Destruição da estátua de Stalin em Budapeste, 1956

A degeneração da teoria e a teoria da degeneração: Problemas do regime soviético

O socialismo plenamente desenvolvido (comunismo) significa uma sociedade sem Estado. Mas o período de transição do capitalismo ao socialismo exige um extremo fortalecimento da função do Estado (ditadura do proletariado). Essa dialética histórica do Estado foi suficientemente estudada pela teoria marxista.

A base econômica do desaparecimento progressivo do Estado operário é o alto desenvolvimento econômico, até o ponto em que o trabalho produtivo não exija coerção e a distribuição dos bens de consumo não requeira controle jurídico.

A transição da ditadura revolucionária à sociedade sem classes não pode ser realizada através de decretos. Não se pode dissolver um Estado por uma ordem especial; o Estado desaparece gradualmente, “extingue-se”, na medida em que a sociedade socialista, poderosa e culturalmente elevada, satisfaz todas as suas funções vitais com a ajuda de suas variadas e flexíveis instituições, que já não necessitam da coerção.

O processo de liquidação do Estado se produz por dois caminhos diferentes. À medida que as classes desaparecem, isto é, se dissolvem em uma sociedade homogênea, a coerção vai se extinguindo no sentido direto do termo, sua utilização social desaparece para sempre. As funções organizativas do Estado, em troca, se tornam mais complexas, mais detalhadas. Penetram em campos novos que até então permaneciam como se estivessem no umbral da sociedade (o lar, a educação infantil etc.) e os submetem pela primeira vez ao controle da mente coletiva.

Essa forma geral de colocar o problema é a mesma para um só país ou para todo o planeta. Se supomos que se pode construir uma sociedade socialista dentro das fronteiras nacionais, a extinção do Estado também poderia ocorrer em um só país. A necessidade de se defender contra os inimigos capitalistas que a cercam exteriormente é absolutamente compatível com o enfraquecimento da coerção estatal interna; a solidariedade e a disciplina consciente deveriam produzir os maiores frutos, tanto no campo de batalha quanto no da produção.

Há dois anos, a fração stalinista declarou que as classes estavam “no fundamental” liquidadas na URSS, que a questão de quem iria se impor estava resolvida “total e irrevogavelmente”; ainda mais: “entramos no socialismo”. Segundo as leis da lógica marxista, isso devia significar que a necessidade da coerção de classe estava “fundamentalmente” liquidada e que se havia iniciado a etapa da extinção do Estado. Mas logo que uns quantos doutrinários indiscretos trataram de colocar essa conclusão, ela foi classificada como “contrarrevolucionária”.

Mas deixemos de lado a perspectiva do socialismo em um só país. Não partamos de uma construção burocrática levada ao absurdo pelo curso dos acontecimentos, mas da verdadeira situação que impera. A URSS não é, naturalmente, uma sociedade socialista, mas apenas um Estado socialista, isto é, uma arma para a construção da sociedade socialista; as classes estão distantes de estarem abolidas, o problema de quem irá se impor não está resolvido, a possibilidade da restauração capitalista não está excluída, portanto, a necessidade de se manter a ditadura proletária conserva toda a sua força. Mas ainda permanece de pé o problema do caráter do Estado soviético, que, de forma alguma, permanece imutável durante toda a etapa de transição. Quanto maior o êxito da construção socialista, mais saudável será a relação entre a cidade e o campo e, portanto, mais amplos os alcances da democracia soviética. Não se trata ainda da extinção do Estado, visto que a democracia soviética também é uma forma de coerção estatal. No entanto, a capacidade e a flexibilidade desta forma é o que reflete melhor a relação das massas com o regime soviético, o qual tenderá a se converter – não no papel nem em um programa, mas na realidade, na existência cotidiana – em uma arma da crescente maioria contra uma minoria em extinção, à medida que o proletariado se sinta mais satisfeito com os frutos de seu trabalho e quanto mais benéfica for sua influência sobre a aldeia.

O avanço da democracia soviética, embora não represente ainda a extinção do Estado, significa, não obstante, a preparação desse processo.

O problema se concretizará ao se considerar as mudanças fundamentais provocadas na estrutura de classe durante o período da revolução. A ditadura do proletariado como organização para a liquidação dos exploradores era necessária para reprimir os latifundiários, os capitalistas, os generais e os kulaks, na medida em que estes apoiavam os estratos possuidores. Não se pode ganhar os exploradores para o socialismo; havia que se quebrar sua resistência, custasse o que custasse. A Guerra Civil foi o período durante o qual a ditadura do proletariado mais exerceu o seu poder.

