Espanha: A rua toma em suas mãos a defesa do referendo e do autogoverno da Catalunha

Nota da redação: O artigo aqui publicado em português foi escrito em 20 de setembro e publicado em espanhol por Lucha de Clases, seção espanhola da Corrente Marxista Internacional (CMI), que está atuando diretamente nos acontecimentos revolucionários da Catalunha. Confira este e outros artigos de nossos camaradas que estamos traduzindo do espanhol!

“É uma revolta? – Não, senhor, é uma revolução”
(o Duque de Liancourt a Luís XVI)

Diante do Estado de Exceção, Conferação Sindical de Comissões de Trabalhadores (CCOO)[1], União Geral dos Trabalhadores (UGT)[2] e Confederação Geral do Trabalho (CGT)[3] devem convocar uma greve geral de 24 horas na Catalunha.

A esquerda espanhola deve se mobilizar em todo o país para defender as liberdades democráticas e o direito do povo catalão de decidir seu destino.

Milhares de pessoas tomaram as ruas de Barcelona para defender o Referendo de 1 de outubro (sigla “1-O”) e o autogoverno da Catalunha. Conforme aumenta a repressão policial e o estabelecimento de fato de um Estado de Exceção, que inclui, na prática, a anulação do autogoverno catalão, a detenção de 12 pessoas, em sua maioria de altos cargos da Generalitat[4] e a invasão, sem ordem judicial, da sede da Candidatura de Unidade Popular (CUP)[5], a situação se aproxima ao ponto de ebulição de uma situação revolucionária.

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O governo instaurou um Estado de Exceção de fato com a proibição de atos políticos, de colocação de cartazes e de distribuição de propaganda sobre o Referendo. Também proibiu aos meios de comunicação de difundir propaganda sobre o mesmo e as forças policiais invadiram os escritórios de alguns deles. Páginas webs oficiais do Referendo foram fechadas e foi proibido o acesso a outras hospedadas no exterior. As forças policiais invadiram gráficas, para apreender centenas de milhares de cartazes, envelopes e cédulas de votação, e empresas de transporte, como a Unipost em Tarrasa, para apreender dezenas de milhares de envelopes dirigidos aos auditores designados para o 1-O[6]. Tão grave quanto isso, a Guarda Civil entrou em vários prédios do governo catalão para tomar documentos e prender 12 pessoas de altos cargos do governo e ao diretor do meio de comunicação Punt.Cat. O mesmo se fez na sede da CUP. Centenas de prefeitos e gestores públicos foram acusadas por colaboração com a organização do Referendo e estão ameaçados por detenção se não se apresentarem para depor.

O governo de Rajoy apreendeu também as finanças da Generalitat e bloqueou suas contas, acabando com uma canetada com a autonomia da política financeira do governo catalão.

A situação na Catalunha está entrando por um caminho revolucionário faltando 11 dias para o 1-O, a continuidade da política de repressão poderia acelerar e alcançar o ponto de ebulição de um levante popular.

Em várias cidades catalãs, os prefeitos chamaram à mobilização popular na tarde do dia 20 de setembro, como em Badalona ou Vic.

Um primeiro salto no nível de consciência popular se deu no dia 19 de setembro, com a ideia de tomar o destino do Referendo em suas mãos. Quando a Guarda Civil, de maneira ilegal, entrou sem ordem judicial na sede da empresa Unipost, em Tarrasa, para apreender os envelopes dirigidos aos auditores das mesas eleitorais de 1-O, dezenas de pessoas bloquearam os acessos e impediram durante horas a saída dos guardas. Finalmente, de maneira escandalosa, a ordem judicial chegou como um pedido de entrega a domicílio.

Pela noite, na cidade de Reus (Tarragona), milhares de pessoas saíram à ruas em uníssono para afixar cartazes e se concentrarem defronte ao hotel onde se hospedam os grupamentos de choque da polícia enviados pelo governo de Rajoy, depois de apreenderem escovões para colar e cartazes de um grupo de pessoas que saía afixando cartazes pela rua e onde reteram um membro da Assembleia Nacional Catalã[7].

O ponto crítico foi alcançado na manhã do dia 20 de setembro, com a invasão policial de vários prédios do governo catalão e a detenção de pessoas de altos cargos do Conselho de Fazenda. Espontaneamente, primeiro dezenas, logo centenas e, finalmente, milhares de pessoas se concentraram nas ruas em protestos. Uma delegação da CCOO, a principal central sindical da Catalunha, uniu-se também aos manifestantes na Vía Laietana, incluído o dirigente da CCOO da Catalunha, Javier Pacheco.

