França Insubmissa: A palavra aos militantes! Por um partido democrático!

Estaríamos vendo a burocratização do partido França Insubmissa? O partido que levou massas para as urnas em 2017 e 2022 num pais onde o voto não é obrigatório. Num momento de tensões políticas onde o governo Macron não tenta mais fingir que governa para todos, o partido de esquerda de maior apelo nas urnas se perde na democracia interna e se afunda na burocratização.

O engessamento das hierarquias sem a escuta das massas faz esse partido cometer os mesmos erros que o Partido Socialista cometeu no passado na França. Este artigo ajuda o leitor brasileiro a compreender a dificuldade de um movimento que capturou a indignação das massas radicalizadas se tornar um partido político capaz de interferir de forma revolucionária na realidade.

Nota de uma brasileira que vive na França


Desde 2017, Révolution (seção francesa da Corrente Marxista Internacional) defende a necessidade de transformar o movimento França Insubmissa (FI) em um verdadeiro partido democrático. Isso pressupõe, entre outras coisas, afiliações formais (em troca de contribuições), direções eleitas e revogáveis ​​em todos os níveis e, portanto, a organização de congressos locais e nacionais em intervalos regulares.

A crise que estourou no topo do movimento destaca a urgência dessa mudança. Mas primeiro vamos esclarecer os fatos. Durante a Assembleia Representativa da FI, em 10 de dezembro, foi apresentado o novo organograma das instâncias do movimento. Serão dez “espaços” (setores de atuação) e uma “coordenação de espaços”, que será a direção executiva. Os membros desses órgãos não foram eleitos, mas nomeados. Por quem e seguindo quais critérios? Como a maioria dos militantes da FI, não sabemos de nada.

Vários dos deputados mais conhecidos do movimento – entre eles Clémentine Autain, François Ruffin, Raquel Garrido e Alexis Corbière – não aparecem na “coordenação de espaços”. Eles imediatamente criticaram essa situação e a falta de democracia dentro da FI.

Os argumentos de Mélenchon

No dia seguinte, em seu blog, Jean-Luc Mélenchon tentou afastar essas críticas. “Nada de novo sob o sol”, escreveu: é sempre “a mesma dificuldade para os velhos admitirem os novos e a mesma angústia de perder a luz midiática em seu benefício”. É verdade que a retirada de Mélenchon não pode deixar de suscitar ambições, sobretudo presidenciais. Mas isso não responde à questão da democracia interna, que diz respeito ao papel e aos direitos dos militantes, bem distantes da “luz midiática”.

Mélenchon escreve: “A ‘coordenação dos espaços’ da França Insubmissa é uma estrutura operacional. Tem por finalidade federar a atividade dos setores de atuação, que também operam de forma autônoma. Sua função é coordenar, como o próprio nome indica. Portanto, nada a ver com um ‘escritório político’ ou uma sala de estar para encontros azedos entre correntes e subcorrentes. O balanço dos miasmas da época dos partidos do século XX foi realizado há muito tempo.”

Não é nada convincente. Em primeiro lugar, não vemos o que distingue uma “coordenação de espaços” de um “escritório político”, além de seus nomes. Num partido, o escritório político é também uma “estrutura operacional”, sendo uma das suas funções também “federar a atividade dos setores de atuação”, setores esses que não podem ser totalmente “autônomos”, aliás, já que se trata de coordená-los. Quer gostemos ou não, coordenar, federar, é dirigir. Na prática, a “coordenação dos espaços” será uma direção executiva da FI. Mas o problema não está aí. O problema é que os militantes da FI não tiveram nenhum papel na composição dessa instância dirigente (como as outras), por falta de mecanismos democráticos que lhes dessem voz. Para que a base militante possa intervir, sabidamente, na composição da direção, são necessários congressos nacionais precedidos de congressos locais. O movimento operário não inventou nada melhor que isso.

Em segundo lugar, é verdade que todos os partidos de esquerda do “século XX” degeneraram de uma forma ou de outra, mas isso não foi consequência de seu funcionamento interno. Na França, por exemplo, a degeneração do Partido Socialista (PS) teve antes de tudo um caráter político e ideológico. Mélenchon está bem localizado para saber, ele que foi por um tempo Secretário de Estado no governo Jospin (1997-2002), que privatizou dezenas de bilhões de euros em bens públicos, entre outras vilezas. Se Jospin foi eliminado no primeiro turno das eleições presidenciais de 2002, foi porque a direção do PS, no poder, tinha levado a cabo uma política reacionária, e não por causa das “correntes e subcorrentes” deste partido. Da mesma forma, o que deu o golpe final no PS, no plano eleitoral, não foi o seu funcionamento interno; foi a política reacionária de François Hollande entre 2012 e 2017.

