50 anos do golpe de Pinochet no Chile: a derrota do reformismo

Há 50 anos, em 11 de setembro de 1973, ocorreu no Chile o Golpe de Estado contra o governo socialista de Salvador Allende.

A eleição de Allende foi a primeira vez na história em que um candidato que se identificava como marxista chegou ao poder pela via eleitoral. Isso fomentou grandes ilusões entre os social-democratas de todo o mundo.

No entanto, como presidente, Allende não conseguiu levar a revolução até sua conclusão. A contrarrevolução que se seguiu quando o General Pinochet e os militares – apoiados pelo imperialismo norte-americano – derrubaram o governo socialista de Salvador Allende foi implacável. O custo foi pago por milhões de trabalhadores chilenos.

Neste artigo, recordamos este doloroso marco e recolhemos valiosas lições para o futuro da luta de classes.

Na manhã de 11 de setembro, há 50 anos, os habitantes de Santiago acordaram com o rugido de aviões de guerra sobre suas cabeças. Na última estação de rádio a ser silenciada, ouviu-se a voz do presidente Allende dirigindo-se aos seus compatriotas:

“Minhas palavras não têm amargura, mas desilusão, e serão o castigo moral para aqueles que traíram o juramento que fizeram (…). Diante destes fatos, só me resta dizer aos trabalhadores: não vou me demitir! Colocado numa transição histórica, pagarei com a minha vida pela lealdade do povo.”

Não só as estações de rádio foram bombardeadas, também o foram a casa do Presidente e o palácio do governo, numa cena grotesca que ficaria gravada na memória dos socialistas de todo o mundo. Após uma resistência simbólica, Allende suicidou-se.

A partir desse mesmo dia começou uma carnificina contra a classe trabalhadora chilena, que duraria 17 terríveis anos. A ditadura liderada pelo general Augusto Pinochet deixou um rastro de mortes, desaparecimentos e torturas.

Num pequeno país de 10 milhões de habitantes, os números oficiais indicam que pelo menos 27 mil pessoas foram torturadas, 2.300 executadas e 200 mil exiladas. A flor da juventude e da classe trabalhadora foi aniquilada.

“Governo popular”

Salvador Allende era o líder de uma coalizão chamada Unidade Popular (UP). A UP foi formada em 1969 como uma frente popular, uma aliança entre partidos pequeno-burgueses e partidos operários de massas – neste caso o Partido Comunista e o Partido Socialista.

Salvador Allende, um parlamentar do Partido Socialista, venceu finalmente as eleições de 4 de setembro de 1970, com 37% dos votos, enquanto a direita obteve 35% e a Democracia Cristã (DC) 28%.

A divisão do voto conservador entre a direita e os candidatos da DC permitiu à UP obter a maioria. Mas o triunfo foi acima de tudo a expressão de uma radicalização crescente das massas durante os anos sessenta.

A estratégia da UP propunha uma transição gradual e institucional para o socialismo. O seu manifesto incluía uma série de reformas radicais em favor das massas oprimidas.

Estas últimas incluíam: a participação dos trabalhadores em alguns setores do aparelho estatal; o planejamento nacional no centro de um modelo econômico misto; a nacionalização dos recursos naturais, do sistema financeiro e das indústrias estratégicas; e o controle estatal sobre o comércio exterior.

Conspiração

Uma vez no governo, a UP implementou o seu programa de reformas democráticas e anti-imperialistas. Estas incluíam medidas que afetaram diretamente os interesses dos EUA, tais como a nacionalização das minas de cobre, dos bancos e de empresas estratégicas.

Isso provocou a fúria do presidente Nixon, que declarou ser necessário “dar uma pressão na economia chilena”. O boicote imperialista significou a apreensão de ativos financeiros e de carregamentos de cobre chileno no exterior, bem como o bloqueio do acesso a empréstimos, à maquinaria e a peças sobressalentes.

Foram lançados programas sociais em áreas como habitação, seguridade social, assistência médica e educação. Crucialmente, o manifesto planejava acelerar a reforma agrária, com as terras expropriadas a serem organizadas de forma cooperativa.

Este programa, embora reformista, era demasiado abrangente para ser compatível com os interesses do imperialismo norte-americano e dos capitalistas locais. Como explicou Lênin, as classes moribundas nunca abandonam o poder voluntariamente.

