam nos bairros proletários, mas dizer que os trabalhadores ou a pequena burguesia vão se juntar à causa dos mafiosos para um golpe que preserve Bolsonaro na presidência beira o delírio.

A pequena flexibilização ao acesso às armas e o discurso virulento de Bolsonaro podem, sim, incentivar a construção de organizações com pretensões fascistas, mas elas precisam mais do que vaquinhas de financiamento coletivo na internet para crescerem. Quando a ativista Sara Winter se colocou como liderança para formar um grupo de combate de extrema-direita com disposição paramilitar, os “300 do Brasil”, o resultado da arrecadação foi risível: cerca de apenas 80 mil reais[23], sendo que boa parte foi bloqueada pela plataforma que gerenciava as doações[24].

Após demonstrações públicas com simbologia violenta contra o STF, o governo decidiu simplesmente recuar com o discurso agressivo contra as instituições que alimentavam os 300 do Brasil, encerrando qualquer demonstração de simpatia ao movimento[25]. Sara Winter acabou na cadeia e o “quartel general” da organização, uma chácara encontrada pela polícia com o formato de um centro de treinamento militar[26], foi desmontada e colocada sob investigação. Está aí, a contraexemplo, a tese da “fascistização” do Brasil, que é defendida em tom de desespero por ativistas e dirigentes de esquerda.

E os conhecidos no passado como “esquadrões da morte”? Podem retornar e se tornarem bandos fascistas? Nos anos 1950 e 1960, existiram a Scuderie Le Cocq, a Invernada de Olaria, os 12 Homens de Ouro da Polícia Carioca, entre outros conhecidos como esquadrões da morte. A Scuderie Le Coq costumava realizar chacinas e colocar em vias públicas os corpos de criminosos comuns procurados pela polícia junto a algum bilhete ou recado para a sociedade. Em suma, essas organizações faziam o papel de exterminar os elementos sociais indesejáveis e impor um regime de terror nos bairros mais pobres. A descriminalização ou o acobertamento dos crimes realizados por agentes do Estado facilita, sim, o surgimento de organizações paramilitares deste tipo.

Entretanto, os espaços que grupos como estes ocuparam das décadas de 1950 e 1960 perseguindo pobres, negros, aterrorizando as favelas, realizando julgamentos sumários de criminosos comuns e formando os futuros quadros da repressão dentro do regime militar pós-1964, hoje já está ocupado pelas máfias milicianas parapoliciais e pelas gangues de narcovarejistas, que realizam o mesmo trabalho repressivo sem fazer tanto escândalo e com acordos mais estreitos com a polícia.

Por fim, os grupelhos de pequeno-burgueses apoiadores de Bolsonaro compostos majoritariamente por homens jovens dispostos a gastar pequenas fortunas em treinamentos militares, campeonatos de Airsoft/Paintball e tiro esportivo, e que ganharam coragem durante o governo Bolsonaro para exporem publicamente seu pensamento reacionário, são, sim, capazes de gestar futuros quadros da contrarrevolução.

Contudo, hoje esses grupelhos reacionários não constituem uma força em quantidade significativa para atacar organizações e protestos de trabalhadores, assim como dependem exclusivamente do financiamento de seus membros e pouquíssimos apoiadores. Eles sabem que se cometerem qualquer atentado terrorista na atual conjuntura sofrerão inquéritos policiais e terão parte da sua estrutura desmontada. Como propôs Donald Trump ao grupo de extrema-direita Proud Boys nos Estados Unidos, a estes reacionários sobra apenas a opção de recuar e esperar, fazendo um trabalho paciente de preparação de suas lideranças e recrutar onde for possível.

Impedir que a crise econômica leve ao fortalecimento de grupelhos reacionários e máfias depende da construção de uma direção revolucionária para a classe trabalhadora que seja capaz de alinhar interesses históricos de classe e reivindicações imediatas da mesma. Só com uma classe trabalhadora consciente da sua força e do futuro luminoso que está pronto para nascer caso ela decida ser sua parteira, uma verdadeira democracia pode surgir, com um fuzil no ombro de cada trabalhador.

