Ernest Mandel em evento político reivindicando a 4ª Internacional

A autoproclamada 4º Internacional, de Pablo e Mandel: Uma virada para o ecletismo filosófico (Parte 1)

Este artigo foi originalmente publicado no Foice&Martelo, publicação que analisa a situação política nacional e internacional de um ponto de vista marxista e das tarefas revolucionárias. Conheça o jornal, assine e tenha acesso exclusivo ao conteúdo completo do número vigente e ao acervo de edições. Confira a edição em vigor.

Em 1996, a “4º Internacional” aprovou um documento intitulado “Nossa Internacional” . Nesse texto, eles explicam a base teórica da sua organização:

“Se citando nossas referências históricas ajuda a esclarecer quem somos, nos identificamos com Karl Marx, Friedrich Engels, Rosa Luxemburgo, VI Lenin e Leon Trotsky. Os muitos outros que enriqueceram nossa análise e trabalho teórico incluem Tchernichevski, Plekhanov, Hilferding, Otto Bauer, Gramsci, Georg Lukács, Pannekoek, Alexandra Kollontai, Che Guevara e nosso principal camarada Ernest Mandel, que faleceu em 1995.”

Em outros termos, esta “4º” deixa de ser uma organização marxista e passa a ser uma organização eclética. Para lembrar, Guevara, por muito que seja um homem pessoalmente valente, nada entendia de luta de classes. Acreditava que o campesinato era a força transformadora que mudaria o mundo  – morreu em uma tentativa de mobilizar o campesinato na Bolívia, desprezando a forte classe operária boliviana, que tinha realizado uma das maiores revoluções depois da segunda guerra e foi entregue nas mãos da burguesia por seus dirigentes.

Lukács já é um caso bem diferente e está muitos degraus abaixo de Guevara como alguém que enriquece o trabalho teórico. Afinal, por maiores que sejam os erros de Guevara, ele foi um homem que combateu o capitalismo e deu a sua vida nesse combate. O oportunista e estalinista Lukács se descreve muito bem (ou como disse um dia uma jovem, “ele auto se acha”) num artigo de 1967 (História e Consciência de Classes, 1932, Prefácio para uma nova edição)  onde explica como conduziu seus debates teóricos e suas reflexões acerca da que foi uma de suas maiores obras:

“A situação era diferente no movimento húngaro. Landler morreu em 1928 e em 1929 o partido preparou-se para o seu segundo congresso. Foi-me dada a tarefa de elaborar as teses políticas para o Congresso. Isso me colocou frente a frente com meu antigo problema na questão húngara: um partido pode optar simultaneamente por dois objetivos estratégicos diferentes (legalmente para uma república, ilegalmente para uma república soviética)? Ou olhado de outro ângulo: pode a atitude do partido em relação à forma do Estado ser uma questão de conveniência puramente tática (isto é, com o movimento comunista ilegal como objetivo genuíno, enquanto o partido legal não é mais do que uma manobra tática)? Uma análise minuciosa da situação social e econômica na Hungria me convenceu cada vez mais de que Landler, com sua política estratégica em favor de uma república, havia instintivamente abordado a questão central de um plano revolucionário correto para a Hungria: mesmo se o regime de Horthy tivesse passado por uma crise profunda para criar as condições objetivas para uma revolução completa, a Hungria ainda seria incapaz de fazer a transição diretamente para uma república soviética.

Este não é o lugar para discutir todas essas diferentes visões. Particularmente, como o texto das teses dificilmente pode ser considerado como tendo um grande valor como um documento teórico hoje, mesmo que para mim, pessoalmente, eles mudaram toda a direção do meu desenvolvimento posterior. Mas minha análise foi inadequada tanto no nível de princípio quanto de detalhes concretos. Isso se deveu em parte ao fato de que, para tornar as questões principais de substância mais aceitáveis, eu havia tratado os assuntos com demasiada frequência e não dava força suficiente aos particulares. Mesmo assim, causaram um grande escândalo no partido húngaro. O grupo Kun viu as teses como o mais puro oportunismo; o apoio para mim do meu próprio partido era morno. Quando ouvi de uma fonte confiável que Bela Kun estava planejando me expulsar do Partido como um “Liquidador”, desisti da luta, pois estava bem ciente do prestígio de Kun na Internacional, e publiquei uma “autocrítica”. (grifo nosso)”

Esse pequeno trecho mostra bem o que é Lukács: um reformista que acredita na necessidade de uma república burguesa em um país industrializado para se chegar à revolução. Que desistiu de suas teses por medo de ser expulso do partido. Mas que continua a acreditar nessas teses reformistas (de 1929) e explica que elas moldaram todo o seu pensamento. Não é à toa que ele procure se diferenciar de Engels (que explica que a prática é o critério da verdade) e que seja totalmente crítico ao trotskismo.

Sim, esse tipo de homem precisa “inventar” uma nova “práxis” em Marx, a sua “totalidade”, para evitar a parte “revolucionária” de Marx que criticou a Comuna de Paris como “assalto aos céus”, mas desenvolveu com toda a energia e os meios que dispunha uma atividade prática de auxílio à Comuna. Esse tipo de atividade, de “práxis” marxista, não convém a um reformista que pede a república burguesa como degrau para a república dos conselhos. Assim, a Internacional dita “trotskista” acolhe esse falsificador e reformista como uma de suas referências “teóricas”. Trotsky só não se revira em seu túmulo porque está bem morto.

