Foto: Alan Santos/PR

A pandemia, o negacionismo e as classes sociais

Em Sorocaba (SP), a médica Maria Flávia relata a insistência, muitas vezes agressiva, para que ela receite o “kit-covid” que a prefeitura tornou disponível. Mas ela e os outros médicos, que trabalham no mesmo posto de saúde, não aceitaram prescrever um tratamento que a ciência demonstrou ser ineficaz e, além disso, com efeitos colaterais potencialmente graves.

A promoção do uso de medicamentos ineficazes para o assim chamado tratamento precoce, encabeçada sobretudo por Bolsonaro e pelo Ministério da Saúde, mas também com a adesão de muitos prefeitos, é apenas um dos aspectos da desastrosa política negacionista na condução oficial da pandemia no Brasil.

E quanto a esse aspecto, deve ser lembrado que o governo contou com a cumplicidade do Conselho Federal de Medicina (CFM), que usou o pretexto da “autonomia do médico” para eximir-se da sua obrigação estatutária de condenar uma prática que só poderia ser qualificada como charlatanismo.

Em vários outros aspectos da atuação dos governos na pandemia, em formas e intensidade diferentes, o negacionismo foi a regra geral na grande maioria dos países. Ele manifestou-se, inicialmente, como negação da gravidade potencial da expansão do contágio, e depois pela campanha de desinformação contra as medidas sanitárias, apresentadas como um “remédio pior do que a doença”.

O governo Bolsonaro não é a exceção que confirma a regra, mas, ao contrário, é um dos casos extremos no qual a regra é aplicada, em declarações, ações e omissões, de modo particularmente brutal. Por outro lado, esse mesmo governo e o parlamento foram forçados a aprovar um auxílio emergencial, ainda que miserável, temendo as consequências políticas imprevisíveis do caos social.

A política do negacionismo não pode, pura e simplesmente, “negar a realidade”. Essa política defende os interesses materiais da classe dominante no contexto da pandemia, porém movimenta-se cercada de contradições e circunstâncias que a burguesia não pode resolver, nem pode controlar completamente.

Demagogos, como Bolsonaro, manipulam a falta de perspectivas, e sobretudo a descrença das massas no próprio sistema que eles defendem. Eles desviam o ódio contra a corrupção, contra o conluio dos políticos e grandes empresários, contra a burocracia estatal, contra a imprensa burguesa, contra os altos preços dos medicamentos, e assim por diante, para uma visão maniqueísta que promete depurar o sistema do seu lado mau, e restaurar o lado bom.

Teorias conspiratórias sobre a origem do vírus, sobre o suposto exagero nas estatísticas das mortes pela pandemia, sobre a segurança das vacinas etc., encontram um terreno fértil nas camadas politicamente mais atrasadas da população.

O negacionismo pretende criar uma falsa percepção da realidade, uma cortina de fumaça para ocultar tanto a incapacidade do Estado burguês em organizar o esforço coletivo necessário no enfrentamento da pandemia, quanto a sua impotência para implementar as medidas sanitárias sem agravar o desemprego e a miséria social.

Pessoas na fila tentando comprar oxigênio em Manaus (AM) Foto: André L. P. de Souza
De que modo, por exemplo, a promoção irracional do “kit-covid”, cujo único efeito é piorar a sobrecarga do sistema de saúde, pretende criar essa cortina de fumaça? Cometendo um crime para tentar encobrir outro crime ainda mais grave, ou seja, promovendo o charlatanismo para criar a falsa noção de que as medidas sanitárias não são necessárias. A burguesia comete um crime depois do outro na esperança de “salvar a economia”.

A burguesia tem vários cúmplices, como é o caso do CFM, mas essa entidade representa hoje os interesses de uma pequena fração de médicos que ainda são “profissionais liberais” ou são executivos do grande capital na área da saúde. A imensa maioria está na mesma situação da médica de Sorocaba, vivendo como trabalhadores assalariados no setor público ou privado, e com frequência suportando condições de trabalho precárias. E o mesmo ocorre com outras profissões, tradicionais ou mais recentes, de “nível superior”.

Bolsonaro tentou insuflar a revolta da pequena burguesia até mesmo contra as pouco eficazes quarentenas decretadas por governadores ou prefeitos. A resposta em geral foi pífia. Um punhado de pequenos empresários do comércio e do setor de serviços desfilaram em seus carros, e conseguiram apenas demonstrar que, se a base social do negacionismo é tão frágil e limitada, a suposta ameaça de um movimento fascista, que só pode existir como um movimento organizado e de massas, é uma ilusão. Entre os que abandonaram o “bolsonarismo”, a solução para a pandemia é um resignado “cada um faça a sua parte”.

Socialmente muito próximas da pequena-burguesia, as outras “classes intermediárias”, sem as quais a burguesia não pode conservar o seu domínio sobre o proletariado, incluindo os militares e a burocracia do aparato estatal, e os “formadores de opinião” na mídia e nas universidades, não conseguem formular nenhuma alternativa política ao evidente desastre do governo Bolsonaro. Com a escassez de vacinas atingindo até mesmo os países da União Europeia, eles começam a temer que a pandemia possa escavar o abismo social ainda mais fundo do que podiam imaginar.

O auxílio emergencial, que foi pago a uma parte considerável das camadas mais pobres e marginalizadas da população, foi suspenso há quatro meses e será retomado agora, com um valor reduzido a menos da metade, quando o número de mortes pela pandemia subiu para um patamar muito mais alto do que no ano passado. Esse contraste é tão violento que será recebido como uma ofensa. O desemprego, a fome, e o negacionismo brutal do governo, aumentam a temperatura no fundo do caldeirão social.

Na guerra contra o “inimigo invisível”, quem está servindo de carne de canhão, como acontece em todas as guerras, é a classe trabalhadora como um todo. Mas essa é uma guerra que não cria empregos e não suscita o entusiasmo patriótico, e está acelerando e tornando mais visíveis as contradições do sistema capitalista. Ela cria o medo do contágio e a necessidade do distanciamento, mas diariamente o exército de trabalhadores é forçado a aglomerar-se nos transportes públicos e nos locais de trabalho. Se a política do negacionismo mantém a produção não essencial funcionando, também é uma forma de negacionismo usar a pandemia como uma justificativa para a inércia política.

O mínimo que os dirigentes da CUT e do PT deveriam ser obrigados a fazer seria organizar uma greve geral para derrubar o governo Bolsonaro. Somente um governo dos trabalhadores, sem patrões nem generais, pode interromper o massacre social da pandemia. A “classe intermediária” que realmente sustenta o negacionismo burguês é, de fato, uma fração da própria classe trabalhadora, a aristocracia operária, que usa a falsa ameaça do fascismo para justificar a conciliação de classes, e a própria pandemia para justificar a inércia.