O ABC da dialética materialista

O “ABC da dialética materialista” de Trotsky é uma breve e brilhante explicação da filosofia marxista. Foi escrito como parte de uma defesa do marxismo contra uma tendência revisionista de classe média no movimento trotskista norte-americano no final dos anos 1930, que tentava desafiar seus princípios básicos. Em oposição ao pragmatismo e ao empirismo, Trotsky defendeu o materialismo dialético como uma visão mais rica, completa e abrangente da sociedade e da vida em geral.

Introdução

Durante o período anterior, em particular desde a queda do Muro de Berlim, houve um ataque sistemático e odioso às ideias do marxismo. Das cidadelas do ensino superior ao púlpito, das instituições de livre mercado à imprensa venal, uma torrente ensurdecedora desabou sobre o ponto de vista marxista. A fim de confundir e desorientar o trabalhador com consciência de classe, nada é poupado pelos defensores do capitalismo para desacreditar o socialismo científico. Mas, dado que o capitalismo significou o retorno do desemprego em massa e dos males sociais do período entre as guerras, uma camada de trabalhadores e jovens está procurando respostas para os seus problemas. São cada vez mais impelidos pela dura realidade da vida sob o capitalismo a procurar uma saída.

O marxismo oferece aos trabalhadores e aos jovens que pensam uma compreensão clara da sociedade e de seu lugar nela. Oferece-lhes uma nova perspectiva de mundo. Oferece-lhes um futuro. Nas palavras de Lenin, “A doutrina marxista é onipotente porque é verdadeira. É completa e harmoniosa, e fornece aos homens uma concepção de mundo integral que é irreconciliável com qualquer forma de superstição, reação ou defesa da opressão burguesa” (As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo). As teorias do marxismo fornecem aos trabalhadores uma compreensão clara – um fio que é capaz de conduzi-los através do confuso labirinto dos acontecimentos, da turbulência da luta de classes e das complexidades da sociedade capitalista.

O marxismo não foi simplesmente arrancado da cabeça de Marx. Suas teorias representaram um grande desenvolvimento dos ensinamentos dos maiores representantes da filosofia, do pensamento econômico e do socialismo. Em essência, foi a fusão da filosofia alemã, da teoria econômica clássica inglesa e do melhor do socialismo francês. Essa combinação forneceu a base para uma revolução na compreensão. Foi o nascimento de uma nova visão de mundo, enriquecida e aprofundada pela experiência histórica da classe trabalhadora. Transformou as várias tendências do socialismo utópico em um socialismo científico enraizado na sociedade e na luta de classes.

Após a queda do Muro de Berlim, houve um ataque sistemático e odioso às ideias do marxismo Foto: Andreas Von Lintel, AFP
“O ABC da dialética materialista” de Trotsky é uma breve e brilhante explicação da filosofia marxista. Foi escrito como parte de uma defesa do marxismo contra uma tendência revisionista de classe média no movimento trotskista americano no final dos anos 1930, que tentava desafiar seus princípios básicos. Em oposição ao pragmatismo e ao empirismo, Trotsky defendeu o materialismo dialético como uma visão mais rica, completa e abrangente da sociedade e da vida em geral.

Ele explicou que a dialética “é a lógica da evolução. Assim como uma oficina mecânica em uma fábrica fornece instrumentos para todos os departamentos, a lógica é indispensável para todas as esferas do conhecimento humano … Conheço dois sistemas lógicos dignos de atenção: a lógica de Aristóteles (a lógica formal) e a lógica de Hegel (a dialética)“.

Os antigos gregos, há mais de 2.000 anos, deram uma contribuição notável ao desenvolvimento do pensamento humano. Eles procuraram entender o universo, a sociedade e o lugar do homem dentro dela. Como Engels explicou, “Os antigos filósofos gregos eram todos dialéticos natos e Aristóteles, o intelecto mais enciclopédico entre eles, já havia analisado as formas mais essenciais do pensamento dialético“. Eles começaram a ver as coisas não como fixas e sem vida, mas em seu desenvolvimento e movimento reais. Nas palavras de Heráclito: “Tudo é e não é, pois tudo está em fluxo, está em constante mudança, em constante existência e desaparecimento“. Esta descrição gráfica é o núcleo básico da dialética. Isso correspondia à visão de Engels:

“Para a filosofia dialética nada é final, absoluto, sagrado. Ela revela o caráter transitório de tudo e em tudo: nada pode perdurar diante dela, exceto o processo ininterrupto de vir a ser e desaparecer, de ascendência infinita do inferior para o mais alto” (Anti-Dühring).