Para o conjunto do campesinato, a tarefa era e é completamente diferente. É necessário ganhar o campesinato para o regime socialista. Devemos mostrar a ele, na prática, que a indústria estatal pode proporcionar-lhe bens em condições muito mais vantajosas do que as que imperam no capitalismo, e que o trabalho coletivo da terra é mais frutífero que o trabalho individual. Até que essa tarefa econômica e cultural seja realizada – e estamos muito longe disso, visto que a mesma só pode ser resolvida em escala internacional – os confrontos entre as classes são inevitáveis e, por conseguinte, a coerção estatal também o é. Mas, se a violência revolucionária foi o método fundamental empregado na luta contra os latifundiários e os capitalistas, na relação com os kulaks, o problema é distinto; ao mesmo tempo em que esmagava implacavelmente a resistência contrarrevolucionária dos kulaks, o Estado estava disposto a negociar com eles no terreno econômico. Não “deskulakizou” o kulak, limitou-se a reduzir sua capacidade de exploração. Com relação ao campesinato em seu conjunto, a violência teria que haver desempenhado um papel auxiliar e sempre decrescente. As conquistas reais obtidas na industrialização e na coletivização teriam que se expressar na moderação das formas e métodos da coerção estatal, na crescente democratização do regime soviético.

O regime político da ditadura e suas bases sociais

No Pravda de 30 de janeiro de 1933 lemos: “O Segundo Plano Quinquenal erradicará de nossa vida econômica os últimos vestígios de elementos capitalistas”. Deste prognóstico oficial depreende-se claramente que o Estado deveria extinguir-se totalmente no curso do Segundo Plano Quinquenal, visto que, se estão liquidados os “últimos vestígios” (!) da desigualdade de classe, o Estado não tem razão de ser.

Cartaz stalinista do primeiro plano quinquenal

Na realidade, observamos um processo diametralmente oposto. Os stalinistas não se atrevem a afirmar que a ditadura do proletariado se tornou mais democrática nos últimos anos. Pelo contrário, não se cansam de demonstrar a inevitabilidade do incremento da coerção estatal. A própria realidade é mais importante que todas as previsões e prognósticos.

Se avaliamos a realidade soviética tal como ela é vista através da lente do regime político – esta avaliação, embora insuficiente, está totalmente justificada e é extremamente importante – o panorama que se nos apresenta, além de ser triste, não pressagia nada de bom. Os sovietes perderam seus últimos vestígios de vida independente, deixaram de ser sovietes. O partido não existe. Sob o pretexto da luta contra o desvio de direita, os sindicatos foram esmagados. Em repetidas ocasiões nos referimos ao problema da degeneração e do amordaçamento do partido e dos sovietes. Agora consideramos necessário dedicar algumas linhas à sorte das organizações sindicais sob a ditadura soviética.

Dentro do sistema estatal soviético, a independência relativa dos sindicatos é um contrapeso necessário e importante ante a pressão do campesinato e da burocracia. Enquanto existirem as classes, os operários têm necessidade de se defender, inclusive em um Estado operário, por meio de suas organizações sindicais. Em outras palavras: os sindicatos continuam sendo sindicatos enquanto o Estado continua sendo Estado, ou seja, um instrumento de coerção. A “estatização” dos sindicatos só pode se produzir paralelamente à “desestatização” do próprio Estado: na medida em que a liquidação das classes tira do Estado suas funções coercitivas, dissolvendo-o na sociedade, os sindicatos perdem suas funções classistas e se dissolvem no Estado “em extinção”.

Os stalinistas reconhecem da boca para fora esta dialética da ditadura, incorporada ao programa do Partido Bolchevique. Mas, na atualidade, as relações entre os sindicatos e o Estado se desenvolvem em um sentido diametralmente oposto. O Estado, não só não se extingue (apesar da proclamação da liquidação das classes), não só não modera seus métodos (apesar dos êxitos econômicos), mas também, pelo contrário, se converte, em grau cada vez maior, em instrumento de coerção burocrática. Ao mesmo tempo, os sindicatos, transformados em escritórios de funcionários, perdem totalmente a possibilidade de realizar o papel de amortecedores entre o aparato estatal e as massas proletárias. Pior ainda: o aparato dos próprios sindicatos se converteu em um instrumento de pressão crescente sobre os operários.