Toda essa repressão do Estado não fez mais que fortalecer a determinação de um número maior de pessoas em defender e participar do Referendo de 1-O. Inclusive muitos dos que não pensavam em participar ou tinham a intenção de vota NÃO, agora estão mudando intenção para votar SIM, como sinal da indignação diante à opressão mais elementar dos direitos democráticos na Catalunha.

Nós de Lucha de Clases temos dado desde o início um apoio incondicional ao Referendo, porque é um direito democrático elementar que o povo da Catalunha decida livremente que relação quer manter com o resto da Espanha, incluída a opção da independência. A única união que fortalece e cria condições fraternais de convivência e desenvolvimento em comum é a que se estabelece sobre bases voluntárias e é a que defendemos. Mas essa deve ser a vontade, democraticamente expressada, do povo catalão.

A Constituição de 1978 – a que se agarram as forças obscuras da reação na Espanha para negar esse direito democrático – já carece de autoridade política e moral, revelando seu caráter antidemocrático, coage e restringe direitos democráticos. O PP e os dirigentes de Ciudadanos e PSOE se negam a facilitar reformas que conduzam ao reconhecimento do direito de autodeterminação, que é apoiado de acordo com as pesquisas por mais de 70% da população catalã. Inclusive um Referendo supostamente ilegal como o de 1-O gozava de um apoio popular de 60% em uma pesquisa apresentada semana retrasada, porcentagem que se terá crescido significativamente nos últimos dias.

O Parlamento da Catalunha é um órgão de representação popular e tem o mandato político e moral para levar a cabo este Referendo. Diante do bloqueio repressivo do governo central e do aparato do Estado, estavam justificadas as iniciativas parlamentares tomadas para convocar formalmente o Referendo, iniciativas e manobras por outro lado, que tanto o PP como o PSOE realizaram sem se envergonharem durante anos no Congresso e no Senado para executar suas políticas. A diferença é que a convocação do Referendo de 1-O é uma causa progressiva e, além disso, tem o apoio massivo do povo catalão. É a lei que deve servir ao povo e não o povo à lei. É um princípio democrático elementar.

A esquerda espanhola e um setor da esquerda catalã, que tiveram uma posição muito equivocada ao princípio, posicionando-se abertamente contra a participação do 1-O, finalmente, a trancos e barrancos, com idas e vindas, refletindo a pressão desde baixo, vêm decantando-se a favor da participação, ainda que não concordassem com o caráter referendário da votação “por carecer de garantias jurídicas”. Mas sua alternativa, um pacto acordado, que incluía o PP[8] e Ciudadanos[9], é uma quimera. Por tanto, diante do bloqueio parlamentar estatal, a única alternativa possível e viável é a desobediência civil, a ruptura com a injusta legalidade vigente e se basear na mobilização e na consciência de milhões na rua para levá-lo à prática.

O que fazer agora?

É fato que os setores dominantes da burguesia catalã não apoiam a independência e acreditam que o processo foi longe demais. Na verdade, a Generalitat e o PDeCAT[10], mais que representar na questão do Referendo à burguesia catalã, representam a “sombra” da burguesia, devendo se apoiar cada vez mais na pequena-burguesia radicalizada, enquanto teme que o processo possa escapar de suas mãos e desembocar em um autêntico levantamento revolucionário. Daí os insistentes chamados do PDeCAT e de dirigentes da ERC[11] à calma, a protestos pacíficos, a não se deixar provocar, entre outros. Um movimento massivo nas ruas poderia deixá-los sem margem de manobra para tratar de buscar um acordo, no apagar das luzes, com o governo espanhol ou para decretar o fim do processo em 2 de outubro diante da impossibilidade de levar adiante a votação pela repressão. Seguramente teriam em mente convocar eleições na comunidade autônoma para tratar de assegurar sua maioria em um novo Parlamento e tratar de negociar novamente desde essa posição de força. Mais ainda, temem que um movimento que dê às massas uma sensação de seu poder na rua, sobretudo se a classe trabalhadora se envolver massivamente, faça surgir demandas de classe, pela justiça social, contra a exploração no trabalho, que combine a demanda dos direitos democrático-nacionais com demandas socialistas.

A luta da Catalunha, portanto, é absolutamente progressista e está repleta de um potencial revolucionário e socialista que poderia impactar a toda a Espanha.

De fato, a única salvação possível do Referendo de 1-O é que seja a rua quem tome o protagonismo da luta. Os atos e manobras parlamentares da Generalitat para assegurar a realização do 1-O alcançaram seu limite, conforme a repressão estatal está gradativamente golpeando aos mecanismos organizativos do Referendo.

