Uma análise crítica sobre a política de cotas raciais

A violência racista abordada neste artigo relaciona a opressão aos negros sob a perspectiva do marxismo, contrapondo as concepções racialistas do combate aos problemas enfrentados pelos trabalhadores, fazendo o balanço da política de cotas e apresentando uma saída socialista para a questão.

Nosso objetivo é apresentar uma análise marxista sobre a política de cotas raciais, com o objetivo de pensar essa política e apresentar propostas para combater o racismo. Enfocaremos a questão geral da política de cotas raciais e suas consequências para a luta anti-racista e o movimento negro.

As chamadas cotas raciais são parte do arcabouço de políticas denominadas compensatórias impulsionadas pela ONU, através das grandes fundações imperialistas tais como Fundação Ford, Fundação Kellog, entre outras, e aplicadas por governos de todas as colorações políticas, ao redor do mundo.

A discussão sobre a luta contra o racismo remonta a importantes debates dentro da luta de classes desde a época de Marx. Em alguns aspectos ela é muito parecida com a discussão sobre o nacionalismo, uma vez que assim como no racismo a ideia de nacionalismo tem a intenção de dividir a classe trabalhadora mundial, em “recortes” que ignoram (ou secundarizam) a questão da classe.

Marx e Engels empreenderam severas discussões a respeito desta questão, pois objetivamente é um dos elementos a ser seriamente levados em conta na luta pela unidade dos explorados e oprimidos contra a burguesia. Compreender a história do racismo, seu papel pernicioso e como foi construído é tarefa fundamental para os marxistas, pois é um importante componente das políticas de dominação ideológica da burguesia para dividir o proletariado, explorar mais ainda a todos e impor, por meio de uma ideologia abominável da existência de raças humanas, uma opressão e exploração injustificáveis.

Hoje, devido ao desenvolvimento e os avanços científicos, está provado cientificamente que não existem “raças humanas” biológicas. O mapeamento genético do DNA humano parecia que tinha resolvido o problema e colocado um ponto final nesta história. Mas, como todos sabemos, não é bem assim. O racismo continua a ser uma das armas do arsenal ideológico do imperialismo para subjugar e controlar as parcelas mais oprimidas e exploradas da classe trabalhadora.

Luta de raças ou luta de classes?

A ideia de que os seres humanos são organizados em raças nasce junto com o capitalismo.

Foi a necessidade da exploração intensiva de mão de obra, do aumento da produção de mercadorias com baixa tecnologia, que criou as premissas da escravidão nos períodos iniciais do capitalismo. A escravidão foi praticada sistematicamente pelos capitalistas no Haiti para a produção de açúcar; nos EUA para a produção de algodão necessário ao funcionamento das fábricas inglesas; na América espanhola os astecas e incas foram escravizados para a extração do ouro e da prata.

No Brasil, a escravidão de povos negros foi feita para a produção do algodão, do açúcar, para a extração de ouro e diamantes. Em outras palavras, toda a escravidão, tanto de negros como dos índios teve um objetivo: a acumulação primitiva do capital, o desenvolvimento do capitalismo.

Vale lembrar que a prática de escravidão era recorrente em muitos povos no mundo inteiro, inclusive como despojos de guerra, quando o ser humano “descobriu” que, além de acumular os bens de consumo das tribos e povos derrotados, também poderia se utilizar da mão de obra humana desses inimigos derrotados. A grande questão é que antes do advento do capitalismo a escravidão não estava associada ao racismo, ou seja, os escravizados não eram humilhados e inferiorizados em virtude de sua “raça” (até porque não havia sido formulada essa concepção de raça).

Os motivos da escravidão eram fundamentalmente de ordem econômica-produtiva, ou seja, os escravos eram usados como mão de obra para realizar as tarefas que as camadas dominantes da sociedade não queriam realizar. Estudos antropológicos afirmam que os escravos eram, em geral, tratados com dignidade. Há inclusive relatos históricos de escravos que tinham algum prestigio social: trabalhavam, estudavam, comandavam outros trabalhadores e até tinham outros escravos. Um célebre exemplo está na Bíblia. Moisés filho de escravos foi educado e tratado como um príncipe e depois se rebelou contra a opressão de seu povo. Outro exemplo está na peça de Shakespeare Otelo, século XVI, onde o principal protagonista Otelo é um general negro (chamado mouro na época).

