Carta ao ator Ary Fontoura sobre suas propostas à Dilma

Uma carta ao ator Ary Fontoura com considerações sobre sua carta à Dilma. Afinal, a que a presidente, recém empossada para seu segundo mandato, deveria renunciar e o que ela deveria abraçar?

Ao contrário de Dilma e de você próprio, não sou uma figura conhecida. Ainda assim, se você escreveu para todos, sinto que também posso escrever para ti neste mesmo tom coloquial que você empregou ao escrever para Dilma uma carta que ganhou certa repercussão.

Permita-me, respeitosamente, discordar de tua análise destes últimos decênios da história do Brasil. Você cita os diferentes presidentes do Brasil e suas renúncias como, em última análise, resultantes do combate entre “forças terríveis” que nunca foram identificadas na carta de Jânio Quadros ou aos “opositores” na carta de Getúlio. Acredito que tal análise é, francamente, incorreta.

Estou muito longe de ser admirador dos dois presidentes citados e, para ser mais direto, sou dos mais críticos. Mas, ao contrário de Heródoto, não acredito que os “grandes homens” ou os “heróis” façam a história. Pelo contrário, eles só são “grandes” por representarem em diferentes momentos da história a corrente, o fluxo que conduzia aos grandes acontecimentos. Em termos mais precisos, por representarem em determinado momento o combate de uma classe social em defesa de seus interesses. Jânio e Getúlio representavam frações da burguesia brasileira e perderam a mão na defesa destes interesses. Por isso pareciam tão sozinhos, por isso estavam tão desesperados. A eles, nunca lhes ocorreu que, além da burguesia, existia uma classe trabalhadora sofrida que merecia uma boa representação. A grande obra de Getúlio, a CLT, foi mais que uma concessão, foi a codificação de uma série de direitos que os sindicatos estavam arrancando com a luta contra os interesses da burguesia, seu  objetivo fundamental foi impedir uma explosão social maior. De Jânio, então, nada se salva.

Você se declarou simpatizante dos ideais socialistas durante os anos de chumbo. Por isto escrevo esta resposta. O problema central de Dilma, infelizmente, não é a corrupção que continua a existir, desde os tempos da colônia até hoje. Mas o fato de estar submissa à ordem capitalista, às relações sociais desse sistema, à necessidade que tem determinados grupos econômicos de obterem mais vantagens, de tempos em tempos, para se apoderar dos bens públicos. E nós vemos, de tempos em tempos, alguns ricos indo para a prisão, para parecer que a justiça é igual para todos. Nos EUA, a farsa existe até no momento da condenação, pois os ricos vão para as cadeias de ricos, privadas, e vivem vidas de “luxo”, apenas limitados pelos portões.

Aqui, como ainda não privatizaram as prisões, os “coitados” ainda podem ficar presos, durante algum tempo, em locais sem tanto luxo, mas isto dura pouco. Existe solução? É evidente que sim, mas acredito que você olha para o lado errado quando busca esta solução. Você escreve:

Como chefe maior dessa Nação, como Presidente ou Presidenta, renuncie à corrupção, aos corruptores, aos corrompíveis, aos corrompidos; renuncie à roubalheira política, aos escândalos na Petrobras; renuncie à falta de vergonha e aos salários elevados de muitos parlamentares; renuncie aos altos cargos tomados por ladrões; renuncie ao silêncio e ao “eu não sabia”; renuncie aos Mensaleiros; renuncie ao apadrinhamento político, aos parasitas, ao nepotismo; renuncie aos juros altos, aos impostos elevados, à volta da CPMF; renuncie à falta de planejamento, à economia estagnada; renuncie ao assistencialismo social eleitoreiro; renuncie à falta de saúde pública, de educação, de segurança (Unidade de Polícia Pacificadora não é orgulho para ninguém); renuncie ao desemprego; renuncie à miséria, à pobreza e à fome; renuncie aos companheiros políticos do passado, a velha forma de governar e, se necessário, renuncie ao PT.

Dizem que o Natal é uma época de trégua e que em Brasília a guerra só recomeça depois do Ano Novo. Para entrar na história, porém, não será necessário ser extremista como Getúlio e Jânio e renunciar a Presidência da República, mas será necessário não renunciar ao seu país, ao seu povo. Governe com os opositores, governe com autonomia. Faça o seu Natal ser particularmente inspirador e se permita que a sua história futura seja coerente com o seu passado, porque o brasileiro tem o coração cheio de sonhos e alma tomada de esperanças.

São palavras irritadas e com razão. Mas a irritação não pode impedir de ver o essencial que há por trás de todos os nossos problemas e, dessa forma, partir para conclusões erradas sob influência da propaganda da direita. Saúde e educação pública e gratuita todos queremos. Mas é possível fazer isso sem expropriar todos os que durante estes anos, com ou sem corrupção, “mamaram” nas tetas do estado e agora estão milionários, recebem milhões e milhões (para não dizer bilhões) de transferências governamentais na forma de desonerações fiscais, verbas para entidades não tão assistenciais assim, PROUNI, financiamento estudantil e outros? Não deveríamos começar estatizando todo o sistema de saúde e todos os estabelecimentos privados de educação que receberam verbas ou “incentivos” do governo?

Falta de planejamento? Juros altos? Impostos altos? Como planejar a balburdia capitalista? Isso é impossível. O que é possível é estatizar sob o controle dos trabalhadores as grandes empresas, os grandes bancos, as grandes fazendas (o chamado agrobusiness) e a partir dai estabelecer um plano econômico que só pode ser realizado se tivermos como horizonte o socialismo. Sem isso, pedir planejamento é inútil e irrealizável.

Claro, você tem razão. Há que renunciar à algo e abraçar algo novo. Dilma deveria renunciar às alianças com a burguesia e abraçar o proletariado, os trabalhadores. Que estão muito, mas muito longe, da oposição. Oposição esta que nada tem de consequente, se você lembrar dos escândalos de corrupção e da falta de água em São Paulo, estado dirigido justamente pelo maior partido de oposição, o PSDB. Dilma precisa renunciar ao PT? Precisa renunciar ao PT de hoje, que defende o capitalismo e abraçar o manifesto de fundação do PT que defendia a transição para o socialismo.

Enfim, fica aqui a carta de um admirador do teu trabalho artístico, embora um tanto crítico de tua posição política.

Que venha 2015 com muitas lutas em direção ao socialismo!