A primeira conclusão do que foi dito anteriormente é que a evolução dos sovietes, do partido e dos sindicatos segue uma curva descendente, e não ascendente. Se aceitássemos cegamente a estimativa oficial da industrialização e da coletivização, teríamos que reconhecer que a superestrutura política do regime proletário evolui em uma direção diametralmente oposta à evolução de sua base econômica. Significa então que as leis do marxismo são falsas? Não: o que é falso, falso até a medula, é a estimativa oficial das bases sociais da ditadura.

Podemos formular o problema de forma mais concreta se o propusermos assim: Por que entre os anos 1919-1921 – quando as velhas classes possuidoras continuavam lutando com armas nas mãos, quando contavam com o apoio ativo das potências intervencionistas de todo o mundo, quando os kulaks armados sabotavam o exército e o abastecimento do país – se permitiu ao partido discutir livremente problemas tão urgentes como a paz de Brest-Litovsk, os métodos de organização do Exército Vermelho, a composição do Comitê Central, o problema sindical, a transição à NEP, a política nacional e a política da Comintern? Por que agora – já derrotada a intervenção, esmagadas as classes exploradoras, depois de se haver logrado êxitos na industrialização e de se ter coletivizado a esmagadora maioria do campesinato – proíbe-se ao partido discutir os ritmos da industrialização e da coletivização, a relação entre a indústria pesada e a ligeira ou a política de frente única na Alemanha? Por que se expulsa e se persegue o militante do partido que exige, com estatutos nas mãos, que se convoque o congresso da organização? Por que se encarcera o comunista que ousa expressar dúvidas sobre a infalibilidade de Stalin? Qual é a razão para que se exerça o poder político de forma tão monstruosa, terrível e intolerável?

O perigo de estar rodeados por governos capitalistas nada explica por si mesmo. De forma alguma pretendemos subestimar a importância do cerco capitalista para a vida interna da república soviética. A própria necessidade de manter um poderoso exército é uma grande fonte de burocratismo. Mas o cerco hostil não é um fator novo, existe desde o próprio nascimento da república soviética. Se imperasse no país uma situação sã, a pressão do imperialismo só serviria para fortalecer a solidariedade das massas e, especialmente, para criar laços indestrutíveis na vanguarda proletária. A penetração de agentes externos, por exemplo, os engenheiros sabotadores etc, de forma alguma justifica ou explica a intensificação geral dos métodos coercitivos. A sã comunidade de interesses seria capaz de rechaçar qualquer elemento hostil com a maior facilidade, assim como um organismo saudável elimina as toxinas.

Poder-se-ia tentar demonstrar que a pressão externa aumentou e que a relação de forças em escala internacional variou em sentido favorável ao capitalismo. Mas mesmo que esqueçamos, por um momento, que a política da Comintern é uma das causas do debilitamento do proletariado mundial, continua sendo inexoravelmente certo que a intensificação da pressão externa somente pode provocar a burocratização do sistema soviético na medida em que se combine com o crescimento das contradições internas. Se os trabalhadores estão pressionados pelo sistema de passaportes e o campesinato, pelo sistema dos departamentos políticos, a pressão externa inevitavelmente debilitará ainda mais a coesão interna e vice-versa. O crescimento das contradições entre a cidade e o campo tenderá a incrementar irreversivelmente o perigo que significam os governos capitalistas no exterior. A combinação dos dois fatores leva a burocracia a fazer concessões cada vez maiores à pressão externa, e a reprimir cada vez mais as massas trabalhadoras de seu próprio país.

A explicação oficial do terror burocrático

Para alguns camaradas – afirmou Stalin no plenário de janeiro do Comitê Central – a tese da liquidação das classes, da criação de uma sociedade sem classes e da extinção do Estado justifica o relaxamento da disciplina (?) e o abrandamento (?),justifica a teoria contrarrevolucionária da extinção lenta da luta de classes e o debilitamento do poder do Estado”. Neste caso, como em muitos outros, Stalin serve-se de expressões vagas para compensar os vazios lógicos. Supõe-se que a “tese” programática da liquidação das classes no futuro não significa até agora a extinção da luta de classes no presente. Mas não se trata de uma tese teórica, mas do fato, proclamado oficialmente, da liquidação das classes. O sofisma de Stalin consiste em ligar a ideia do fortalecimento inevitável do poder do Estado na etapa de transição que medeia entre o capitalismo e o socialismo – ideia de Marx que Lenin desenvolveu para explicar a necessidade da ditadura proletária em geral – a um período determinado da ditadura, depois do fato supostamente consumado da liquidação de todas as classes capitalistas.