Mélenchon despolitiza ao extremo a história dos partidos de esquerda. Em vez de analisar seus desvios e traições políticas, ele culpa seu funcionamento interno. Também comete o mesmo erro – no sentido inverso – sobre a FI, quando escreve: “os resultados eleitorais obtidos em 2022 estão, sem dúvida, relacionados com a nossa forma de nos organizarmos”. Absolutamente. Os 22% de Mélenchon, em abril passado, foram o resultado de uma crescente polarização política, em um cenário de crise orgânica do capitalismo, regressão social, desigualdades abissais e crise ambiental. Se a FI chegou bem à frente do PS e dos Verdes, não é porque a sua organização interna seja a melhor. Isto por duas razões políticas: 1) o programa da FI era muito mais radical do que o do PS e dos Verdes; 2) ao contrário do PS e dos Verdes, a FI nunca esteve no poder.

Na realidade, o funcionamento interno da FI pesou negativamente nas últimas campanhas eleitorais. Se a FI se tivesse transformado num partido democrático na sequência do sucesso de abril de 2017, teria cristalizado e consolidado uma parte significativa das centenas de milhares de jovens e trabalhadores que, a partir de 2016, apostaram na campanha eleitoral . A FI teria recrutado dezenas de milhares a mais, no mínimo, nas tempestades sociais do primeiro mandato de Macron. No limiar das campanhas eleitorais de 2022, a FI teria uma força militante maciça, bem estabelecida e bem organizada. Em vez disso, a maior parte dos militantes da FI evaporou após as eleições legislativas de 2017, por falta de uma organização interna sólida e democrática. Assim, as campanhas eleitorais de 2022 ficaram marcadas, no terreno, pelo amadorismo organizacional, cujos efeitos nefastos não puderam ser totalmente compensados ​​pelo entusiasmo dos militantes. Em suma, a democracia interna é também, e sobretudo, uma questão de eficiência política.

Mélenchon culpa o “funcionamento” do PS e dos Verdes: “cinco anos antes do tempo, uma confusão de ambições presidenciais”. Mas, evidentemente, as ambições presidenciais também se afirmam no topo da FI, “cinco anos antes” (ou quase). O que fazer para que não tome uma forma ainda mais “confusa” do que no PS e entre os Verdes? Resposta: Subordinar estritamente a questão do candidato à da linha política, e colocar a determinação dessa linha nas mãos dos militantes, a partir de um amplo debate democrático sancionado por votos. Ah, os votos! Mélenchon não gosta muito deles, internamente, porque isso te dá “minorias” e “maiorias”: inferno. Ele prefere o “consenso”. Mas em uma organização de massa como a FI, o assim chamado “consenso” é uma ficção burocrática, como demonstra a atual crise no topo da FI.

O papel de um Congresso

Assim, quaisquer que sejam suas motivações pessoais, os dirigentes que criticam a falta de democracia interna na FI apontam para um problema real. No entanto, o que eles propõem, para resolver esse problema, não é satisfatório.

Por exemplo, em entrevista ao Libération em 11 de dezembro, Clémentine Autain explicou: “Os militantes não tiveram voz sobre quem deveriam ser os atores principais do movimento. A direção foi escolhida por cooptação, o que favorece os puxa-sacos e contribui para silenciar as críticas. Nenhum esforço de pluralismo foi feito em sua composição. (…) Concordo em não reproduzir as batalhas dos congressos partidários clássicos. Mas não marginalizando aqueles que têm uma voz diferente do atual núcleo dirigente.”

Clémentine Autain quer dar voz aos militantes, mas sem um congresso, ou seja, sem recorrer ao quadro democrático mais amplo, aquele que dá mais voz e poder de decisão… aos militantes. Em uma postagem de blog publicada em 11 de agosto, ela ficou satisfeita com o fato de a FI ter “se livrado das batalhas internas de congresso”. Ah, as batalhas de congresso são com minorias e maiorias: uma verdadeira dor de cabeça! Melhor acabar com isso abolindo os próprios congressos, certo?

Não, porque quando uma batalha é inevitável, se não há congresso, ela ocorre em outro lugar: pela mídia, nas redes sociais, etc., ou seja, da pior maneira possível, porque os militantes ficam então reduzidos ao papel de espectadores impotentes, de modo que um grande número deles joga a toalha e abandona a organização.

Clémentine Autain diz defender uma linha “ecossocialista”. Resta saber o que isso significa concretamente do ponto de vista teórico, programático e estratégico, mas admitamos: é uma linha. Por seu lado, François Ruffin proclamou-se recentemente um “socialdemocrata”, o que não deixa de chamar atenção perante a rica história das traições da socialdemocracia francesa. Mas seja: é outra linha. Há ainda outras, dentre as quais a da Révolution: pela expropriação da grande burguesia e pela planificação democrática da economia. Como fazer com que todas essas linhas sejam seriamente debatidas, nas fileiras da FI, e que os militantes, ao final desse debate, decidam qual linha deve dominar a direção da organização – e quais são os respectivos pesos das demais linhas (minoritárias)? Para isso, o movimento operário não inventou nada melhor do que um congresso nacional precedido de congressos locais. Isso pressupõe a transformação da FI em um partido democrático.


Tradução de Taisa Leonardo.