No entanto, com os gregos, o pensamento dialético foi apenas uma antecipação. Sua principal contribuição, particularmente de Aristóteles, foi o desenvolvimento da lógica formal, que dominou por mais de dois mil anos. Suas três leis básicas são: a lei da identidade (uma coisa é sempre igual a si mesma, ou A é igual a A); a lei da contradição (se uma coisa é sempre idêntica a si mesma, não pode ser diferente de si mesma, ou se A é igual a A, nunca pode ser igual a não-A); a lei do terceiro excluído (tudo deve ser uma de duas coisas; quando duas afirmações opostas se confrontam, ambas não podem ser verdadeiras ou falsas; a correção de uma implica na incorreção de seu contrário). Essas leis inseparáveis, deduzidas da argumentação, eram os axiomas do sistema de pensamento de Aristóteles.

Essa concepção do raciocínio foi um grande salto para o pensamento e a compreensão humana e é a base de nossas percepções do dia a dia. Neste nível cotidiano, assumimos que as coisas são estáticas e imóveis. E, desse ponto de vista, a lógica formal nos serve bem. A compreensão dialética, por outro lado, “não se limita aos problemas diários da vida, mas tenta chegar a uma compreensão de processos mais complicados e profundos” (Trotsky).

Para fins do dia a dia e cálculos simples, a lógica formal ou o “bom senso” é suficiente. Porém, tem seus limites e, além deles, a aplicação do “bom senso” transforma a verdade em seu oposto. No fundo, é incapaz de avaliar a mudança e tenta se livrar de todas as contradições (que são inerentes à mudança). Se tentarmos compreender mais do que “coisas do dia a dia”, a lógica formal (ou vulgar) torna-se completamente inadequada. “O defeito fundamental do pensamento vulgar reside no fato de que deseja se contentar com impressões imóveis de uma realidade que consiste em movimento eterno” (Trotsky). Para fins cotidianos, é possível dizer se uma coisa está viva ou morta. Mas na realidade não é tão simples. Em que ponto está morto? Em que ponto a vida começou? Não é um único “evento”, mas um processo demorado.

Isso não quer dizer que a lógica formal seja inútil. Ao contrário, foi historicamente progressiva e necessária. Este método permitiu enormes avanços na ciência e no conhecimento. No entanto, ele atingiu seus limites. Embora subordinada ao pensamento dialético, é, no entanto, fora da lógica formal que a dialética surgiu. “O pensamento dialético“, explicou Trotsky, “está para o pensamento vulgar assim como um filme está para uma fotografia. O filme não proíbe a fotografia estática, mas combina uma série delas de acordo com as leis do movimento”. No entanto, a aproximação mais verdadeira e completa da realidade está contida no filme.

Essas leis da lógica, do pensamento, embora usadas por bilhões de pessoas, não são necessariamente reconhecidas por elas como tais. Por exemplo, todo mundo come de acordo com as leis definidas da fisiologia, mas nem todo mundo conhece essas leis ou como elas funcionam. Da mesma forma, em uma das peças de Molière, há um homem que aprende prosa pela primeira vez. Quando lhe explicam o que é, ele exclama: “Ora, tenho falado em prosa por toda a minha vida!

No entanto, os limites da lógica formal podem ser vistos claramente em relação à evolução. De acordo com a lei da identidade, um homem é essencialmente um homem e nada mais. Mas sabemos que não é esse o caso. De acordo com a evolução natural, o homem é um animal. No entanto, isso deve ser ampliado para dizer que o homem é mais do que um animal; o homem é uma espécie diferente de todos os outros animais. Somos, na realidade, duas coisas exclusivamente diferentes ao mesmo tempo. Esta é uma contradição que a lógica vulgar é incapaz de compreender. Só a dialética pode explicar esse fenômeno.