Referências

[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/chico-alves/2020/06/28/foi-na-ditadura-militar-que-fuzis-comecaram-a-ser-desviados-para-o-trafico.htm

[2] https://extra.globo.com/casos-de-policia/area-de-atuacao-da-milicia-ja-supera-do-trafico-na-capital-mostra-mapa-dos-grupos-armados-do-rio-de-janeiro-24699788.htm

[3] https://brasil.elpais.com/brasil/2020-10-19/milicias-ja-dominam-um-quarto-dos-bairros-do-rio-de-janeiro-com-quase-60-do-territorio-da-cidade.html

[4] Vade-Mécum de Cerimonial Militar do Exército: Valores, Deveres e Ética Militares (VM 10) (http://www.sgex.eb.mil.br/index.php/cerimonial/vade-mecum/106-valores-deveres-e-etica-militares)

[5] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2018/06/13/em-meio-a-crise-exercito-faz-licitacao-para-comprar-2-toneladas-de-camarao-caviar-e-espumante.htm

[6] Confira o artigo “Os marxistas e o serviço militar obrigatório”, de Evandro Colzani: https://www.marxismo.org.br/os-marxistas-e-o-alistamento-militar-obrigatorio/

[7] CARVALHO, J.M. Forças armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2006. p. 78

[8] CARVALHO, J.M. Forças armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2006. p. 78

[9] MANSO, B. P. A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia. 2002.

[10] https://www.gazetadopovo.com.br/republica/armas-de-quarteis-abastecem-faccoes/

[11] https://extra.globo.com/casos-de-policia/revelado-esquema-de-desvio-de-armas-dentro-do-exercito-24563398.html

[12] Foram “2.680 armas furtadas, roubadas ou perdidas desde 2003” (https://noticias.r7.com/brasil/em-12-anos-2680-armas-de-praticantes-de-tiro-foram-roubadas-furtadas-ou-perdidas-21092015)

[13] https://epoca.globo.com/brasil/grupo-armamentista-faz-eventos-pelo-pais-lobby-em-brasilia-mas-se-diz-traido-por-bolsonaro-24011979

[14] https://www.poder360.com.br/brasil/novos-registros-de-armas-triplicam-de-2018-a-2020/

[15] https://noticias.uol.com.br/colunas/reinaldo-azevedo/2020/06/05/no-recorde-de-mortes-bolsonaro-libera-fuzis-do-exercito-para-a-subversao.htm

[16] https://oglobo.globo.com/economia/mais-da-metade-dos-trabalhadores-brasileiros-tem-renda-menor-que-um-salario-minimo-24020453

[17] https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/15700-dados-do-censo-2010-mostram-11-4-milhoes-de-pessoas-vivendo-em-favelas

[18] https://www.em.com.br/app/noticia/emprego/2019/04/01/interna_emprego,1042820/media-salarial-do-brasileiro-e-de-r-2-340.shtml

[19] http://www.dfpc.eb.mil.br/index.php/noticias-menu/581-perguntas-frequentes-colecionador-atirador-desportivo-e-cacador

[20] https://amazonasatual.com.br/presidente-diz-que-bandeira-do-brasil-jamais-sera-vermelha/

[21] https://exame.com/brasil/vamos-fuzilar-a-petralhada-diz-bolsonaro-em-campanha-no-acre/

[22] https://pt.org.br/arrancada-para-o-impeachment-tera-carreatas-em-todas-as-regioes-do-pais/

[23] https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADtica/inqu%C3%A9rito-mira-vaquinha-de-r-80-mil-para-grupo-antidemocr%C3%A1tico-300-do-brasil-1.440233

[24] https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2020/05/27/interna_nacional,1151322/site-para-vaquinha-para-militantes-bolsonaristas-armados-acampamento.shtml

[25] https://istoe.com.br/nao-reconheco-mais-bolsonaro-diz-sara-winter/

[26] https://www.metropoles.com/distrito-federal/300-do-brasil-ocupou-chacara-com-estrutura-militar-pcdf-investiga