Para explicar a necessidade de um maior fortalecimento da máquina burocrática, Stalin afirmou no mesmo plenário: “A classe dos kulaks foi derrotada, mas os kulaks não foram totalmente liquidados”. Segundo esta fórmula, pareceria que para liquidar os derrotados kulaks – ou como diz Stalin, “liquidar os vestígios das classes moribundas” – se requer uma ditadura mais concentrada. A expressão mais acabada deste paradoxo do burocratismo foi dada por Molotov, que geralmente denota uma tendência funesta a desenvolver, até o cúmulo, as ideias de Stalin. Assim, no plenário de janeiro, afirmou: “Apesar de que as forças dos vestígios das classes burguesas de nosso país estão se dissipando, a resistência, a cólera e a fúria das mesmas aumentam, superando todos os limites”. As forças se dissipam, a fúria cresce! Aparentemente, Molotov não suspeita que a ditadura é necessária para enfrentar a força, e não a fúria. A fúria que carece de força armada deixa de ser perigosa.

Não se pode dizer – reconhece Stalin por sua vez – que estes ex-setores podem provocar mudanças na situação atual da URSS, com suas maquinações daninhas e enganosas. São demasiado débeis e impotentes para resistir às medidas do poder soviético”. Parece óbvio que, se tudo o que resta das ex-classes são “ex-setores”, e que, se estes são demasiado débeis para “provocar mudanças (!) na situação atual da URSS”, o iminente deveria ser a extinção da luta de classes e, com ela, a mitigação do regime. “Não”, responde Stalin: “os ex-setores ainda podem recorrer a ardis”. Mas a ditadura revolucionária é necessária para enfrentar o perigo da restauração capitalista, e não para enfrentar ardis impotentes. Se na luta contra poderosos inimigos de classe foi necessário empregar um punho de ferro, ante os “ardis” de ex-setores bastará o dedo mindinho.

Mas aqui Stalin apresenta um novo argumento: “Os vestígios moribundos das classes derrotadas apelam aos estratos atrasados da população e os mobilizam contra o poder soviético”… Por acaso os estratos atrasados cresceram durante o Primeiro Plano Quinquenal? Dir-se-ia que não. Sucede, então, que sua atitude em relação ao Estado mudou negativamente? Isso significaria que o “máximo fortalecimento do poder do Estado” (mais corretamente, a repressão) se torna necessário para combater o crescente descontentamento das massas. Stalin agrega: “É possível que, com a mobilização dos estratos atrasados da população, despertem e ressuscitem ‘fragmentos’ da oposição contrarrevolucionária trotskista e direitista”. Esse é o seu argumento final: posto que é possível (até agora, só é possível) que despertem os fragmentos (tão só os fragmentos!)… há que se apelar à máxima concentração da ditadura.

Apanhado sem saída no emaranhado dos “fragmentos” de suas próprias ideias, Stalin agrega, de forma surpreendente: “Naturalmente, não temos medo”. Então, por que nos assustarmos e assustar os demais se “não temos medo”? E para que empregar um regime de terror contra o partido e o proletariado se só se trata de fragmentos impotentes, incapazes de “provocar mudanças na URSS”?

Toda esta confusão acumulada, que culmina na mais pura estupidez, é consequência da incapacidade de dizer a verdade. Na realidade, Stalin-Molotov deveriam ter dito: devido ao crescente descontentamento das massas e à crescente inclinação dos operários para o lado da Oposição de Esquerda, é preciso intensificar a repressão em defesa das posições privilegiadas da burocracia. Dessa forma, tudo teria um resultado mais claro.

