Foto: Tchelo Figueredo

A pandemia e o capitalismo

A regra geral tem sido a tentativa inicial dos governos de ocultar ou minimizar a gravidade potencial da pandemia da Covid-19, mesmo quando já existiam as informações sobre a letalidade e a velocidade de transmissão. Já era fato sabido e reconhecido que os obstáculos para controlar uma epidemia (mesmo no contexto nacional) e para reduzir o número de vítimas crescem a cada dia se a resposta for débil ou retardada. Porém, as considerações dessa ordem e qualquer medida que possa interferir na “livre circulação de mercadorias” são subordinadas à perspectiva fragmentada da lucratividade dos capitais individuais. A pandemia está além desses limites.

Uma pandemia, por definição, é um evento que ultrapassa as fronteiras nacionais, e dessa perspectiva a janela inicial de oportunidade foi perdida também em razão da completa falta de coordenação entre os estados nacionais (vide o exemplo gritante dos países membros da União Europeia). A Organização Mundial da Saúde (OMS) faz advertências e recomendações e implementa ações pontuais, mas não pode realizar nada além disso. O poder econômico, no mercado mundial, é controlado pelas grandes corporações dos países avançados, de modo que as relações internacionais são necessariamente condicionadas por uma combinação desigual de antagonismo e subordinação. Ao mesmo tempo, a pandemia ignora as fronteiras nacionais e nenhum país pode desligar a sua economia da interdependência das forças produtivas em escala mundial.

Dadas essas condições, a “gripezinha” dos trumps e bolsonaros, para citar apenas duas manifestações políticas da decadência burguesa, está impondo considerações de tal ordem que já não se trata apenas de admitir e contabilizar uma queda temporária dos lucros, mas sim de evitar de imediato e a qualquer custo uma ruptura social desastrosa, em escala nacional e internacional. E, além das mortes que poderiam ter sido evitadas, além do sofrimento pelo desemprego que já está disparando, no médio e longo prazo, a conta a pagar ainda será apresentada aos trabalhadores.

Estamos apenas no quarto mês de evolução da pandemia, porém a magnitude dos desdobramentos rapidamente atropelou os cálculos políticos, a lógica econômica e a estreita mentalidade do mundo burguês. Para a burguesia, o momento não poderia ser mais inconveniente, com o gigantesco endividamento público e privado, insuflado pelas crises anteriores, uma guerra comercial evoluindo e o céu da especulação financeira novamente ameaçando desabar. A queda das vendas no varejo está em 94% na Itália e na Espanha, 85% no Reino Unido, 77% na Alemanha, e nos Estados Unidos já chegou a 47% e está rapidamente subindo junto com o desemprego que, em poucos dias, subiu de 3% para mais de 10%.

Justamente na véspera de uma nova crise econômica mundial, aparece um monstrinho microscópico, vindo das entranhas de um mamífero asiático, e obriga o Estado burguês, para salvar o capitalismo do precipício social, a interromper o curso habitual dos negócios, a recomendar e mesmo forçar uma grande parte dos trabalhadores a ficar em casa, a distribuir dinheiro para evitar a revolta dos desempregados e informais e amenizar a mais completa paralisia do mercado, e a distinguir entre produção essencial e supérflua, intervindo diretamente em algumas fábricas e mesmo nacionalizando hospitais como ocorreu na Espanha. Até certo ponto, horror dos horrores para o capital, o Estado burguês é obrigado a subordinar o valor de troca ao valor de uso das mercadorias, invertendo parcialmente a lógica normal do capitalismo.

Mas não tenhamos dúvidas sobre a disposição da burguesia para extrair lucros extraordinários dessa inesperada “economia de guerra contra o inimigo invisível”, ao mesmo tempo em que já está fazendo a contabilidade dos prejuízos para jogar nas costas dos trabalhadores, como dizia Engels, “enquanto houver um músculo, um nervo, uma gota de sangue para explorar”. O presidente da Nestlé no Brasil afirmou que suas fábricas estão trabalhando a todo vapor, mas quando perguntado sobre as medidas de segurança para os trabalhadores, citou apenas o álcool gel e disse que depois poderia “dar mais detalhes”. O vírus não é a “causa” dessa crise social, política e econômica, mas está fazendo girar mais rápido e tornando mais visível o círculo vicioso das contradições do capitalismo.