Vemos que a questão da escravidão em si remonta aos interesses econômicos, e não ao fato de que o grupo escravizador entende que o grupo escravizado deve servir em virtude de ter características fisiológicas que os tornem inferiores geneticamente. Essa noção de uma “raça inferior” é em primeiro lugar um subproduto da anticientífica teoria das raças, que foi produzida para, justamente, inventar a mentira de que certas raças são inferiores, com o principal objetivo de justificar uma exploração desumana, e de arcabouço teórico para legitimar essa política no futuro.

Portanto, se houve o “pecado capital” da escravidão ela não foi por culpa dos “homens brancos serem brancos”, pois esse advento acorreu em todo o mundo, nos mais diversos povos, inclusive sendo utilizada por povos que supostamente seriam da mesma “raça”. E quanto à escravidão de africanos, esta foi uma decisão de uma classe social que surgia, a burguesia, e que buscava manter um sistema brutal de exploração da mão de obra. Portanto, essa classe emergente precisou inventar uma ideologia que permitisse perpetuar a perversa ideia de um ser humano explorar outros. Para isso contratou intelectuais que pudessem formular uma ideologia que justificasse essa exploração, inclusive com pretensões de ciência, para que pudesse ser “comprovado” que algumas raças são superiores.

“Os beneficiários dessa superexploração foram elites, ou mais precisamente classes dominantes na Europa em parcerias com suas sócias menores nas Américas e África.

O racismo – seja ele praticado contra os negros, contra os índios, ou contra qualquer povo – tem um objetivo hoje: dividir os trabalhadores e impedir que eles mostrem os verdadeiros culpados pela existência dessa excrescência: o capital e seus donos, os capitalistas” (Discurso Miranda em Audiência Pública no STF 5/3/2010).

Teorias de várias gerações alimentaram esta excrescência no imaginário das pessoas e da ideologia dominante e até hoje é utilizada para dividir os trabalhadores.

O enorme crescimento das lutas de classes no período após a Segunda Guerra Mundial arrancou muitas conquistas. Podemos dizer que uma delas foi a própria “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, uma resposta ao novo período depois da barbárie cometida pelos regimes nazifascistas e seu racismo. E esse novo período foi das lutas anticoloniais na África e pelos direitos civis nos EUA, onde um verdadeiro movimento de massas pôs fim às leis segregacionistas com base no racismo, no principal país imperialista.

E como surgiram as cotas raciais?

Junto com as nuvens veio a tempestade. O governo Lindon Jhonson revive a teoria das “raças humanas”. A frase “afirmactive action” (do falecido presidente J.F. Kennedy ), muito utilizada no período do fim das leis segregacionistas nos EUA, batiza as políticas chamadas de discriminação positiva, como: adoção de incentivos fiscais raciais, cotas raciais nas escolas, universidades, empresas, no funcionalismo público etc. Uma forma completamente distorcida das reivindicações de igualdade de direitos – o nome Direitos Civis, diz tudo – sintetizadas na célebre frase de Martir Luther King “quero que meus quatro filhos sejam reconhecidos pela força de seu caráter e não pela cor da sua pele”.

É neste momento que entra em cena a reacionária Fundação Ford com seus recursos bilionários introduzindo no Brasil, diga-se de passagem, após o apoio ao golpe militar de 1964. No Brasil encontra um terreno fértil, a partir de meados da década de 1980, distribuindo bolsas para pesquisas de aprofundamento dos estudos sobre as “raças humanas, sociologicamente falando”, formando “líderes sociais” e impulsionando a criação de muitas ONG’s. Só para citar um exemplo, no Brasil a ONG Geledes recebeu 2 milhões de dólares para a formação de monitores para os movimentos sociais (replicadores), mestrados e doutorados para elaboração de políticas públicas de “inclusão de negros”.