É por isso que, diante do Estado de Exceção aberto decretado pela direita franquista na Catalunha, todas as organizações de esquerdas e progressistas da Catalunha deveriam seguir a sequência da mobilização popular já iniciada, canalizá-la, organizá-la e convocar manifestações nas principais cidades para mostrar a rejeição à perseguição repressiva e defender o 1-O.

Essas manifestações que, sem dúvida, seriam massivas, teriam, além disso, um impacto muito positivo no resto do Estado e seriam o melhor antídoto à campanha franco-espanholista da direita.

Confiar cegamente que a Generalitat prepare um sofisticado e hábil mecanismo que contornará todas as armadilhas do Estado para garantir a votação de 1-O, quando as forças repressivas têm tomadas todas as comunicações, prédios do governo da comunidade autônoma, hipotéticos depósitos das urnas, entre outras coisas, somente ajuda a adormecer a consciência do povo catalão que, majoritariamente, quer votar e a sua disposição é à luta.

Só se pode confiar na mobilização das massas e em fortalecer a consciência popular, enquanto se intensificam os chamados de solidariedade e de apoio ao restante das organizações de esquerdas, sindicatos, trabalhadores e jovens do resto do país.

A esquerda espanhola, por sua vez, deve intensificar a convocação de todo tipo de atos, denúncias entre outras atividades para elevar a consciência geral do perigo de involução autoritária do Estado espanhol, dentro e fora da Catalunha, sob o lema de que a união dos povos da Espanha deve ser livremente aceita e decidida por todos seus integrantes. Muito corretamente, diversas organizações, incluindo Podemos e IU[12], chamaram na tarde de 22 de setembro para uma concentração na Puerta del Sol de Madrid em defesa das liberdades democráticas e a favor do direito a decidir do povo catalão. Também na Andaluzia foram convocadas concentrações em frente às sedes das delegações do governo em todas as províncias.

O movimento operário é a chave da situação: há que se convocar uma greve geral de 24 horas na Catalunha

É muito significativo que na manifestação espontânea desta manhã, uma delegação de CCOO tenha se somado à mesma. O secretário-geral da CCOO da Catalunha, a principal central sindical, declarou há algumas semanas que a CCOO da Catalunha não ficaria de braços cruzados se o governo de Rajoy avançava ao ponto de intervir na autonomia da Catalunha. Por sua vez, a UGT catalã também emitiu ao meio dia de 22 de setembro um comunicado no Twitter que dizia: “Defendemos as instituições catalãs, condenamos os atos policiais e exigimos que as detenções parem e reiteramos o compromisso com o direito a decidir”. A CGT da Catalunha também emitiu um comunicado há alguns dias em que declarava sua rejeição à repressão do Estado e sua defesa da liberdade de expressão.

Bem, isto já é uma realidade. A repressão está sendo aplicada a todo o vapor, as instituições catalãs estão sendo violadas e suas competências cerceadas. Há detenções e presos por exigir votar. Agora há que passar das palavras aos fatos. Somente o movimento operário tem a força, coesão e potência para aglutinar o conjunto das reivindicações populares e combater com êxito à repressão do Estado.

CCOO, UGT e CGT ostentam 90% da representação sindical e estão presentes na imensa maioria das empresas e escritórios da Catalunha. Quando uma parte do povo já se lançou às ruas, a classe trabalhadora não pode ficar para trás. CCOO, UGT e CGT devem convocar uma greve geral de 24 horas em toda a Catalunha. Aras és l’hora[13]. O movimento operário catalão é quem pode decidir para onde pende a balança na presente situação.

A greve deve ir acompanhada da máxima participação popular. Deveriam ser formados comitês em defesa do Referendo em todos os bairros e povoados e nas empresas e escritórios. Seu papel, além de assegurar o êxito da greve, seria assegurar as condições para efetuar a votação do 1-O. Diante de centenas de milhares nas ruas, as forças repressivas não poderiam impedi-la.

Se, uma vez passado o dia de greve, o governo central continuasse sua política repressiva, deveria ser convocada uma assembleia geral de toda a Catalunha com representantes dos comitês. Constatada a supressão de fato das competências da Generalitat, essa assembleia, máxima representação popular e democrática do povo catalão, deveria assumir as funções de governo como Assembleia Constituinte Revolucionária e eleger um governo próprio que não reconheça a intervenção do Estado central para organizar com a plena participação popular à votação de 1-O. Paralelamente, este governo popular deveria recorrer a medidas extraordinárias para superar o boicote e a repressão estatal, introduzindo o controle dos trabalhadores nos bancos e grandes empresas e assumindo o controle das polícias da comunidade autônoma e locais.