Se a pandemia durar muito tempo, se a necessidade do “lockdown” durar mais do que três ou quatro meses, a burguesia será forçada a declarar guerra a um inimigo visível. Embora uma fração da classe dirigente imperialista esteja cogitando lançar um ataque militar contra alvos relativamente frágeis, como o Irã ou a Venezuela, o absurdo e a loucura desta opção no contexto de uma pandemia (que já matou mais americanos do que as guerras no Iraque e no Afeganistão somadas), certamente desencadearia uma oposição interna potencialmente explosiva. A burguesia terá que confrontar diretamente o inimigo visível que ela mais teme, a classe trabalhadora.

Proletários e a pequena-burguesia, incluindo aqueles que ainda tentam tapar os olhos com seus velhos preconceitos, incluindo os que ainda estão acreditando no conto de fadas da união “de todos” contra o inimigo comum – e com todos eles é fundamental treinar a paciência e desenvolver a capacidade de explicar o que está acontecendo – todos eles serão praticamente forçados a abrir os olhos e a deixar de lado as ilusões sobre o modo de ser da sociedade burguesa.

Do ponto de vista do movimento real da sociedade como um todo, a questão crucial dessa pandemia, na ausência de um remédio eficaz ou de uma vacina, não é o número disponível de leitos de UTI, ou a quantidade de aparelhos de ventilação mecânica, ou a falta gritante de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para os profissionais de saúde, embora tudo isso seja importante na medida em que esses recursos poderiam reduzir (talvez em 40%) a letalidade da doença. E mesmo essa questão do “colapso do sistema de saúde” também é uma consequência da natureza do capital, agravada em ampla escala por sua crise orgânica e terminal. Na Europa, uma das regiões mais ricas do planeta, a diminuição escandalosa dos leitos hospitalares (incluindo os de UTIs) nas últimas décadas é, claramente, uma consequência direta das políticas de austeridade impostas para jogar os custos dessa crise orgânica nas costas da classe trabalhadora.

Além de acentuar e expor mais claramente as contradições da sociedade burguesa, que já revelou a sua incapacidade global para organizar uma resposta racional e eficaz com os recursos científicos e tecnológicos já existentes, a letalidade e a velocidade de disseminação da doença em escala mundial são potencializadas pelas aglomerações urbanas e pela interdependência internacional das forças produtivas. Em outras palavras, o desenvolvimento das forças produtivas inevitavelmente produz novas necessidades, mas no capitalismo decadente essas novas necessidades são reprimidas e distorcidas em grau cada vez maior. Uma relação mais desenvolvida entre a produção e as necessidades sociais já passou do ponto em que a falta de uma economia planejada torna-se até mesmo um problema de saúde pública, uma questão de sobrevivência física para a humanidade.

A questão crucial dessa pandemia é que, dada a incapacidade do mundo capitalista para responder de modo racional e planejado, a eficácia de um “lockdown” anárquico e sem coordenação internacional é limitada e, inevitavelmente, sem uma perspectiva temporal de um prazo razoável para resolver o problema, atinge em cheio e diretamente a própria reprodução do capital nas duas pontas da produção e da demanda. Mesmo nos países que conseguiram deter internamente a disseminação da doença – e a China, com seus 1,38 bilhão de habitantes, é certamente o caso mais relevante – o problema está muito longe de ser resolvido, dado que a recuperação da circulação internacional de mercadorias depende da evolução da pandemia em todos os países.

Já são conhecidas a letalidade (algo por volta de 1% do total de infectados, o que é cerca de dez vezes maior que a gripe comum, e bem maior nas faixas etárias acima de 60 anos), assim como o modo e a velocidade de transmissão da doença (que também é maior do que a gripe comum). Isso é suficiente para definir as medidas básicas para tentar evitar o contágio (lavar as mãos, álcool gel, distância mínima de um metro entre as pessoas, isolamento social mais rigoroso dos idosos etc.).

Em uma economia planejada, em escala nacional e internacional, seria perfeitamente possível implementar essas medidas combinadas com um “lockdown” que permita evitar as aglomerações especialmente nos transportes coletivos, mantendo a produção mínima necessária com todas as medidas rigorosas para garantir a segurança dos trabalhadores. No socialismo, o coronavírus não seria um monstrinho apavorante, mas sim um evento natural a ser enfrentado racionalmente com as armas da ciência e da tecnologia, e com base na verdadeira fraternidade humana. No capitalismo, inclusive em Nova York, até mesmo a mais básica proteção dos profissionais da saúde, para ao menos garantir o funcionamento normal dos hospitais, torna-se um problema artificialmente gigantesco!

*Sobre o autor: Ruy Penna é médico e trabalha na cidade de São Paulo