Estas políticas visam teoricamente combater distorções causadas pelas imensas desigualdades criadas entre negros e brancos. Uma coisa é certa, em todos os lugares onde essas políticas foram aplicadas elas não mudaram substancialmente as desigualdades sociais. É mais ou menos como os “Chás Beneficentes” que socialites realizam para arrecadar fundos para “ajudar” os pobres. A esmola é uma forma de criar um álibi para se manter o “status quo”. Essa é a característica principal das políticas compensatórias, dar uma máscara de assistência social para medidas que apenas oferecem “vantagem” para uma pequena parcela daqueles que precisam, e com isso servem de freio às lutas por mudanças radicais nas desigualdades sociais.

Ou seja, fica muito evidente que sua finalidade não é superar o sistema capitalista, mas, no máximo, apontar suas contradições e buscar interferências que busquem diminuir as desigualdades. O que para os marxistas é um equívoco, pois guarda ilusões de que o mundo capitalista (que inventou o racismo) seria capaz de se auto-avaliar e compensar sua perversidade, caso tenha suas contradições apontadas. Desse modo, rompe com a trajetória histórica do movimento negro que sempre pediu melhoria de vida pra todos os negros, e jamais se contentou com acesso apenas uma pequena parcela desse total, com o argumento de que “pouco é melhor que nada”.

A caracterização desta política fica cristalina na entrevista à revista Caros Amigos (Edição n. 35 de fevereiro de 2000) da filósofa Sueli Carneiro, líder da ONG Geledés: “Primeiramente, ação afirmativa não é necessariamente uma invenção norte-americana. É um instrumento de promoção da igualdade que foi usado em vários países, inclusive em Israel e nações africanas. Se eu fosse um ser revolucionário e tivesse perspectiva de transformação radical das condições materiais em que vivemos, evidentemente não levaria em consideração esse instrumento de promoção. Porém, como atuo dentro de uma realidade, dentro de um modo hegemônico, e tem uma ordem muito clara colocada aí, que é a ordem neoliberal, e como não há revolução à vista, então é preciso agir dentro das condições que se tem. Neste contexto de sociedade capitalista, as políticas de promoção da igualdade são instrumentos possíveis para diminuir as distâncias entre grupos raciais. Agora é evidente que as políticas de ação afirmativa costumam ser instrumentos que conseguem incorporar ou integrar rapidamente os indivíduos mais aptos de determinado segmento discriminado. Ou seja, ajuda aquele indivíduo que tem todas as condições de ocupar determinado cargo, mas não ocupa ainda pelo fato de ser preto, visto que vai ocupar o cargo que é lugar reservado aos brancos. A ação afirmativa consegue dar conta deste contingente, mas ela não dá conta da grande maioria que esta completamente excluída dos direitos mais básicos de cidadania. E isso se resolve com políticas públicas de combate à miséria e ao analfabetismo etc.”

De forma aberta e cristalina a filósofa apresenta seu programa reformista de abandono da luta por “transformações radicais” e de aprofundar este tipo de política nos partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais e mesmo no próprio estado. Ressaltando que na opinião da líder da ONG até aquele momento havia um “capitalismo neoliberal” que precisava ser combatido. A coincidência é que hoje mesmo sem o tal “neoliberal”, no quarto governo do PT, aprofunda-se a crise capitalista e a proposta continua a mesma – políticas de ações afirmativas – para “selecionar o mais apto”, novamente segundo a filósofa. 

A defesa das cotas raciais só ganhou notoriedade e foi absorvida pelos chamados movimentos negros (vale ressaltar que a maioria deles são ONG’s sustentadas por generosas verbas governamentais e fundações internacionais e parte expressiva da academia), a partir da Conferência Contra o Racismo Xenofobia e as Descriminações realizada em Durban, na África do Sul, sob o patrocínio da ONU em 2001. Uma expressiva delegação brasileira foi enviada sustentada pelo governo de FHC.