A contribuição de Hegel (1770-1831), o notável filósofo alemão, sob o impacto da Grande Revolução Francesa, foi o desenvolvimento de um novo sistema superior de lógica conhecido como dialética. Como já mencionado, os pensadores dialéticos originais foram os gregos antigos que tentaram compreender o universo e o lugar do homem nele. Mas, dado o baixo nível da ciência e da técnica, sua perspectiva se assemelha mais à natureza de conjecturas inspiradas ou antecipações de desenvolvimentos posteriores. Hegel estudou os grandes pensadores gregos e extraiu e desenvolveu seu método dialético, combinando-o com o conhecimento posterior e produzindo uma análise abrangente das leis da dialética.

A fraqueza fundamental da dialética hegeliana estava em que Hegel a combinava com uma visão idealista mística da vida. Foi a grande contribuição de Marx e Engels que libertou o método dialético de sua concha mística. A dialética de Hegel estava de ponta-cabeça, acreditando que o mundo material era um reflexo de uma “ideia universal” ou Deus. Marx explicou, ao contrário, que os pensamentos e ideias eram simplesmente o reflexo do mundo material. Portanto, a dialética hegeliana foi fundida ao materialismo moderno para produzir uma compreensão mais elevada do materialismo dialético.

Essas leis do materialismo dialético foram capazes de explicar as coisas em seu movimento e desenvolvimento. Enquanto a lógica formal era essencialmente a lógica de relações sem vida, rígidas e estáticas, a dialética era precisamente uma compreensão dos processos de movimento, contradição e mudança da vida real.

Segundo Engels, “Tudo tem sua existência no eterno via a ser e desaparecimento, em incessante fluxo, em inquietante movimento e mudança…” (Dialética da Natureza, p. 130). A dialética é a lógica da evolução, do movimento e da mudança. Seu ponto de partida é a própria realidade. Uma série de leis gerais da dialética, delineadas por Hegel, centradas em torno da lei da quantidade em qualidade (e da qualidade em quantidade), da unidade de opostos e da negação da negação, que operam em todo o mundo material. Cada um está organicamente ligado aos demais.

No entanto, essas leis não são eternas nem abarcam tudo. Como explicou Trotsky: “O materialismo dialético não é, obviamente, uma filosofia eterna e imutável. Pensar de outra forma é contradizer o espírito da dialética. O desenvolvimento posterior do pensamento científico criará, sem dúvida, uma doutrina mais profunda, na qual o materialismo dialético entrará apenas como estrutura material” (Em defesa do marxismo, p. 76). Já observamos que o pensamento dialético teve suas origens básicas há 2.000 anos. Foi desenvolvido sistematicamente por Hegel e, depois, aprofundado por Marx e Engels. Neste momento, a dialética marxista moderna é a compreensão e a aproximação mais cuidadosa da realidade, apreciando plenamente todas as suas contradições internas.

“’A dialética dá expressão a uma lei que se faz sentir em todos os graus de consciência e na experiência geral’, afirmou Hegel. ‘Tudo o que nos rodeia pode ser visto como uma instância da dialética. Temos consciência de que tudo o que é finito, em vez de ser inflexível, é bastante mutável e transitório; e é exatamente diferente do que é, e forçado a entregar seu próprio ser imediato ou natural e se transformar repentinamente em seu oposto'” (Enciclopédia, p. 128).

Movimento e mudança resultam de causas inerentes aos processos e coisas, de contradições internas. Essas tendências contraditórias dentro dos fenômenos representam, na realidade, uma unidade de opostos. Os opostos estão ligados em uma relação de dependência mútua, onde cada um é uma condição de existência do outro. Na sociedade de classes, por exemplo, o antagonismo de classe entre exploradores e explorados é um aspecto fundamental. Um não pode existir sem o outro. Essa contradição é a força motriz da mudança. No entanto, essas contradições não são estáticas, mas em processo de resolução. A derrubada da sociedade de classes levará à abolição das próprias classes. Novas contradições inevitavelmente se desdobrarão, mas serão de caráter fundamentalmente diferente, em um novo nível superior. Como observou Lenin: “antagonismo e contradição são totalmente diferentes. Sob o socialismo, o antagonismo desaparece, mas a contradição permanece” (Notas críticas sobre a economia de Bukharin do período de transição). Os elementos de antagonismo e conflito entre os homens desaparecem e dão lugar ao planejamento consciente e harmonioso da sociedade. As contradições permanecem, mas como não mais assumem a forma de antagonismos de classe, não exigem a dominação forçada de um conjunto de interesses materiais sobre outro.