Somente um governo dos de baixo, destas características, com o protagonismo principal na classe trabalhadora catalã, pode assumir e sancionar a vontade majoritária que o povo catalão tenha emitido no Referendo, incluída, como é claro, a opção de uma república independente. Obviamente, uma luta que adquire um caráter revolucionário sempre começa por demandas democráticas, até que a própria experiência e participação ativa da classe trabalhadora põem em destaque as questões sociais. Portanto, fazer confluir a demanda de uma república democrática com uma república socialista é a tarefa do dia da ala de esquerda e socialista do processo catalão.

O vínculo da Catalunha com o resto do país é um poder da primeira, mas, sem sombra de dúvida, que a forma final que adquire dependerá, em última instância, dos processos que tenham lugar no conjunto do Estado espanhol. De fato, para escapar de seu isolamento, dos ataques repressivos do Estado espanhol e para assegurar sua subsistência, uma eventual república catalã teria que fazer um chamamento ao restante da classe trabalhadora, da juventude e das camadas progressistas do resto da Espanha para que lhes apoiem, levantem-se e se unam a eles. Um Estado espanhol neofranquista indubitavelmente repelirá a imensa maioria do povo catalão, mas uma Espanha republicana e socialista será um polo de atração não somente para a Catalunha, mas para todos os países de nosso entorno.

Estamos em um momento histórico. O regime de 1978[14] está afundando e mostra sua completa corrupção. Os franquistas do passado voltaram a tomar as rédeas do Estado completamente e condenaram a maioria da classe trabalhadora a um futuro de exploração brutal, precariedade e sofrimento.

Não é certo que do outro lado do rio Ebro a situação seja desfavorável para se iniciar um processo de mudança revolucionária como vemos se desenvolver na Catalunha. Depois de anos de paralisia, vemos uma inquestionável reanimação do movimento operário e da atividade grevista, há fúria contra as condições laborais e salariais em camadas amplas da classe trabalhadora. Há mais de uma semana, 30 mil pessoas marcharam em Linares (Jaén), exigindo trabalho; dois dias mais tarde, 20 mil fizeram o mesmo em Algeciras, exigindo saúde pública e de qualidade, milhares saíram às ruas de Murcia contra a construção de um muro junto às vias de AVE que partirá a cidade em duas. Um valente exemplo desde a Catalunha pode reanimar a contestação social e fazer avançar a consciência política de milhões a passos largos em questão de semanas e, inclusive, dias.

Tanto na Catalunha como no restante da Espanha, a voz de comando é sair às ruas em defesa das liberdades democráticas. Contra a monarquia e o regime de 1978. Em última instância, o objetivo que se lança no horizonte é a luta pela república socialista na Catalunha e no resto da Espanha, como um primeiro passo para uma Europa e um mundo socialista.

[1] Confederación Sindical de Comisiones Obreras – Conferação Sindical de Comissões de Trabalhadores, central sindical com fundação vinculada ao Partido Comunista da Espanha (PCE) durante a década de 1950 (Nota do Tradutor – N.T.).

[2] Unión General de Trabajadores – União Geral dos Trabalhadores, central sindical fundada em 1888 juntamente com o Partido Socialista Obrero Español (Partido Socialista Operário Espanhol – PSOE) (N.T.).

[3] Confederación General del Trabajo – Confederação Geral do Trabalho, sindicato libertário anarcossindicalista, fundado em 1977 (N.T.).

[4] Estrutura institucional da Comunidade Autônoma da Catalunha (N.T.).

[5] Candidatura d’Unitat Popular – Candidatura da Unidade Popular, fundado em 1986 (N.T.).

[6] Referência à data do Referendo, marcado para 1º de outubro de 2017 (N.T.).

[7] Assemblea Nacional Catalana, entidade organizada para promover a independência da Catalunha (N.T.).

[8] Partido Popular, de direita e atualmente no governo da Espanha (N.T.).

[9] Partido fundado em 2006 que cumpre uma função de linha de fundo à direita (N.T.).

[10] Partit Demòcrata Europeu Català – Partido Democrata Europeu Catalão (N.T.).

[11] Esquerra Republicana de Catalunya – Esquerda Republicana da Catalunha, fundado em 1931 (N.T.).

[12] Izquierda Unida – Esquerda Unida, partido que, juntamente com o Podemos, faz parte da coligação Unidos Podemos (N.T.).

[13] “Agora é a hora”, em catalão (N.T.).

[14] Referência à forma política que o capitalismo adotou após o esgotamento do regime ditatorial de Franco, com o restabelecimento da monarquia espanhola e o pluralismo político (N.T.).

Artigo de Lucha de Clases, seção espanhola da Corrente Marxista Internacional (CMI), sob o título “La calle toma en sus manos la defensa del Referéndum y del autogobierno de Catalunya”, publicado em 20 de setembro de 2017.

Tradução de Nathan Belcavello.