Não foi por coincidência que a primeira cota racial no Brasil foi implantada por portaria do Ministro do Desenvolvimento Agrário do governo FHC, Raul Jungman, em 2003. E logo depois, em 2004, foi aprovada por unanimidade pela Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro a primeira lei de cotas sociais com recorte racial. Em seguida o Conselho Universitário da UNB (Universidade Nacional de Brasilia) aprovou a cota racial “pura”, ou seja, independente do recorte social (renda) e os estudantes que se autodeclaravam “negros” tinham reserva de 20% das vagas da universidade. Aliás, nesta universidade que ocorreu o famoso caso dos gêmeos. Um foi declarado branco e outro declarado negro (sic)! Vale ressaltar que neste caso um estudante que se autodeclara negro e é filho do Pelé (um milionário) tem a vantagem da cota em detrimento de um filho de trabalhador que tem a pele clara.

As cotas deram certo ?

Esta afirmação é muito complexa, pois depende do ponto de vista de quem a afirma. O fato é que todas as estatísticas que tendem a fazer essa afirmação são controvérsias e polêmicas. Não teremos tempo de tratar cada um desses dados e elementos, mas gostaríamos de citar alguns.

Do ponto de vista do aumento de negros na universidade, os dados oficiais indicam que houve um crescimento no número de pessoas que se autodeclaram negros no ensino superior, por exemplo. Contudo essas afirmações são totalmente arbitrarias e tendenciosas, pois esses artigos quase nunca dão os números reais, preferindo trabalhar com porcentagens. Além do que se compararmos esse crescimento com o crescimento da população que se autodeclara negra (preta e parda) e o aumento das vagas no ensino superior, a verdade é que, proporcionalmente, esse números ou não apresentam crescimento ou na verdade apresentam uma proporção menor de negros pós-políticas de cotas.

Em um de nossos artigos explicamos como que em algumas universidades o número de negros não aumentou, como  ainda a quantidade de “pobres” diminuiu, e as notas de corte para negros estão cada vez mais altas. Em alguns casos, estão mais altas até que as notas de corte para não-cotistas, ou seja, o fato é que a política de cotas, além de não facilitar o acesso pra negros, ainda aumentou a concorrência (entre os próprios negros, e entre os não negros) e a dificuldade de acesso. Este é o caso da UFMG,  como poder ser visto no nosso artigo “Sobre o artigo “Nota de alunos que ingressam na UFMG pela cota já supera a dos não cotistas no último vestibular”

A verdade é que nos últimos anos o número de vagas no ensino superior aumentou muito entre as faculdades particulares e muito pouco nas universidades públicas. E como cerca de 80% das vagas estão na rede particular (que não possui cotas raciais) na realidade se aumentou o número de negros no ensino superior e isso se deu porque os jovens estão tendo que pagar para estudar, afinal, é nas particulares que estão a esmagadora maioria dos estudantes. E é lá, nas faculdades particulares, que estão a maioria dos jovens negros.

Na universidade pública estão uma parte ínfima de estudantes universitários, e os que estão nessas universidades em sua maioria vieram ou de escolas particulares ou de escolas públicas de alta qualidade de ensino, as parcelas mais “bem preparadas” da sociedade, seja negros ou não-negros.

Pra ter ideia, apenas cerca de 3 % dos candidatos que tentam o ENEM conseguem uma vaga na rede pública (171.401 vagas,  para os 6.193.565 candidatos) . E é dentro desses 3 % de “privilegiados” que estão inclusas as políticas de cotas (raciais ou não), ou seja, as cotas servem a uma pequena parcela daqueles que já estão dentro de uma rara parcela da sociedade: os que conseguiram “vencer” o vestibular. Mesmo se somarmos as bolsas integrais do PROUNI, esse número naõ chega a 5 %. Explicamos melhor esses números em nosso artigo “Entendendo o ENEM (parte 2): Quem alcança as melhores notas?”

E para os outros 97% que foram impedidos de entrar no ensino superior público o que resta?

Alguns conseguiram bolsas em faculdades particulares, outros terão de passar por todo tipo de sacrifício para pagar o ensino superior, outros ficarão mais um ano inteiro estudando, mas, a grande maioria, simplesmente irá desistir do sonho de fazer faculdade e será empurrado pro mercado de trabalho.

Pra esses 97% que não entram pra universidade pública, as cotas não servem. Pra eles não há política pública. Pra eles só há a meritocracia dizendo que eles não estudaram o suficiente, ou que universidade não é pra eles. E cada ano esse número aumenta.