A mudança ocorre não em linha reta e em um desenvolvimento contínuo gradual e suave, mas em saltos e revoluções. Toda mudança tem um elemento quantitativo, mas isso chega a um certo ponto, quando as mudanças graduais dão lugar a um salto qualitativo. Algo novo nasce, totalmente diferente de antes. Para explicar os desenvolvimentos, precisamos estudar os fatos. “A dialética não é uma chave-mestra mágica para todas as questões”, explicou Trotsky. “Não substitui a análise científica concreta. Mas direciona essa análise ao longo do caminho correto, protegendo-a contra andanças estéreis no deserto do subjetivismo e da escolástica” (Em defesa do marxismo, p. 52).

A mudança não é simplesmente uma repetição do passado. A resolução das contradições não significa que os estágios anteriores de desenvolvimento sejam repetidos exatamente, mas que se desenvolvem em um nível superior. Esta é uma das leis mais gerais da dialética, a negação da negação. Uma “lei importante e de grande alcance”, diz Engels. Movimento, mudança e desenvolvimento passam por uma série ininterrupta de negações. Mas o passado não é totalmente obliterado, mas superado e preservado ao mesmo tempo. Características do passado podem reaparecer, mas de forma nova e enriquecida. Como Marx explicou, o capitalismo surgiu através da ruína dos produtores individuais pré-capitalistas (sua negação). A abolição do capitalismo (sua negação) é realizada, a propriedade individual dos produtores é restaurada, mas em nível superior. O produtor, como partícipe da produção socializada, desfruta, então, como sua propriedade individual, de uma parte do produto social.

A tarefa do marxismo é desnudar as contradições e processos reais que se desenvolvem na sociedade, na economia e na política. Para traçar uma distinção clara entre a aparência e a essência das coisas. Para descobrir a verdade. Somente assim a classe trabalhadora e, em particular, suas camadas avançadas, verá claramente sua tarefa e missão históricas.

No entanto, como já explicamos, existem obstáculos no caminho da luta do trabalhador pela teoria e pela compreensão muito mais consideráveis dos que os rabiscos de padres e professores. Os homens e as mulheres obrigados a trabalhar muitas horas na indústria, que não tiveram o benefício de uma educação digna e, em consequência, não têm o hábito da leitura, encontram grandes dificuldades para absorver algumas das ideias mais complexas, particularmente no início. Porém, foi para os trabalhadores que Marx e Engels escreveram, e não para os estudantes “inteligentes” e para as pessoas de classe média. “Todo começo é difícil”, não importa de que ciência estejamos falando. O marxismo é uma ciência e, portanto, exige muito do iniciante. Mas todo trabalhador que atua nos sindicatos ou no Partido Trabalhista sabe que nada vale a pena se for alcançado sem um certo grau de luta e sacrifício. São os ativistas do movimento operário os visados pelo presente artigo. O trabalhador ativo que está preparado para perseverar. Uma promessa pode ser feita: uma vez que o esforço inicial seja feito para o enfrentamento de novas e desconhecidas ideias, as teorias do marxismo serão consideradas basicamente como diretas e simples. Além disso – e isso deve ser enfatizado – o trabalhador que adquire, através do esforço paciente, uma compreensão do marxismo se revelará um teórico melhor do que a maioria dos estudantes, apenas porque ele ou ela pode apreender as ideias não só no abstrato, mas de forma concreta, como aplicado à sua própria vida e trabalho.

Em última análise, a filosofia marxista é um guia para a ação. “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de várias maneiras; a questão, no entanto, é mudá-lo” (Karl Marx, Teses sobre Feuerbach).

Rob Sewell,
18 de abril de 1994.

O ABC da dialética materialista

A dialética não é ficção nem misticismo, mas uma ciência das formas de nosso pensamento, na medida em que não se limita aos problemas cotidianos da vida, mas tenta chegar a uma compreensão dos processos mais complicados e profundos. A dialética e a lógica formal mantêm uma relação semelhante àquela entre as matemáticas superiores e as matemáticas elementares.

