Lissagaray: um relato vivo da Comuna de Paris

A História da Comuna de 1871” de Prosper-Olivier Lissagaray, traz um relato vivo dos mais de dois meses da Comuna de Paris, a primeira experiência da história de um governo operário legítimo. Em seu formato final, a narrativa procura dar um panorama preciso desses acontecimentos de forma inédita, ou seja, segundo a ótica dos oprimidos, combatendo as distorções e o escamoteamento dos fatos, organizados pela historiografia oficial. A obra forneceu rico material de estudo, inspirou e foi lida avidamente por toda a geração de revolucionários do final do século 19, alguns dos quais viriam a ser os grandes dirigentes das revoluções proletárias do início do século 20.

“História esta que, aliás, é devida a seus filhos, a todos os trabalhadores da terra. O filho tem o direito de conhecer o porquê das derrotas dos pais; o Partido Socialista, as campanhas de sua bandeira em todos os países. Aquele que conta ao povo falsas lendas revolucionárias, que o diverte com histórias sedutoras, é tão criminoso quanto o geógrafo que traça mapas mentirosos aos navegadores.” (Prefácio à primeira edição, novembro de 1876).

O autor

Hippolyte-Prosper-Olivier “Lissa” Lissagaray nasceu em Toulouse em 24 de novembro de 1838, filho de um farmacêutico. Em sua juventude após a conclusão dos estudos clássicos, partiu em uma viagem pelos Estados Unidos. De volta à França, em 1860, se instalou em Paris, onde entrou em contato com o movimento operário e a luta republicana, em pleno Segundo Império, instalado após o golpe do 18 Brumário de 1851, liderado por Luis Bonaparte.

É dentro do ambiente das grandes lutas da classe trabalhadora francesa, contra o regime de Napoleão III, escrevendo para os jornais de oposição L’Action e Le Tribun du Peuple, que Prosper-Olivier entra em contato com trabalho militante da Associação Internacional dos Trabalhadores, ou 1ª Internacional, e passa a se dedicar à luta socialista. O primeiro capítulo da obra em questão, traz inclusive, informações preciosas sobre o trabalho prático da organização de Marx e Engels, junto aos operários parisienses, mesmo em meio à repressão do Estado,  o que só fazia crescer o interesse dos trabalhadores pela Internacional.

Hippolyte-Prosper-Olivier Lissagaray, Photographie Carjat & Cie

Em 1871 o regime bonapartista dá seu último suspiro com a patética derrota do Exército Francês na Guerra Franco-Prussiana. Napoleão é preso após a Batalha de Sedan; os políticos, funcionários do regime e os ricos proprietários, em sua maioria, evacuam Paris, deixando as massas populares à sua própria sorte, diante da iminente invasão prussiana. Em 18 de março tem início a série de  acontecimentos que entraram para a história como “A Comuna de Paris”, ou “Comuna de 1871”. Assim como muitos de seus camaradas, não só da França, como de outros países do mundo,  Lissagaray participou ativamente da Comuna de Paris, combatendo nas barricadas, “não como membro oficial, funcionário ou empregado da Comuna, mas simplesmente um das fileiras”, como ele mesmo definiu.

Lissagaray foi um dos communards que conseguiram escapar do suplício da Semaine Sanglante, a Semana Sangrenta, entre 22 e 28 de maio de 1871. Ele se evadiu para a Inglaterra, permanecendo em Londres até 1880. Lá encontrou solidariedade e guarida na residência de Karl Marx. Assistido diretamente por Marx e com a ajuda e trabalho abnegado de Eleanor Marx, filha mais nova do grande filósofo, ele inicia o trabalho de pesquisa que culminaria na versão final da “História da Comuna de 1871”.

A obra

A importância histórica e política da obra de Lissagaray reside no seu combate aberto contra o secular esforço da historiografia oficial em escamotear e cobrir de obscurantismo a história dos trabalhadores. As classes dominantes de todo mundo assistiram espantadas, em 1871, a primeira experiência de um governo operário que, apesar de todas as suas contradições, representou-lhes uma grave ameaça: foi a prova no fogo da luta de classes de que o socialismo científico proposto por Marx e Engels era, não apenas possível, mas também urgente e vital à classe operária. Nesse sentido, iniciou-se uma campanha por parte dos historiadores e, principalmente, da grande imprensa europeia, com o objetivo de distorcer o que foi a Comuna, dando-lhe ares de um ato de vandalismo inconsequente operado por bárbaros ignorantes.

A influência benéfica de Karl Marx no trabalho de pesquisa que dá origem a essa obra, direciona o escritor a uma intransigente busca pela verdade dos fatos, não limitando seu relato apenas às suas impressões de testemunha ocular. O autor se propõe ao árduo esforço de coletar material e testemunhos de centenas de communards que, como ele, conseguiram escapar das execuções sumárias e se exilaram na Inglaterra e na Suíça. No curso do texto, em momentos específicos, Prosper-Olivier mal consegue  esconder a sua dor e a sua revolta pessoal, porém nunca as coloca acima de sua grandiosa tarefa.