Alguns irão defender, tal como Sueli Carneiro, que não há como fazer a “revolução” e por isso ajudar um pequeno grupo (os 20% dentro dos 3%) já é muita coisa. Outros ainda afirmam que essa pequena parcela de negros que estão entrando já servem de “motivação” para os outros que  não conseguiram e que a longo prazo essa “representatividade” irá surtir efeito.

Para nós, marxistas, não há como afirmar sobre as cotas na “psicologia” dos negros, afinal nunca tivemos no Brasil outra realidade a não ser esta: uma sociedade que nega o direito do negro de estudar e de ter uma vida digna. O que buscamos são soluções reais para a maioria, e nunca apenas para a minoria. E a única solução para a maioria é lutar por  vagas para todos no ensino superior.

Nesse ponto todos têm acordo? Na teoria. Pois, na prática, os marxistas além, de concordar com vagas pra todos, ainda explicam como será possível fazer isso, e mostram exemplos de outros países onde a universalização do ensino foi implantada, ou seja, militamos por essas bandeiras. Já aqueles que dizem que a revolução será “só daqui a 200 anos”, apesar de concordarem com vagas pra todos, preferem continuar defendendo as cotas, sem sequer defender o aumento gradual das vagas. Pois entendem que a conjuntura política não tem condições de responder essa pauta. Com isso, ao defender uma pauta reformista, não percebem que recusam a possibilidade revolucionária, que sequer é socialista: vaga pra todos.

É por isso que somos obrigados a afirmar que muitos movimentos negros estão fazendo uma política reformista, que se contenta em aceitar as migalhas que a burguesia dá pra nós negros, em vez de lutar pelo direito à educação pública e gratuita em todos os níveis. Essa parcela do movimento negro entende que ao criar uma “elite” negra ajudará outros negros a  terem representantes em quem se referenciar. Para nós esta é uma decisão de aceitação do capitalismo e sua política racista. Desse modo discordam da pauta histórica do movimento negro, por exemplo, do Partido dos Panteras Negras, que exigia educação para todos os negros, e não apenas para os mais “esforçados”.

Nós, negros e socialistas, seguimos com as reinvindicações dos Panteras Negras. Queremos todos os negros na universidade, e não apenas a minoria. Reafirmamos o que disse Bobby Seale, líder dos Panteras: “Nós não lutamos contra o racismo com racismo. Nós lutamos contra o racismo com solidariedade. Nós não lutamos contra o capitalismo explorador com o capitalismo negro. Nós lutamos contra o capitalismo com o socialismo. Nós lutamos contra o imperialismo com o internacionalismo proletário”.

Jamais nos limitaremos a pedir direito a lutar  em prol de uma pequena parcela do população, mesmo que estes sejam nossos irmão ou camaradas. Se queremos saúde, queremos para todos, se queremos transporte de qualidade, queremos para todos. Nunca poderemos aceitar que já que a não há médico para todos, ou transporte para todos, que ao menos uma parte dos negros sejam atendidas por essas políticas. Por mais que concordemos que nós negros (no Brasil) somos a parcela mais explorada e oprimida da classe trabalhadora.

É evidente que as cotas raciais, além de não resolver o problema da desigualdade social, criada pelo verdadeiro abismo de desigualdades entre as classes sociais no capitalismo tupiniquim, ainda serve como armadilha na captura das bandeiras históricas do movimento negro e da classe trabalhadora, limitando a reivindicação dos filhos dos trabalhadores ao que a classe dominante afirma ser possível.

Racismo e racialismo

Racialismo é a formulação de leis e políticas públicas baseadas na divisão da sociedade em raças humanas. Tal qual o racismo, o racialismo se baseia na existência de raças humanas. Combatemos a ideia de que uma raça é inferior à outra (racismo) ao mesmo tempo que combatemos a política de que o mundo é dividido em raças (racialismo).