Tentarei aqui esboçar a essência do problema de uma forma muito esquemática. A lógica aristotélica do silogismo simples parte da proposição de que “A” é igual a “A”. Este postulado é aceito como um axioma para uma infinidade de ações humanas práticas e generalizações elementares. Mas, na realidade, “A” não é igual a “A”. Isso é fácil de provar se observarmos essas duas letras sob uma lupa – elas são bastante diferentes uma da outra. Mas, pode-se objetar, a questão não está no tamanho ou na forma das letras, uma vez que são apenas símbolos para quantidades iguais, por exemplo, um quilo de açúcar. A objeção não vem ao caso; na realidade, um quilo de açúcar nunca é igual a um quilo de açúcar – uma balança mais precisa sempre revela a diferença. Novamente, pode-se objetar: mas um quilo de açúcar é igual a si mesmo. Isso também não é verdade – todos os corpos mudam ininterruptamente em tamanho, peso, cor etc. Eles nunca são iguais a si mesmos. Um sofista responderá que um quilo de açúcar é igual a si mesmo “em dado momento”.

Além do valor prático extremamente duvidoso desse “axioma”, ele também não resiste à crítica teórica. Como devemos realmente conceber a palavra “momento”? Se for um intervalo infinitesimal de tempo, então um quilo de açúcar está sujeito, durante o curso desse “momento”, a mudanças inevitáveis. Ou o momento é uma abstração puramente matemática, ou seja, um tempo zero? Mas tudo existe no tempo; e a própria existência é um processo ininterrupto de transformação; o tempo é, portanto, um elemento fundamental da existência. Assim, o axioma “A” é igual a “A” significa que uma coisa é igual a si mesma se não mudar, isto é, se não existir.

À primeira vista, pode parecer que essas “sutilezas” são inúteis. Na realidade, têm um significado decisivo. O axioma “A” é igual a “A” parece, por um lado, ser o ponto de partida de todo o nosso conhecimento e, por outro, o ponto de partida de todos os nossos erros. Fazer uso do axioma “A” é igual a “A” com impunidade só é possível dentro de certos limites. Quando as mudanças quantitativas em “A” são insignificantes para a tarefa em questão, podemos presumir que “A” é igual a “A”. Essa é, por exemplo, a maneira pela qual um comprador e um vendedor consideram um quilo de açúcar. Consideramos a temperatura do sol da mesma forma. Até recentemente, considerávamos o poder de compra do dólar da mesma forma. Mas as mudanças quantitativas além de certos limites se convertem em qualitativas. Um quilo de açúcar submetido à ação da água ou do querosene deixa de ser um quilo de açúcar. Um dólar nas mãos de um presidente deixa de ser um dólar. Determinar no momento certo o ponto crítico onde a quantidade se transforma em qualidade é uma das tarefas mais importantes e difíceis em todas as esferas do conhecimento, incluindo a sociologia.

Todo trabalhador sabe que é impossível fazer dois objetos completamente iguais. Na elaboração de rolamentos de bronze em rolamentos de cone, um certo desvio é permitido para os cones, mas não deve, entretanto, ir além de certos limites (isso é chamado de tolerância). Ao se observar as normas de tolerância, os núcleos são considerados iguais (“A” é igual a “A”). Quando a tolerância é excedida, a quantidade se converte em qualidade; em outras palavras, os rolamentos de cone tornam-se inferiores ou completamente inúteis.

Nosso pensamento científico é apenas uma parte de nossa prática geral, inclusive da técnica. Para os conceitos também existe “tolerância”, que é estabelecida não pela lógica formal que surge do axioma “A” é igual a “A”, mas pela lógica dialética proveniente do axioma de que tudo está sempre mudando. O “senso comum” se caracteriza pelo fato de que excede sistematicamente a “tolerância” dialética.

O pensamento vulgar opera com conceitos como capitalismo, moral, liberdade, Estado dos trabalhadores etc., como abstrações fixas, presumindo que o capitalismo é igual ao capitalismo, a moral é igual à moral etc. O pensamento dialético analisa todas as coisas e fenômenos em sua mudança contínua, embora determinando, nas condições materiais dessas mudanças, aquele limite crítico além do qual “A” deixa de ser “A”, um Estado operário deixa de ser um Estado operário.

