Polícia Militar reprime manifestantes guaranis contra o PL 490 do marco temporal na rodovia dos Bandeirantes. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Entenda o que significa o Marco Temporal aprovado na Câmara

No dia 24 de maio, a Câmara dos Deputados aprovou o caráter de urgência do então chamado Projeto de Lei nº 490/2007 (que visa tornar lei a tese do Marco Temporal), sendo colocado em votação já na terça-feira seguinte (30) e, com 283 votos favoráveis contra 155, foi aprovado sob protesto e dura repressão nas ruas.

 O PL, que agora seguirá para votação no Senado, pretende alterar os parâmetros para determinar as terras indígenas de modo que serão consideradas apenas as que estavam em plena posse de comunidades tradicionais no dia 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição Federal. Esse e outros pontos do projeto compõem um ataque que institucionaliza a tomada de territórios indígenas, tendendo a ampliar as práticas de chacinas, estupro, contaminação de mercúrio e várias outras constatadas em relatos. 

O PL estava parado na Câmara desde agosto de 2009, quando foi rejeitado pela Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial na Câmara, mas voltou à discussão quando, em 2021, o deputado Arthur Lira (PP) deu parecer favorável como relator da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), autorizando o prosseguimento com algumas emendas que não alteraram uma vírgula sequer do assunto principal. Ainda em 2021, parou novamente e voltou com a recente aprovação do Requerimento de Urgência assinado por deputados como Carla Zambelli (PL), Nikolas Ferreira (PL), Zé Trovão (PL), Marcos Feliciano (PL), Kim Kataguiri (UNIÃO), Luiz  Phillipe de Orleans e Bragança (PL) etc.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e diversas outras organizações indígenas regionais convocaram atos nos últimos dias (mas que já acontecem há anos) contra o Requerimento de Urgência e contra o PL em si. Obviamente houve repressão brutal com balas de borracha e gás de pimenta pela polícia com tom muito diferente do tratamento à invasão do Congresso Nacional por bolsonaristas em 8 de janeiro ou o bloqueio de rodovias durante e após as eleições presidenciais.

Massacre dentro e fora da lei

O termo “marco temporal” surgiu pela primeira vez no julgamento de um caso específico em 2005, o do Território Indígena da Raposa Serra do Sol, em Roraima, em que foi determinada pelo STF a demarcação das terras sob o argumento de que os povos indígenas ocupavam a região no dia da promulgação da Constituição Federal de 1988.

Apesar da decisão favorável em 2009, dela formulou-se uma tendência para fundamentar pedidos em processos parecidos (jurisprudência) que defende o uso desse critério temporal para  outros processos sobre demarcação, o que ganhou força durante o governo Temer quando a decisão foi considerada de “repercussão geral”, ou seja, que pode ser aplicada a todos os processos de tema semelhante no Brasil. Essa discussão também ficou suspensa no STF em 2021 e isso explica a tentativa da burguesia buscar o mesmo resultado através do Poder Legislativo, na forma de Lei Ordinária, e não mais no Judiciário, como decisão judicial. 

O resultado disso é que o PL, que usa os mesmos fundamentos para favorecer latifundiários, será agora votado em um Senado em grande parte ocupado por políticos financiados justamente por latifundiários e empresários do agronegócio, assim como foi na Câmara. Essa é a democracia burguesa.

O fato do projeto ter passado pela CCJC, que no teatro da burguesia serve para sanar inconformidades com a Constituição, com a cidadania e com o que chamam de “justiça”, mostra qual é o verdadeiro caráter dessas instituições e seus representantes, mais ainda quando assinado por figuras como Arthur Lira. Mas esse ataque não veio do nada e nem veio sozinho. Aqui vão alguns outros que dão mais contexto a essa ofensiva da burguesia: 

O PL nº 191/20, assinado por Sérgio Moro, visava avançar com a exploração predatória de terras indígenas prevendo até o inacreditável pagamento de indenização para as empresas se constatada a demora de emitir licença para usufruto das terras:

“Regulamenta o § 1º do art. 176 e o § 3º do art. 231 da Constituição para estabelecer as condições específicas para a realização da pesquisa e da lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos e para o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas e institui a indenização pela restrição do usufruto de terras indígenas.”