A extinção gradual do dinheiro e a extinção gradual do Estado

Podemos desfazer, de outro ângulo, o nó de contradições em que se enredaram a teoria e a prática do centrismo burocrático, se traçarmos uma analogia entre o papel do dinheiro e o papel do Estado na etapa de transição. O dinheiro, da mesma forma que o Estado, é uma herança direta do regime capitalista. Deve desaparecer, mas não pode ser abolido por decreto, extingue-se gradualmente. As diferentes funções do dinheiro, como as diferentes funções do Estado, morrem de mortes diferentes. O dinheiro, enquanto meio de acumulação privada, usura e exploração, desaparece paralelamente à liquidação das classes. Como meio de troca, como norma de medida do valor do trabalho, como regulador da divisão social do trabalho, o dinheiro se dissolve gradualmente na organização planificada da economia social para se converter finalmente em um vale, em um cheque para a cobrança de uma certa porção dos bens sociais com a finalidade de satisfazer as necessidades produtivas e pessoais.

Este paralelismo dos processos de extinção gradual do dinheiro e do Estado não é fortuito, ambos possuem a mesma raiz social. O Estado permanece como está, enquanto deve regular as relações entre várias classes e estratos, cada um desses faz suas contas e trata de obter seus lucros. A substituição final do dinheiro como norma de valor para o registro estatístico das forças produtivas existentes, do equipamento, das matérias-primas e das necessidades não será possível senão na etapa em que a riqueza social libertará todos os integrantes da sociedade da necessidade de competir entre si pela comida.

Esta etapa ainda está distante. O papel do dinheiro na economia soviética não só não chegou ao seu fim, mas, em certo sentido, está prestes a atingir a plenitude de sua função. O período de transição, em seu conjunto, não significa a limitação do movimento de mercadorias, mas sua extrema expansão. Todos os ramos da economia se transformam, crescem e devem determinar suas relações recíprocas, tanto quantitativa quanto qualitativamente. Muitos bens, que sob o capitalismo são acessíveis a uns poucos, devem ser produzidos em quantidades incomensuravelmente maiores. A liquidação da economia camponesa, com seu consumo interno e sua economia familiar, significa a transição ao terreno do movimento social (monetário) de toda a energia produtiva que atualmente se consome dentro dos limites da aldeia e dos muros da moradia particular.

O Estado socialista deve fazer o inventário completo de todas as forças produtivas disponíveis e aprender a distribuí-las e utilizá-las da forma mais proveitosa para a sociedade. O socialismo não afasta de seu seio o dinheiro como meio de contabilidade econômica, criado pelo capitalismo, mas o socializa. Não se pode sequer pensar na construção socialista sem incluir no sistema planificado o interesse pessoal do produtor e do consumidor. E este interesse só se pode manifestar ativamente caso se disponha de uma arma flexível e digna de confiança, de um sistema monetário estável. É absolutamente impossível aumentar a produtividade do trabalho e melhorar a qualidade das mercadorias sem um instrumento de medição preciso, que penetre livremente em todos os poros da economia, ou seja, sem uma unidade monetária estável.

Se a economia capitalista, cujas flutuações conjunturais a levaram a uma situação de instabilidade, necessita de um sistema monetário estável ainda mais necessário, este resulta ser para preparar, organizar e regular a economia planificada. Não basta construir novas empresas. O sistema econômico deve assimilá-las. Isto significa pôr à prova, adaptar e selecionar à luz dos fatos. O controle em massa nacional da produtividade não se pode realizar senão através do rublo. Elaborar um plano com uma valuta [moeda de câmbio] instável é o mesmo que desenhar os planos de uma máquina com um compasso frouxo e uma régua torcida. É isto exatamente o que está ocorrendo. A inflação do chervonets [moedas soviéticas de ouro] é uma das consequências e, ao mesmo tempo, um dos instrumentos mais perniciosos da desorganização burocrática da economia soviética.

A teoria oficial da inflação está no mesmo plano da teoria oficial da ditadura acima analisada. “A estabilidade da valuta soviética – disse Stalin no plenário de janeiro – está garantida, em primeiro lugar, pela tremenda quantidade de bens de que dispõe o Estado e que este põe em circulação a preços fixos”. O único sentido que esta frase pode ter – se é que significa algo – é que o dinheiro soviético deixou de ser dinheiro, já não serve para medir valores e fixar preços. O poder governamental fixa os “preços estáveis”, o chervonets é só a medida do crédito e do débito da economia planificada. Esta ideia é, em tudo, paralela e equivalente à da “liquidação das classes” e à da “entrada no reino do socialismo”. No entanto, Stalin, coerente em sua ambiguidade, não se atreve a rechaçar completamente a teoria da reserva-ouro. Não, uma reserva-ouro “tampouco” é daninha, mas sua importância é secundária. Em todo caso, é necessária para o comércio exterior, onde o pagamento deve ser em espécie. Mas o bem-estar da economia nacional só requer preços estáveis fixados pelo secretariado do Comitê Central ou por seus administradores.