O defeito fundamental do pensamento vulgar reside no fato de que deseja se contentar com as impressões imóveis de uma realidade que consiste em movimento eterno. O pensamento dialético dá aos conceitos, por meio de aproximações sucessivas, correções, concretizações, uma riqueza de conteúdo e de flexibilidade; diria mesmo, certa suculência que, até certo ponto, os aproxima dos fenômenos vivos. Não o capitalismo em geral, mas um determinado capitalismo em uma determinada etapa de desenvolvimento. Não um Estado operário em geral, mas um determinado Estado operário em um país atrasado e sob cerco imperialista etc.

O pensamento dialético está para o pensamento vulgar assim como um filme está para uma fotografia fixa. O filme não exclui a fotografia fixa, mas combina uma série delas de acordo com as leis do movimento. A dialética não nega o silogismo, mas nos ensina a combinar os silogismos de forma que nos levem o mais próximo possível da compreensão de uma realidade em eterna mudança. Hegel em sua Lógica estabeleceu uma série de leis: mudança da quantidade em qualidade, desenvolvimento através da contradição, conflito entre forma e conteúdo, interrupção da continuidade, mudança de possibilidade em inevitabilidade etc., que são tão importantes para o pensamento teórico quanto o silogismo simples para as tarefas mais elementares.

Hegel escreveu antes de Darwin e antes de Marx. Graças ao poderoso impulso dado ao pensamento pela Revolução Francesa, Hegel antecipou o movimento geral da ciência. Mas, por ser apenas uma antecipação, embora de um gênio, recebeu, de Hegel, um caráter idealista. Hegel operou com sombras ideológicas como a realidade última. Marx demonstrou que o movimento dessas sombras ideológicas não refletia nada além do movimento de corpos materiais.

Chamamos nossa dialética de materialista porque suas raízes não estão no céu nem nas profundezas de nosso “livre arbítrio”, mas na realidade objetiva, na natureza. A consciência surgiu do inconsciente, a psicologia da fisiologia, o mundo orgânico do inorgânico, o sistema solar das nebulosas. Em cada degrau dessa escada de desenvolvimento, as mudanças quantitativas foram transformadas em qualitativas. Nosso pensamento, incluindo o pensamento dialético, é apenas uma das formas de expressão da matéria em mutação. Não há lugar neste sistema nem para Deus nem para o Diabo, nem para a alma imortal, nem para as leis e normas morais eternas. A dialética do pensamento, tendo surgido da dialética da natureza, possui, consequentemente, um caráter inteiramente materialista.

O darwinismo, que explicou a evolução das espécies por meio de transformações quantitativas passando a qualitativas, foi o maior triunfo da dialética em todo o campo da matéria orgânica. Outro grande triunfo foi a descoberta da tabela de pesos atômicos dos elementos químicos e, posteriormente, a transformação de uma elemento em outro.

A essas transformações (espécies, elementos etc.) está intimamente ligada a questão da classificação, tão importante nas ciências naturais quanto nas sociais. O sistema de Linnaeus (século 18), partindo da imutabilidade das espécies, limitava-se à descrição e classificação das plantas de acordo com suas características externas. O período infantil da botânica é análogo ao período infantil da lógica, uma vez que as formas de nosso pensamento se desenvolvem como tudo o que vive. Apenas o repúdio decisivo à ideia de espécies fixas, apenas o estudo da história da evolução das plantas e de sua anatomia, preparou a base para uma classificação realmente científica.

Marx, que, diferentemente de Darwin, era um dialético consciente, descobriu as bases para a classificação científica das sociedades humanas no desenvolvimento de suas forças produtivas e na estrutura das relações de propriedade que constituem a anatomia da sociedade. O marxismo substituiu a classificação descritiva vulgar das sociedades e dos Estados, que ainda hoje floresce nas universidades, por uma classificação dialética materialista. Só através do método de Marx é possível determinar corretamente tanto o conceito de um Estado operário quanto o momento de sua queda.

Tudo isso, como vemos, não contém nada de “metafísico” ou “escolástico”, como afirma a ignorância presunçosa. A lógica dialética expressa as leis do movimento no pensamento científico contemporâneo. A luta contra a dialética materialista, ao contrário, expressa um passado distante, o conservadorismo da pequena burguesia, a presunção de universitários rotineiros e… uma centelha de esperança por uma vida após a morte.

Leon Trotsky,
13 de dezembro de 1939.

TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.