Bolívia, 9 de abril de 1952: Uma “revolução de fevereiro” esquecida?

A Bolívia de meados do século 20 era um país arcaico de pobreza espantosa, um daqueles países onde os números e as porcentagens falam por si, e simplesmente enumerá-los é compilar uma terrível acusação.

Quatro quintos dos indígenas não falavam outra língua além do seu vernáculo, enquanto 90% eram analfabetos. Duzentos mil mineiros trabalhavam maltrapilhos no subsolo, em profundidades onde a umidade chegava a 95%, e produziam 90% da renda nacional. Metade estava infectada com sífilis e 60% com tuberculose. Em 1950, os 8% que eram donos de terras e tinham propriedades maiores que 500 hectares (e muitas vezes de milhares de hectares) possuíam 95% do solo cultivável. 

O “gamonal”, o grande latifundiário, se beneficiava do trabalho do “colono” durante vários dias da semana sem remuneração, e sempre que julgasse necessário para obras que considerasse de interesse geral. Dois milhões de camponeses bolivianos viviam “fora da economia monetária”, para usar uma expressão suave e vazia de conteúdo.

Desde a primeira descida ao subsolo, o mineiro podia esperar apenas mais dez anos de vida à sua frente. Ele não só ganhava apenas o suficiente para alimentar sua família, mas também tinha que comprar o álcool e a droga – a coca – que lhe permitiria continuar nessas condições terríveis. Esses últimos ele comprava no comércio da propriedade, no platô onde ia morrer de tuberculose, silicose, exaustão ou overdose. Então, ele pagava com seu sangue e suor os dividendos dos acionistas das firmas de Hochschild, Aramayo ou Patiño. 

Antenor Patiño, cujas ações renderam 47% de seu valor nominal, era o verdadeiro governante tanto da Bolívia quanto (em nome do imperialismo) do estanho. Diz-se que ofereceu à princesa Margarida um casaco de pele no valor de US$ 50 mil. Esses homens, capitalistas e donos de grandes latifúndios, escravizadores dos indígenas, eram conhecidos como os “rosca” e usavam o reservatório inesgotável de trabalho formado pelas massas de pobres camponeses à margem da subsistência e da sociedade. Por muito tempo eles controlaram sem dificuldade uma pequena burguesia, da qual tanto necessitavam para seu papel na produção quanto para manter a ordem. Ao todo, cerca de 150 mil pessoas formavam o corpo de eleitores, a “classe política”, para usar esse termo duvidoso em um sentido real.

A Revolução de 9 de Abril

O general Antonio Seleme, chefe da polícia, e o general Humberto Torres Ortiz, chefe do Estado-Maior do Exército, decidiram tomar a capital em 8 de abril de 1952. Sua desculpa era que uma insurreição “da esquerda” estava sendo preparada. Eles acreditavam estar apenas realizando uma operação policial, que certamente poderia ser necessária, mas que seria um assunto rotineiro, um pequeno “pronunciamento” segundo a tradição sul-americana. Eles estavam enganados, pois sua iniciativa desencadeou uma revolução. As manifestações operárias de 8 de abril tiveram um desfecho inesperado. A aliança precipitada entre os rebeldes e as chamadas unidades militares “leais” chegou demasiado tarde. Os trabalhadores obtiveram armas e, em 9 de abril, lançaram ataques contra os postos da polícia e do exército. As unidades do exército desmoronaram diante da maré de pessoas que tomou as ruas. Barricadas de trabalhadores foram erguidas por toda La Paz.

Em 9 de abril, os líderes do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) foram rápidos em anunciar que um novo governo estava sendo formado sob a liderança do exilado Paz Estensoro. Os trabalhadores armados chegaram para exigir que os novos ministros abrissem espaço para três representantes que os trabalhadores já haviam escolhido. Muito claramente algo havia mudado no reino do estanho. O que aconteceu foi uma revolução, que passou a ser conhecida como a Revolução de 9 de Abril.

Em sua análise da revolução, realizada em 1963, Guillermo Lora, então líder do Partido Operário Revolucionário (POR), disse:

“O 9 de Abril pode ser considerado a ‘Revolução de Fevereiro’ boliviana se levarmos em conta as diferenças devido às circunstâncias. A semelhança mais notável está em que os trabalhadores fizeram a revolução e que foi o partido político de outra classe que tomou o poder. Em certa medida, a pequena burguesia boliviana desempenhou o papel da burguesia liberal na Rússia. Nossa ‘Revolução de Outubro’ demorou a chegar. Essa é a diferença que chama a atenção. O refluxo do movimento revolucionário, que dissemos ser apenas temporário, durou muito tempo.”