“Quem fez os acontecimentos de 18 de Março? Que fez o Comitê Central? O que foi a Comuna? Por que estão faltando cem mil franceses a seu país? Onde estão as responsabilidades? Legiões de testemunhas o dirão. É um proscrito que empunha a pena (…) que durante cinco anos peneirou os testemunhos; que buscou sete provas antes de escrever; que vê o vencedor à espreita da menor inexatidão para negar todo o resto; que não conhece melhor defesa para os vencidos do que o simples e sincero relato de sua história.” (Prefácio à primeira edição, novembro de 1876).

Após uma série de ensaios, artigos e sketches, o livro em sua versão final é publicado em 1876 e, posteriormente, traduzido para o inglês por Eleanor “Tussy” Marx, em 1886. No texto de introdução a essa edição inglesa ela recomenda e descreve a obra como “(…) a única história autêntica e confiável que já foi escrita sobre o movimento mais memorável dos tempos modernos. É verdade que Lissagaray foi soldado da Comuna, mas ele teve a coragem e a honestidade de falar a verdade.”

A elaboração de Lissagaray traz, com riqueza de detalhes, a evolução daqueles fatos. Desde a organização da defesa de Paris contra a invasão prussiana, passando pela constituição, e as primeiras ações do Comitê Central da Guarda Nacional até a proclamação da Comuna de Paris, e os diversos embates e discussões que se deram durante a instalação gradual do que, nesses mais de dois meses, viria a se tornar a primeira experiência de um autogoverno dos trabalhadores.  Além da precisão em datas, nomes e da rica descrição de fatos, salta aos olhos o lirismo e a beleza do texto:

“Paris soube de sua vitória na manhã do dia 19. Que mudança de cenário, mesmo após o sem-número de cenários daqueles sete meses de drama. A bandeira vermelha tremula no Hôtel de Ville. O Exército, o governo e a Administração se evaporaram com as brumas matinais. Das profundezas do faubourg Saint-Antoine, da obscura rue Basfroi, o Comitê Central é projetado a cabeça de Paris, em pleno sol do mundo.”

Também não foge à pena do autor a dramaticidade da dolorosa derrota imposta pelo governo de Versalhes, no momento em que seu chefe, Adolphe Thiers em acordo com os prussianos, consegue a libertação dos soldados presos durante a guerra e ordena sua impiedosa marcha sobre o povo de Paris. “O chão está coalhado com seus cadáveres, que este espetáculo repugnante lhes sirva de lição” – telegrafou Thiers a um funcionário seu, justificando a barbárie e a execução sumária de 100 mil parisienses.

“A ordem reinava em Paris. Por toda a parte, ruínas, mortos, sinistras crepitações. Os oficiais ocupavam as ruas, provocadores, fazendo o sabre zunir; os suboficiais imitavam sua arrogância. A soldadesca acampava em todas as grandes ruas; alguns embrutecidos pelo cansaço e pela carnificina, dormiam em plena calçada; outros preparavam a sopa cantando canções de sua região. (…) Terminada a luta, o Exército se transformou em um imenso pelotão de fuzilamento.”

“Os mortos da Semaine Sanglante se vingavam empestando as praças, os terrenos baldios, as casas em construção que tinham servido de despejo para os matadouros e os tribunais prebostais.” (…) Trezentos que haviam sido atirados aos lagos das colinas Chaumont tinham voltado à superfície e, inchados, espalhavam seus eflúvios mortais”

O legado

Prosper-Olivier Lissagaray deixa aos revolucionários que vieram depois dele um magnífico documento. Um relato que serviria de base aos estudos de Lênin sobre a Comuna, que resultaram, não apenas na elaboração do grande arsenal teórico deixado pelo dirigente russo, mas também contribuíram na modelagem do método de seu partido e guia em sua prática revolucionária. Em seu seminal “O Estado e a Revolução”, escrito em plena Revolução Russa de 1917, Lênin dedica todo um capítulo à Comuna de Paris. Se apoiando em Marx e Engels, ele analisa esse evento, combatendo o reformismo, apontando o caminho e armando os bolcheviques em sua trajetória rumo à tomada do poder.

Ao movimento operário, a obra de Lissagaray reforça a importância da existência e do trabalho sistemático de uma imprensa própria, no sentido de combater a falsificação histórica e a distorção dos fatos à qual se lança a ideologia burguesa e impõe, como tarefa aos oprimidos, registrar e relatar suas revoluções, analisando a grandeza de suas vitórias e as duras lições de suas derrotas como legado à posteridade. Exemplo esse, seguido por Leon Trotsky ao se colocar a tarefa de escrever a história das revoluções de 1905 e 1917 para que essas  servissem de guia para as futuras gerações de revolucionários.

“Foi sem dúvida, apenas um combate de vanguarda em que o povo, comprimido em uma luta militar estudada, não pode desenvolver suas ideias, nem suas legiões; ele também não comete a inépcia de restringir a revolução a esse período gigantesco; mas que potente vanguarda que, durante mais de dois meses, manteve na expectativa todas as forças coligadas das classes governantes; que imortais soldados os que, nos mortais postos avançados, respondiam ao versalhês: Estamos aqui pela Humanidade!”