O PL foi retirado após a grande repercussão do assassinato de crianças Yanomami, o que não fez os representantes da burguesia desistirem, mas buscarem outras vias. Como exemplo, o Projeto de Decreto Legislativo nº 177/21, do deputado Alceu Moreira (MBD), que também visou ampliar a exploração em terras demarcadas sob o seguinte fundamento a respeito da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário: 

“A Convenção ao estabelecer, por exemplo, a restrição de acesso do Poder Público e dos particulares nas terras indígenas sem o consentimento desses indivíduos, assim como o fato de se necessitar de prévia autorização para qualquer ação governamental na Terra Indígena, acaba por inviabilizar o projeto de crescimento do Brasil.”

Em análise fria e descolada da realidade, esses projetos não deveriam oferecer riscos aos direitos indígenas pelo fato destes estarem previstos na Constituição Federal, com validade jurídica superior às leis ordinárias e, além disso, sendo “cláusulas pétreas”, que são marcos históricos no ordenamento cujos núcleos são irrevogáveis até por Emenda Constitucional, isto é, apenas uma nova Constituição poderia tirar sua vigência. 

Na prática, tudo isso é pisoteado pelas decisões judiciais e pelas chacinas que sequer chegam ao conhecimento público ou, quando não cometidas pelas próprias autoridades, nunca são de fato julgadas. Essa ilegalidade foi inclusive denunciada em declaração do Ministério Público Federal (MPF) ao lançar a Nota Pública – Inconstitucionalidade do PL 490/07, que aponta outras ofensas constitucionais como a possibilidade de contato forçado com comunidades isoladas para “ação estatal de utilidade pública”, o que agride o art. 231 da Constituiçãp e “a autodeterminação dos povos e seu modo de organização social” da já mencionada Convenção 169, que foi incorporado ao ordenamento brasileiro como cláusula pétrea também. 

Com estes exemplos já é possível concluir que, nas leis burguesas, as importantes conquistas históricas elencadas mais parecem uma fachada desbotada de democracia. Para entender por que as agressões à Constituição são assunto recorrente, é importante entender a origem de outros marcos históricos. 

A Lei de Terras 

No período das Sesmarias, títulos de terras eram concedidos exclusivamente pela coroa portuguesa aos sesmeiros, onde capitães-mor garantiam a segurança (bélica) das terras contra “invasores”, aí incluídas comunidades indígenas descobertas na capitania, por exemplo. Em 1822, com a Proclamação da Independência, a questão de terras ficou sem regulamentação específica até 1850, período conhecido na história fundiária brasileira como “período de posse” ou “anárquico” para alguns. Juridicamente, “posse” é bem diferente de “propriedade”: O primeiro refere-se à ideia de “ter em mãos”, enquanto o segundo é sobre ter uma condição ou documento que legitime alguém como dono, ainda que não tenha a posse. Nesse período, o critério que prevaleceu foi o da posse, com massacres e confrontos diretos até entre proprietários.

“Viagem Pitoresca pelo Brasil”, Johann Moritz Rugendas (1835)
Anos depois, estabelecidos os terrenos e surgindo a necessidade de regularizar o que viria a ser a elite monocultora e latifundiária, a Lei de Terras simplesmente registrou esses terrenos como propriedades legítimas, determinando também preços altíssimos para novas aquisições. Essa lei foi assinada em 18 de setembro de 1850, quatorze dias após a Lei Eusébio de Queirós, e isso não é coincidência. A abolição do tráfico de escravos marcou a transição do uso da mão de obra escrava ao da mão de obra imigrante europeia, sendo esses os pobres que tinham o papel de trabalhar, enriquecer as elites e continuar pobres. Significa que a lei que determinou a classe proprietária excluiu automaticamente ex-escravos, trabalhadores imigrantes e indígenas do acesso à terra, condicionando seu uso à contratação dos barões sanguinários do período anterior. Aos poucos, assim foi se consolidando o que viria a ser a classe trabalhadora do Brasil. 

Desse giro histórico, é possível afirmar que todos os documentos atuais que derivam dos títulos da Lei de Terras, escritos e assinados com sangue dos explorados têm a função histórica de expulsá-los dessas terras até hoje. Assim, entendemos a postura complacente dos governos, das autoridades e da comunidade internacional, que vê a violência no campo apenas como um problema, mas que resolver significaria agredir a dominação dos herdeiros dos massacres.

A Constituição Federal de 1988, que inaugurou o atual “regime republicano” nas fases fundiárias do Brasil, embora verse sobre direitos indígenas de forma inédita e até aponte a perspectiva da Reforma Agrária, é marcado por profundas contradições, insanáveis pelo próprio capitalismo, como exemplo: enquanto permite que a livre iniciativa (privada) e a propriedade privada (dos grandes meios de produção, incluindo terras), sejam preceitos fundamentais da Ordem Econômica do Brasil, coloca como contrapeso a função social da propriedade (art. 170 CF/88). 

