A transformação da moral

A teoria comunista está a uma dezena de anos à frente de nossa atualidade russa – em algumas esferas, talvez esteja inclusive um século adiantada. Se não fosse assim, o Partido Comunista não seria um grande poder revolucionário na história. A teoria comunista, mediante o seu realismo e nitidez dialética, encontra os métodos políticos para assegurar a influência do partido em qualquer situação determinada. Mas a ideia política é uma coisa e a concepção popular da moral, outra. A política muda rapidamente, mas a moral se aferra tenazmente ao passado.

Observar a vida tal como ela é

Isto explica muito sobre os conflitos entre a classe trabalhadora, onde os novos conhecimentos lutam contra a tradição. Estes conflitos são mais difíceis porque não encontram expressão e exigem publicidade na vida social. A literatura e os meios de comunicação não falam deles. As novas tendências literárias, ansiosas por manter o ritmo da revolução, não se preocupam pelos usos e costumes baseados na concepção da moral existente, uma vez que querem transformar a vida, não a descrever! Mas a nova moral não pode ser criada do nada, deve-se chegar a ela com a ajuda dos elementos já existentes, mas com capacidade de desenvolvê-los. Portanto, é necessário reconhecer quais são esses elementos. Isto não só se aplica à transformação da moral, mas a cada uma das formas da atividade humana consciente. Assim, em primeiro lugar, é necessário conhecer o que já existe e de que maneira está se desenvolvendo sua mudança de forma, se quisermos cooperar na recriação da moral.

Primeiro devemos ver o que está acontecendo na fábrica, entre os trabalhadores, nas cooperativas, nos clubes, nas escolas, nos bares e na rua. Temos que entender tudo isto, ou seja, devemos reconhecer os vestígios do passado e os germes do futuro. Devemos apelar aos nossos autores e jornalistas para que trabalhem nessa direção. Devem nos descrever a vida real tal como emerge da tempestade da revolução. O estudo da moral da gente trabalhadora deve se tornar uma das principais tarefas dos jornalistas, pelo menos para aqueles que têm seus olhos e ouvidos para isso. Nossa imprensa deve ver que o que se escreve é a história da moral revolucionária. E a imprensa deve também sinalizar aos seus colaboradores entre a classe trabalhadora sobre isto. A maioria de nossos jornais poderia fazer muito mais a esse respeito.

Para se alcançar tal elevado estado de cultura, a classe trabalhadora – e, sobretudo, sua vanguarda – deve mudar sua moral de forma deliberada. Deve trabalhar deliberadamente para este objetivo. A burguesia, antes de chegar ao poder, havia realizado sua tarefa até certo grau através de seus intelectuais. Quando a burguesia continuava sendo uma classe na oposição, havia poetas, pintores e escritores que já estavam pensando por ela.

Por que fracassou a Iluminismo burguês?

Na França, o século 18, que foi chamado o Século das Luzes, foi precisamente o período no qual os filósofos burgueses estavam mudando a concepção da moral social e privada e tentavam por todos os meios subordinar a moral ao domínio da razão. Os filósofos estavam ocupados com as questões políticas, com a Igreja, com as relações entre homens e mulheres, com a educação etc. Não há dúvida de que o mero fato da discussão desses problemas contribuiu enormemente para elevar o nível intelectual e cultural entre a burguesia. Mas todos os esforços realizados pelos filósofos do século 18 visando a subordinação das relações sociais e privadas ao reino da razão se desfizeram com um só fato – o fato de que os meios de produção estavam em mãos privadas, e estas eram as bases sobre as quais a sociedade devia ser construída de acordo com os princípios da razão. Para a propriedade privada, significa o livre jogo das forças econômicas, forças estas que não são, em absoluto, controladas pela razão. Essas condições econômicas determinam a moral e, enquanto as necessidades de o mercado de mercadorias dominarem a sociedade, é impossível subordinar a moral popular à razão. Isto explica os escassos resultados práticos que fundamentam as ideias dos filósofos do século 18, apesar da engenhosidade e ousadia de suas conclusões.

Leitura de L’Orphelin de la Chine de Voltaire, no salão de Madame Geoffrin (Malmaison, 1812), por Anicet Charles Gabriel Lemonnier, 1812 .

“A jovem Alemanha”