Catherine e François Chesnais escrevem em sua introdução à tradução francesa do livro de Lora:

“A Revolução de Abril foi uma revolução genuína. As massas avançaram para a frente do palco com extraordinária determinação e desejo de derrubar definitivamente o domínio da Rosca. Realizaram a atividade apropriada às massas. Através da destruição do ‘gamonalismo’ no campo, bem como da nova experiência política que significou para o proletariado e sua vanguarda, a revolução representou uma ruptura profunda com o passado. Uma nova etapa na história da luta de classes na Bolívia começou em abril de 1952. Nesse aspecto, abril de 1952 realmente foi como fevereiro de 1917, incluindo o atraso até outubro na evolução da situação.”

No 31º aniversário da revolução de abril de 1952, e logo após a publicação de um artigo em Informations Ouvrières, intitulado “O paradoxo de fevereiro [de 1917]”, é interessante tentar explicar por que essa “Revolução de Fevereiro” surgiu e por que razão a “Revolução de Outubro”, que ela prenunciou, foi adiada por tanto tempo.

A situação econômica, social e política descrita acima deteriorou-se continuamente desde a década de 1920. O preço do estanho caiu, a agricultura estagnou e a pequena burguesia viu fechadas as possibilidades de movimento social ascendente. Uma parte da pequena burguesia deveria servir a “rosca” até o fim, mas a juventude, e principalmente os estudantes, buscavam uma solução por meio do nacionalismo ou mesmo do marxismo e de um movimento operário que dava seus primeiros passos.

A Segunda Guerra Mundial e os desenvolvimentos políticos que a acompanharam aceleraram uma diferenciação política que acabou levando à explosão e à erupção das massas em cena.

As forças que se enfrentaram

Os stalinistas apareceram abertamente em 1926 com uma federação sindical, a Confederación Sindical de Trabajadores en Construcción de Bolivia (CSTB), que estava ligada à confederação liderada pelo agente mexicano de Stalin, Lombardo Toledano, e depois, em 1940, com um partido, o Partido de La Izquierda Revolucionário (PIR). A partir de 1941, o PIR apoiou o conceito de “unidade patriótica”, ou seja, defendeu os interesses dos “aliados” da burocracia soviética. Enviou seus representantes a governos reacionários, assim como o fez seu partido irmão em Cuba com o governo de Batista. Essa colaboração com o que parecia ser o principal inimigo alienou o PIR de muitos dos seus apoiadores, em benefício do movimento nacionalista.

O MNR foi fundado em 1941 e proclamado como um movimento patriótico de inclinação socialista pela independência da Bolívia. O MNR entrou no governo pela primeira vez após o golpe militar que levou ao poder o Coronel Villarroel, com o objetivo de ganhar um programa de reformas limitadas e particularmente de usar o Estado para criar sindicatos camponeses e a nova organização sindical da FSTMB, que deveria dispor de recursos consideráveis para organizar os trabalhadores.

O MNR beneficiou-se a este nível da resposta das massas que se voltaram para ele devido ao desgosto com a política stalinista clássica do PIR, que apoiava a rosca contra os nacionalistas, a quem tratava como “pró-nazistas”.

No entanto, um setor escapou do controle dos sindicatos do MNR, o dos mineiros de estanho. Durante a década de 1940, um grupo operário formado por militantes do POR, fundado no exílio sob a influência dos trotskistas no Chile e na Argentina para construir a Quarta Internacional na Bolívia, pouco a pouco construiu uma base entre os mineiros.

Foram eles que, em novembro de 1946, conquistaram a Federação dos Mineiros para adotar as conhecidas Teses de Pulacayo com um programa de nacionalização das minas, reforma agrária e sufrágio universal que o MNR se viu obrigado a apoiar.

Já em 1947 o Bloco Parlamentar dos Mineiros era forte o suficiente para eleger quatro deputados, um dos quais era Lora, e dois senadores, um dos quais era Lechin, que durante um período usou a autoridade política do POR para se tornar um destacado dirigente sindical e agente indispensável do MNR à frente da Central dos Trabalhadores Bolivianos (COB).

A Central Sindical Boliviana, COB, foi fundada apenas 11 dias após a vitória nas ruas da Revolução de 9 de Abril. A fundação aconteceu por iniciativa de um militante do POR, Miguel Alandia Pantoja. Naquela época, não era apenas a maior organização de massas do país, mas também um verdadeiro constituinte do duplo poder, com características fortemente marcadas do poder de tipo soviético.