Ambas são politicas criadas pela burguesia com o objetivo de dividir a classe trabalhadora, para que esta prefira “brigar entre si” enquanto os representantes da classe dominante continuam nos explorando e oprimindo mais e melhor a todos. Em nome da raça, coisas inomináveis foram feitas: o holocausto da Segunda Guerra Mundial; as leis Jim Crow nos EUA; o genocídio em Ruanda etc. Contudo as próprias instituições burguesas hoje começam a tentar mascarar todo seu racismo e ódio de classe, e fingem se preocupar com o fim do preconceito racial.

A burguesia não consegue, atualmente, defender o racismo abertamente. Não é mais aceitável pelas camadas mais oprimidas da sociedade, pelos negros e negras. Muitas instituições burguesas hoje fazem campanhas contra o racismo, como estivessem preocupadas com os negros, quando, na verdade, a raiz da opressão e exploração continuam intactas.

Um exemplo são as tropas brasileiras no Haiti, que coordenam a chamada MINUSTAH “Missão da Paz da ONU”. Na prática, são soldados brasileiros (muitos deles negros) que vão de fuzil policiar e manter a opressão sob nossos irmãos haitianos. Além de promover todo tipo de abuso (inclusive sexual) à juventude negra deste país pelas forças armadas brasileiras, o mesmo aparato repressor que atua na pacificação das favelas no Rio de Janeiro.

Enquanto a assembleia da ONU declarava que esta seria a década da erradicação da fome e da desnutrição, os soldados da ONU no Haiti (e em outros países) se aproveitam da situação de fome e miséria de inúmeras crianças para cobrar favores sexuais em troca de água e comida.

O racismo ainda é muito vivo e cruel. Todos nós negros percebemos, na pele, essa realidade. Porém, todos anos as instituições burguesas fazem campanhas contra o racismo e o preconceito, como se ela estivesse realmente empenhada em derrotar o racismo ou qualquer outro tipo de descriminação.

Contudo, a burguesia tem investido muito dinheiro e esforços para propagar o racialismo, pois ela sabe que a classe trabalhadora não aceitará as investidas racistas por muito tempo. Por isso está formulando uma ideologia que mantenha a classe trabalhadora dividida (por exemplo, entre negros e não negros) ainda que as discriminações e injúrias raciais não sejam tão evidentes. Essa política é o racialismo (além de outras), que mantem negros e não negros separados, como se as pautas dos negros fossem incompatíveis com as pautas dos que não são negros. Como se um jovem branco pobre já fosse privilegiado por ser branco, e por esse motivo, não possa discutir o racismo etc.

Essas politicas e seus conceitos têm sido usados pra ofuscar a visão dos militantes e nos fazer crer que estamos sozinhos nessa luta, que só nós negros temos o direito de lutar contra o racismo. Essa é uma teoria anti-histórica e anti-operária.

As pautas da classe trabalhadora vão melhorar a vida de todas as pessoas, independente de cor de pele, gênero, sexo, religião. Por exemplo: acesso universal ao ensino público e gratuito em todos os níveis, diminuição da jornada de trabalho sem diminuição de salário, contra a reforma da previdência, saúde e transporte públicos e de qualidade pra todos, fim da repressão da polícia etc.

Ao mesmo tempo que surgem as cotas raciais, aumentam a repressão à juventude (em especial da periferia e negra) e os assassinatos dos jovens. Não podemos aceitar que a polícia burguesa assassine jovens todos os dias na periferia, ou agrida quando eles ocupam escolas em busca de educação de qualidade.

A lógica burguesa é essa: dá com uma mão e tira com a outra. Em tempos de crise, ela nem sequer dá mais, só fica lembrando das migalhas que deu no passado. Basta vermos o que tem ocorrido com as bolsas dos alunos cotistas, as bolsas de Prouni e Fies e tantas outras políticas que estão sendo tomadas de volta com a desculpa da crise. Esse é o perigo do reformismo, pois nenhuma conquista foi para sempre, já que foram todas políticas “paliativas”.

Ainda falando sobre o racialismo, devemos estar muito atentos com as esperanças em suas filosofias, como por exemplo a representatividade. Como se alguém nos representasse por sua cor de pele e não pelo programa político que defende.