O que pode parecer uma preocupação com o equilíbrio de forças é desmentido pelo que se vê: a defesa do lucro pesa milhares de vezes mais na balança quando do outro lado está o direito à vida de trabalhadores, comunidades indígenas e quilombolas, ou o de viver sem contaminação crítica de mercúrio, sem estupros e assassinatos por garimpeiros. O que marca o regime republicano é o mesmo que se observa em toda a história da humanidade após o advento da propriedade privada: a luta de classes.

O que está por vir

Para virar Lei, normalmente um PL precisa ser aprovado nas duas casas do Congresso Nacional (Câmara e Senado), passando por comissões para verificar assuntos específicos a depender do assunto. Para este PL, como foi aprovado o caráter de urgência na Câmara dos Deputados, a etapa de análise de comissões foi pulada, mas que provavelmente não impediria o rito se acontecesse. 

A próxima votação será no Senado e, caso aprovado, o Presidente da República pode sancionar ou vetar (completa ou parcialmente) e essa é uma questão delicada. Primeiro, porque a aprovação da urgência e a votação favorável na Câmara em poucos dias já têm o poder de impulsionar ataques que já vinham se escalando desde o governo Bolsonaro e podem continuar mesmo (ou ainda mais) se o PL for vetado (o que pode fazer o PL ser rediscutido no Congresso Nacional).

Segundo, porque Lula, embora declarando ser contra o marco temporal, precisa assumir uma posição mais clara sobre a questão das terras. Se, por um lado, sua campanha foi marcada pela bandeira da “diversidade” e até convidou representantes indígenas à posse presidencial, por outro, existe um aberto e controverso compromisso com a burguesia, nacional e imperialista, e aí estão incluídos as grandes corporações de agronegócio e latifundiários que são exatamente os responsáveis pela violência contra indígenas. 

Como exemplo recente, os irmãos Joesley e Wesley Batista, conhecidos pelos escândalos envolvendo a empresa JBS, que enriqueceu sem precedentes durante os governos anteriores do PT, compuseram a recente lista de convidados para a comitiva presidencial que viajou a negócios à China e aos Emirados Árabes em abril, junto a 100 outros políticos, representantes do agronegócio e seus financiadores. Foram mais de 40 acordos firmados entre o setor privado brasileiro, o Banco da China e empresas particulares chinesas.

 Foto: Ricardo Stuckert
Em seu governo, além da recente declaração do vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin, em favor da exploração de potássio por mineradoras particulares em áreas indígenas (principal minério usado para a fabricação de fertilizantes ao agronegócio), Lula é responsável pela nomeação de Simone Tebet ao Ministério do Planejamento e Orçamento do Brasil. Tebet, conhecida defensora de latifundiários, foi autora do PL 494/15 que visava proibir a demarcação em conflitos fundiários de terras indígenas a comunidades que não tivessem um estudo antropológico prévio comprovando seu vínculo com a terra, o que é surreal de se exigir de comunidades que muitas vezes nunca viram um médico na vida.  

Isso, junto ao já declarado apoio à Reforma do Ensino Médio, à aceitação da Reforma Trabalhista e outros ataques à classe trabalhadora, nos evidencia que a mão que pode vetar o PL pode ser a mesma a assinar mais incentivos fiscais e financiamentos públicos a empresas como JBS e Agro Investments Sachetti. Essa contradição é sintomática de um governo que conciliação de classes. Isso significa sangue indígena e da classe trabalhadora jorrando no altar das finanças enquanto burguesia e governo brindam vinho das vinícolas de trabalho escravo durante suas viagens de negócios ao exterior. Não existe conciliação em equações cujas premissas são sangue e lucro! 

Portanto, a confiança dos movimentos indígenas, dos trabalhadores do campo e da cidade deve ser na própria mobilização nas ruas. É isso que de fato pode determinar o tom nas ruas e por consequência sacudir os escritórios da democracia burguesa, pressionando o Senado e Lula a rejeitarem esse projeto. Nos somamos à campanha pela retirada imediata do projeto e pela reforma agrária, apontando também a necessidade de tomar as terras das mãos da burguesia e construir um novo modelo de sociedade que não dependa de acordos de gabinete e da exploração predatória do capitalismo.