O PIR ficou desacreditado, o MNR foi ultrapassado e forçado a adotar as palavras de ordem do POR para controlar o movimento e a influência do POR foi crescendo. Esses foram os elementos políticos que explicam por que as ações dos generais em 8 de abril abriram a brecha pela qual se derramou o maremoto das massas e que resultou na eclosão da revolução. Nessas condições, quando o programa do POR abriu uma perspectiva de luta não havia aparato contrarrevolucionário capaz de atuar decisivamente como freio.

Paz Estensoro foi recebido com entusiasmo pela multidão quando voltou do exílio. Exigiam a nacionalização das minas e a expropriação dos latifundiários. Ele cedeu e se preparou para contra-atacar.

O contra-ataque do MNR

Há uma lei das revoluções que se aplica de modo geral, mas especialmente em revoluções como a de fevereiro de 1917. Em sua primeira fase, as massas se voltam para as organizações que elas levaram ao poder, que lhes parecem ser o partido da revolução vitoriosa, que estão no governo e que têm a maior influência de massa.

Apesar das tremendas qualidades do POR, e apesar da sua influência nas regiões mineiras, o fato é que, no início de abril de 1952, era apenas um partido muito pequeno e, sobretudo, carente de recursos materiais. O MNR, por outro lado, era um verdadeiro partido de massas. Gozava do apoio de todas as camadas dirigentes da sociedade, que o viam como seu último defensor, e tinha tudo o que precisava para gozar de uma imagem favorável e dar às massas a ilusão de ser seu partido, além de uma implantação real na classe trabalhadora.

Quanto ao POR, não entendeu claramente a situação. Mesmo em sua direção, havia alguns que tinham ilusões na ala esquerda do MNR, como Lechin, que a burguesia havia colocado ali para isso mesmo. O POR não propôs o slogan “Todo o poder à COB”. Tropeçava atrás de Lechin, que falava em “controlar” o governo quando o governo excluía sistematicamente a COB dos cargos de poder e estimulava o duplo processo de integrá-la ao aparato governamental e burocratizá-la.

Logo, uma ala revisionista na liderança do POR estava apoiando a ideia de que as massas bolivianas tomariam o poder dentro da estrutura de suas organizações existentes – o que, em termos reais, significava ficar sob a liderança da ala esquerda do MNR.

Essa crise no POR abriu as portas para a política de estabilização e para o contra-ataque do MNR. Em outubro, a nacionalização das minas de estanho, no momento em que as massas rurais começavam a se movimentar, serviu como um duro freio. Tratava-se da nacionalização com indenização, o que deixava em aberto a possibilidade de retorno à propriedade privada, enquanto a criação da empresa de gestão mista das minas, a Comibol, lançava as bases materiais para a corrupção em larga escala das direções sindicais, que estavam sendo integradas ao Estado sob o pretexto de compartilhar o controle.

O refluxo da revolução, que em geral era inevitável, só poderia ser acelerado nos anos seguintes, depois que o proletariado estivesse desorientado pelas consequências de sua vitória. O movimento camponês, por sua vez, deslocou-se para a forma burguesa de pequenas propriedades agrícolas.

Trinta e um anos após a Revolução de 9 de Abril, não houve um “outubro boliviano”. Isso não pode ser contestado. No entanto, a Revolução de 9 de Abril sobreviveu na consciência das massas na Bolívia e na América do Sul. Podemos estar convencidos disso pela campanha internacional contra os “trotskistas” na Bolívia nos anos 1960 – leiam o livro de Regis Debray   –, pela continuação das tentativas de destruir o POR e as lutas dos trabalhadores e camponeses e pela luta pela Assembleia Constituinte em 1971 – luta que ainda não terminou, como ficou demonstrado recentemente pelo vergonhoso colapso do governo dos generais do narcotráfico, e pela chegada ao poder de Siles Zuazo, braço esquerdo do Paz Estensoro.

Digamos claramente: por trás das derrotas que se seguiram ao “fevereiro” boliviano, em 1971, como em 1952, está a crise da Quarta Internacional. Certamente, não é apenas na Bolívia que a Internacional revolucionária é necessária para a transição vitoriosa de fevereiro a outubro. Mas é porque a Bolívia chegou ao seu “fevereiro” em 1952 que a questão da Internacional apareceu ali de forma tão marcante.

TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.