Em nossos artigo “Representatividade Importa?” escrevemos :

“Os EUA é atualmente o país que mais possui pessoas presas em todo o mundo. Além disso, um artigo do Opera Mundi explica que há mais negros presos hoje do que havia na época da escravidão (1850). Cerca de 70% do moradores de rua são negros e os condições sociais entre os negros são as piores dos últimos 25 anos.

A polícia norte-americana é extremamente racista, todos os dias moradores das periferias dos EUA, a maioria negros e latinos, morrem assassinados pelas forças de segurança.  Um caso que ganhou muita repercussão foi do pai de família Eric Garner, que foi enforcado em via pública por um policial.  O trabalhador foi acusado de reagir à prisão, pelo crime de vender cigarro varejo (o que é crime em Nova Yorque), e por isso foi enforcado pelo policial. Eric Garner repetiu sete vezes antes de morrer: ‘eu não consigo respirar’.  O policial foi absolvido. 

O que o presidente negro Obama falou sobre o caso? Nada!

Essa é a ‘representatividade’ que os negros norte-americanos contam. O racismo continua a ser uma das armas dos opressores e asfixia os trabalhadores e a juventude, seja de que cor for. Nem precisamos falar aqui dos povos de outros países que Obama assassina diariamente com as guerras que patrocina e estimula.

Esse é um exemplo cabal que representatividade de ‘recorte racial’ é inócua na luta contra o racismo. Um indivíduo pode ter a mesma cor que nós, mas não compartilhar dos anseios da nossa classe. Mas, se a pessoa tem um posicionamento de classe, certamente suas pautas vão tocar as questões que dizem respeito a qualquer pessoa dessa classe, independentemente da cor da pele.”

A luta contra o racismo e o racialismo

A luta contra o racismo é necessariamente uma luta contra o capitalismo. Pois esse sistema econômico utiliza o racismo como ideologia para separar a classe trabalhadora e manter a super-exploração das camadas mais oprimidas.

Dessa forma todas as pautas do movimento negro devem ser pautas que confrontem o capitalismo e denunciem a crueldade e exploração desse sistema. Nesse sentido, as políticas devem sempre representar uma melhoria na vida da maioria da população, mesmo quando essas pautas são de uma categoria especifica (como negros, mulheres, homossexuais etc), mas nunca devem se limitar a uma pequena parcela dentro dessa camada.

Desse modo defendemos vagas para todos no ensino superior. Esta não é uma utopia para depois da revolução. É possível, inclusive, que dentro do capitalismo que esse direito seja cumprida, pois defende que a Constituição seja cumprida.

Devemos também lutar contra a perseguição e assassinato da juventude (negra e não negra). Pois esta é a parcela mais oprimida da sociedade e é também a mais radicalizada, quem tem ocupados escolas, ruas e bairros na luta por sua liberdade e dignidade. Nesse sentido defendemos o fim da polícia militar. Essa policia racista que apenas persegue e mata pobre e preto nas periferias do país.

Defendemos também a unidade de classe. Unidade entre negros e não negros, homens e mulheres, héteros e homossexuais: “paz entre nós e guerra aos senhores”. Não podemos nos dividir, achando que assim seremos mais fortes, devemos manter uma frente única, lutando contra todos os ataques da direita: ajuste fiscal, reforma da previdência, lei antiterrorismo, agressão à estudantes em luta, cobrança de mensalidades em universidade públicas, retiradas de bolsas de estudos e todos tipo de ataques que afetam a juventude e classe trabalhadora como um todo. Só a unidade de classes é capaz de garantir conquistas para classe trabalhadora. A história das conquistas dos negros sempre foi junto com as conquistas de toda classe em luta unitária por suas reivindicações. É aí que se encontra a genuína luta contra o capitalismo.

Cabe aos marxistas e a todos revolucionários lutar pelos interesses imediatos e históricos da classe trabalhadora, ligando a luta cotidiana contra o racismo com a luta geral contra o capitalismo, pela abolição da ordem existente, onde 1% detém 50% das riquezas deste mundo. Neste momento de grave crise econômica e social no Brasil, não cabe fazer campanha contra cotas raciais, mas é nosso dever explicar pacientemente a todos lutadores a armadilha das chamadas cotas raciais.