Aplicação prática

O congresso da “4º” de 2018 revela o significado profundo dessa mudança. Assim é que em vez de construir partidos que combatam pelo comunismo, a “IV” propõe :

“Nosso objetivo é formar partidos do proletariado:

  • Anticapitalistas, internacionalistas, ambientalistas e feministas.

  • Amplos, pluralistas e representativos.

  • Profundamente comprometidos com a questão social e defensores das aspirações sociais imediatas do mundo do trabalho.

  • Expressem a combatividade dos trabalhadores, o desejo de emancipação das mulheres, a revolta da juventude, a solidariedade internacional, e contrários a todas as injustiças.

  • Eixar sua estratégia na luta extra-parlamentar, na auto-atividade e na auto-organização do proletariado e dos oprimidos.

  • que se definam claramente pela expropriação do capital e pelo socialismo (democraticamente autogerido).”

Assim, os partidos que a “4º” quer formar colocam em pé de igualdade a luta pela transformação social e a luta pelo ambiente e pelo feminismo. Se isso parece uma “questão menor”, ela volta no final ao definir que combatemos pelo socialismo e não pelo comunismo. E também na formulação de eixar a estratégia na luta extraparlamentar. Lenin explicou com clareza, no livro O que fazer? que a tarefa dos sociais-democratas (a então 2º Internacional Revolucionária) era a de ajudar os operários a alçar-se da condição de “classe em si”, que combate pelos seus direitos econômicos e sindicais imediatos (o que inclui a luta contra as injustiças e discriminação no “mundo do trabalho”, como contra as mulheres, racismo etc) em “classe para si”, que combate pelo socialismo e pelo comunismo, ligando cada questão da luta sindical, contra a injustiça e geral pela tomada do poder.

Em termos gerais, o ecletismo filosófico da autodenominada “4º” levou a que regredissem ao “programa mínimo” da 2º Internacional, das reivindicações imediatas, sem definir quais e incluindo o “feminismo” e o “ecossocialismo” em suas reivindicações.

Em outras palavras, eles jogaram no lixo o combate de Rosa de Luxemburgo e Lenin contra os reformistas. Mais ainda, o Programa de Transição escrito por Leon Trotsky para ser a base programática da 4º Internacional e seu método de encadear as palavras de ordem de forma a conduzir a uma e só conclusão: é necessário que a classe operária tome o poder e instale o regime dos sovietes.

Da mesma forma, o ecletismo filosófico agora se torna o ecletismo programático que propõe: “uma esquerda capaz de unir a preciosa herança do marxismo crítico e revolucionário com a elaboração feminista, a ecossocialista ou o desenvolvimento dos movimentos indígenas da América Latina”.

Em vez de explicar, como Lenin, “camponeses, vocês viverão mil mortes antes de se tornarem proletários” (desenvolvimento do capitalismo na Rússia), a “4º” pretende incorporar uma pretensa elaboração dos “movimentos indígenas”, na realidade a filosofia pequeno-burguesa de intelectuais que se sobrepõe a luta dos indígenas (basta ver os novos “zapatistas” e a sua recusa a lutar pelo poder). Recusando-se a ver o combate dos marxistas contras as perspectivas pequeno burguesas das “feministas”, que se contrapõe aos marxistas, dos “ecologistas”, a “4º” acaba incorporando em seu programa exatamente o contrário daquilo que as grandes comunistas como Clara Zetkin e Krupskaia aportaram ao movimento das proletárias.

Segundo eles, uma análise “realista” da situação. Porém, no meio disso tudo, uma frase que diz tudo sobre a regressão teórica dessa organização: “nosso objetivo é construir partidos e / ou grandes grupos anticapitalistas, pluralistas e verdadeiramente implantado na classe operária e dos movimentos sociais que articulam a resistência antineoliberal, como parte da luta contra a globalização capitalista”.

Depois de regredirem ao programa “mínimo” da 2º Internacional, passaram a outra condição – renegam o Manifesto Comunista, escrito por Marx e Engels em 1848, e que é a base teórica inclusive da construção de uma Internacional que se pretende (embora nem tanto, já vimos isso) marxista.

O Manifesto Comunista explica:

“A necessidade de um escoamento sempre mais extenso para os seus produtos persegue a burguesia por todo o globo terrestre. Tem de se implantar em toda a parte, instalar-se em toda a parte, estabelecer contactos em toda a parte.

A burguesia, pela sua exploração do mercado mundial, configurou de um modo cosmopolita a produção e o consumo de todos os países. Para grande pesar dos reacionários, tirou à indústria o solo nacional onde firmava os pés. As antiquíssimas indústrias nacionais foram aniquiladas, e são ainda diariamente aniquiladas… Para o lugar da velha auto-suficiência e do velho isolamento locais e nacionais, entram um intercâmbio omnilateral, uma dependência das nações umas das outras.”

Isso em 1848. Os contos de fada da luta contra a globalização hoje, se reduzem na prática a um reacionarismo sem razão de existir. A tarefa dos comunistas é outra, é entender que o que temos é destruição mundial dos direitos dos trabalhadores, do qual a deslocalização de empresas faz parte.

(Fim da 1ª parte)