Na Alemanha, o período do Iluminismo e da crítica chegou em meados do século passado. “A jovem Alemanha”, sob a liderança de Heine e Börne [Karl Ludwig Börne], colocou-se na liderança do movimento. Vemos aqui o trabalho da crítica alcançado pela ala esquerda da burguesia, que declarou guerra ao espírito de servilismo, à educação pequeno-burguesa contrária ao Iluminismo, e aos preconceitos da guerra, e que tratava de estabelecer o domínio da razão com um ceticismo maior que seu predecessor francês. Este movimento se amalgamou mais tarde com a revolução pequeno-burguesa de 1848, a revolução que, longe de transformar toda a vida humana, não foi sequer capaz de varrer as pequenas dinastias alemãs. Em nossa atrasada Rússia, o Iluminismo e a crítica do estado existente na sociedade não alcançaram nenhum nível de importância até a segunda metade do século 19. Chernichevsky, Pissarev e Dobroliubov, educados pela escola de Belinski, voltaram suas críticas mais contra o caráter atrasado e reacionário da moral asiática que contra as condições econômicas. Opuseram o novo ser humano realista ao tipo de homem tradicional, o novo ser humano que está decidido a viver de acordo com a razão, e que se transforma em uma personalidade provida com as armas do pensamento crítico. Este movimento, conectado aos chamados evolucionistas “populares” (Narodniks), tinha pouca importância cultural. Mas, se os pensadores franceses do século 18 só foram capazes de ganhar uma pequena influência sobre a moral – sendo estas dominadas pelas condições econômicas e não pela filosofia, e a influência cultural imediata dos críticos sociais alemães foi inclusive menor, a influência direta exercida pelo movimento russo na moral popular foi bem mais insignificante. O papel histórico desempenhado por esses pensadores russos, incluindo o movimento Narodnik, consistia na preparação para a formação do partido e do proletariado revolucionários.

Premissas para a transformação da moral

Só a tomada do poder pela classe trabalhadora pode criar as premissas para uma completa transformação da moral. A moral não pode ser nacionalizada, isto é, não pode ser construída em harmonia com as exigências da razão, a menos que a produção seja racionalizada ao mesmo tempo, visto que as raízes da moral jazem na produção. O socialismo aponta por subordinar toda a produção à razão humana. Mas mesmo os pensadores burgueses mais avançados se limitaram às ideias da técnica de racionalizar, por um lado (através da aplicação da ciência natural, da tecnologia, da química, das invenções, das máquinas) e à política, por outro lado (através do parlamentarismo); mas não buscaram racionalizar a economia, que permaneceu como vítima de uma concorrência cega. Dessa forma, a moral da sociedade burguesa continua subordinada a um elemento cego e não racional.

Quando a classe trabalhadora tomar o poder, estabelecerá para si mesma a tarefa de subordinar os princípios econômicos das condições sociais ao controle e a uma ordem consciente. Por esses meios, e só por esses meios, há uma possibilidade de se transformar a moral de forma consciente. Os êxitos que obteremos nesta direção dependem de nossos êxitos na esfera da economia. Mas mesmo em nossa situação econômica atual poderíamos introduzir mais críticas, iniciativas e razão dentro de nossa moral do que realmente fazemos. Esta é uma das tarefas de nosso tempo. É óbvio que a mudança completa da moral: a emancipação da mulher da escravidão doméstica, a educação social das crianças, a emancipação do matrimônio de toda imposição econômica etc., só poderá ocorrer depois de um longo período de desenvolvimento (socialista), e dependerá, proporcionalmente, da medida em que as forças econômicas do socialismo dominarem sobre as forças do capitalismo. A transformação crítica da moral é necessária para que as formas tradicionais conservadoras da vida deixem de existir apesar das possibilidades de progresso que já se nos apresentaram na atualidade, devido às nossas fontes de ajuda econômica, ou que, pelo menos, se nos apresentarão no futuro.

Por outro lado, mesmo o menor êxito na esfera da moral, ao elevar o nível cultural dos homens e mulheres trabalhadores, aumentará nossa capacidade para racionalizar a produção e promover a acumulação socialista. Isto, por sua vez, nos dá a possibilidade de lograr novas conquistas na esfera da moral. Dessa forma, existe uma dependência dialética entre as duas esferas. As condições econômicas são o fator fundamental da história, mas nós, como Partido Comunista, e como Estado operário, só podemos influir na economia com a ajuda da classe trabalhadora, e, para lograr isto, devemos trabalhar sem cessar para promover a capacidade técnica e cultural do elemento individual da classe trabalhadora. No Estado operário, a cultura trabalha para o socialismo, e o socialismo, por sua vez, oferece a possibilidade de se criar uma nova cultura para a humanidade, que não conheça a diferença de classes.

Das recordações de Gorki sobre Lenin

Uma tarde Lenin estava na companhia de Gorki escutando um pianista magnífico que tocava uma peça de Beethoven na casa de um amigo. Depois de ouvir a peça, obviamente com grande prazer, voltou-se para Gorki e observou ironicamente:

“Não conheço nada mais belo que a Appassionata e poderia escutá-la todos os dias. Todas as vezes me domina e me enche de orgulho e um pensamento algo ingênuo e inocente me invade: Que coisas maravilhosas são capazes de fazer as pessoas!”

E sorrindo através de seus olhos semicerrados, Lenin acrescentou de forma pouco feliz:

“Mas me resulta difícil escutar música frequentemente. Fico com os nervos crispados. Sinto um impulso de dizer banalidades prazerosas e de acariciar as cabeças daqueles que, embora vivam em tal inferno seboso, são, no entanto, capazes de criar tal beleza. Mas, na atualidade, não se pode acariciar a cabeça de ninguém, te arrancariam a mão a mordidas. E, ademais, é necessário continuar dando golpes nas cabeças, golpes impiedosos, mesmo que nosso ideal seja o de nos opormos à violência contra os seres humanos. Hum – é uma responsabilidade infernal e difícil”.

Leon Trotsky,
Outubro de 1923.

TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.
PUBLICADO EM CEIP.ORG.AR