Qualquer estudante de economia sabe que o nível de perda do poder de compra das letras de câmbio depende, não só da velocidade da máquina impressora, como também da “quantidade de bens”. Esta lei vale tanto para a economia planificada quanto para a capitalista. A diferença reside em que a inflação pode ficar oculta na economia planificada, ou, pelo menos, suas consequências, por um período muito mais longo. Mais terrível será, pois, a prestação de contas! Em todo caso, o dinheiro regulado pelos preços fixos impostos administrativamente aos bens, perde sua capacidade de regular esses preços e, por conseguinte, de regular os planos. Nesse terreno, como em outros, para a burocracia do “socialismo”, significa livrar-se de todo controle partidário soviético, sindical, monetário…

Hoje, a economia soviética não é nem monetária, nem planificada. É uma economia quase puramente burocrática. A industrialização exagerada e desproporcional minou as bases da economia agrícola. O campesinato tratou de encontrar a salvação na coletivização. A experiência não demorou a demonstrar que a coletivização desesperada não é coletivização socialista. A derrubada posterior da economia agrícola foi um golpe duro para a indústria. Os ritmos aventureiros e exagerados exigiram a intensificação ainda maior da pressão sobre o proletariado. A indústria, liberada do controle material do produtor, adquiriu um caráter suprassocial e, cabe dizer, burocrático. O resultado foi que perdeu a capacidade de satisfazer as necessidades humanas, sequer no grau logrado pela indústria capitalista, menos desenvolvida. A economia agrícola contra-atacou, submetendo as cidades indefesas a uma guerra de desgaste. Sob o peso constante da desproporção entre seus esforços produtivos e a piora das condições de vida, os operários, os camponeses das granjas coletivas e os que trabalham individualmente, perdem o interesse por suas tarefas e sentem raiva do Estado. Disso, somente disso, e não da malícia dos “fragmentos”, surge a necessidade de se introduzir a coerção em todas as unidades da vida econômica (fortalecimento do poder dos administradores de fábrica, castigo ao ausentismo, pena de morte para o roubo das propriedades das granjas coletivas por seus integrantes, medidas de guerra para as campanhas de semeadura e colheita, obrigação dos camponeses que trabalham individualmente de emprestar seus cavalos às granjas coletivas, o sistema de passaportes, divisão política das aldeias etc.).

O paralelismo entre a sorte do Estado e a sorte do dinheiro nos aparece, agora, sob uma luz nova e poderosa. As desproporções na economia empurram a burocracia para o aumento da inflação do papel-moeda. O descontentamento das massas diante dos resultados materiais da desproporção econômica empurra a burocracia à coerção aberta. A planificação burocrática se libera do controle do valor, assim como o aventureirismo burocrático se libera do controle político. O repúdio às “causas objetivas”, isto é, aos limites materiais da aceleração dos ritmos, bem como a rejeição ao respaldo em ouro da moeda soviética, constituem delírios “teóricos” do subjetivismo burocrático.

Se o sistema monetário soviético murchar, murchará em um sentido capitalista, não em um sentido socialista, na forma da inflação. A moeda deixa de ser um instrumento funcional da economia planificada para se converter na ferramenta de sua desorganização. Pode-se dizer que a ditadura do proletariado se extingue gradualmente na inflação burocrática, ou seja, no incremento extremo da coerção, da perseguição e da violência. A ditadura do proletariado não se dissolve em uma sociedade sem classes; degenera na onipotência da burocracia sobre a sociedade.

Toda a falsidade da política do centrismo, tanto no campo da economia soviética quanto no do movimento proletário internacional, se resume na inflação monetária e no despotismo burocrático. O sistema stalinista está esgotado e destinado a morrer. Sua derrubada se aproxima inevitavelmente, assim como chegou a vitória do fascismo na Alemanha. Mas o stalinismo não é um fenômeno isolado, é uma excrescência parasitária no tronco da Revolução de Outubro. A luta pela salvação da ditadura do proletariado está inseparavelmente ligada à luta contra o stalinismo. Essa luta chegou ao momento decisivo. A culminação se aproxima. E ainda não se disse a última palavra. A Revolução de Outubro saberá encontrar recursos para se defender.

29 de abril de 1933.

TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.