Tudo isso contribuiu decisivamente para a deterioração da situação social e econômica. Mas, sub-repticiamente, o imperialismo também interveio através da CIA, dedicando mais de 13 milhões de dólares a partidos de direita, meios de comunicação da oposição e associações patronais. Isto levou a três anos de sabotagem econômica, bloqueio parlamentar, campanhas de propaganda e terrorismo.

Durante os primeiros meses de governo, foi criada uma “Área de Propriedade Social”, com a participação dos trabalhadores, composta por 90 empresas estratégicas nacionalizadas. Os trabalhadores levaram esta iniciativa muito mais longe através das ocupações de fábricas, elevando o total para 254 empresas da Área Social.

Até meados de 1972, em algumas empresas nacionalizadas a produção duplicou, o que foi acompanhado por um crescimento do consumo de produtos nacionais, sinal de uma melhor qualidade de vida dos trabalhadores.

A reforma agrária expropriou 5,3 milhões de hectares de terras apropriadas para irrigação dos proprietários ricos, atingindo até 35% das terras agrícolas. Tudo isto se refletiu num aumento do apoio eleitoral aos partidos da UP nas eleições autárquicas de 1971, atingindo os 50%.

No entanto, as medidas de nacionalização realizadas pelo governo Allende foram tímidas, evitando substituir a anarquia do mercado pelo planejamento democrático. Uma vez fracassadas as manobras institucionais da burguesia, aproveitaram-se desta situação, utilizando o controle que ainda mantinha sobre a economia para sabotar o governo.

A burguesia e o imperialismo estavam conscientes do acirramento da luta de classes. A classe trabalhadora ameaçava ultrapassar os limites da democracia burguesa, apesar das tentativas de contenção por parte da liderança.

Os proprietários das fábricas, portanto, apelaram por um lockout. Os proprietários de caminhões realizaram uma “greve” que afetou o transporte de combustíveis, matérias-primas, alimentos e cargas marítimas. A eles juntou-se uma greve reacionária dos transportes públicos e de alguns setores da mineração, juntamente com mobilizações de estudantes de universidades privadas e de setores profissionais pequeno-burgueses.

Organização dos trabalhadores

A classe trabalhadora respondeu a estas provocações numa formidável demonstração de mobilização consciente em defesa dos seus interesses de classe. Estabeleceram organizações democráticas de base, como os Conselhos de Abastecimento e Preços, que organizaram a distribuição de produtos básicos e combateram a tática burguesa de estocagem e de mercado negro.

Os comitês camponeses protegeram as terras recuperadas dos bandos armados dos latifundiários. Para combater o lockout, os comitês de defesa da produção industrial ocuparam as fábricas abandonadas pelos patrões, controlaram a produção e fabricaram suas próprias peças de reposição, com o apoio estratégico dos comitês de donas de casa.

Nas áreas distritais, estas organizações combinaram-se nos “Cordones Industriales” (Cinturões Industriais) que mobilizavam entre vinte e trinta mil trabalhadores em Santiago.

Como em todas as revoluções, estabeleceu-se assim um embrião de duplo poder, que foi além das fábricas, e que conseguiu organizar os camponeses e as comunidades da classe trabalhadora. Uma revolução “a partir de baixo” começou a superar a revolução “a partir de cima” do governo e dos sindicatos.

Os trabalhadores chilenos mostraram de forma rudimentar como a classe trabalhadora pode dirigir a produção e a sociedade numa nova base. Mas este impulso para a tomada do poder foi frustrado em todas as ocasiões importantes pelos líderes do Partido Comunista e pelo Presidente socialista Allende.

Depois de um mês, o lockout dos patrões foi derrotado. A resposta de Allende não foi prender ou expropriar esses patrões, mas formar um novo gabinete envolvendo os militares. Esta foi uma tentativa de aplacar a classe capitalista, tornando os chefes militares parte do governo. Mas foi um tapa na cara dos trabalhadores, pois eles já haviam derrotado os patrões e não tinham nenhuma motivação para acalmá-los.

Também foi promulgada uma lei de controle de armas, que foi utilizada contra os Cordones Industriales, retirando armas às organizações de trabalhadores. No entanto, nos meses anteriores ao golpe, eram os bandos fascistas que realizavam até vinte ataques diários e praticamente não foram tocados.

Como reformista de esquerda, Allende acreditava no caráter democrático do Estado, pelo que não havia necessidade de os trabalhadores estarem armados: os militares protegeriam o governo eleito pelos trabalhadores. A mesma crença significava que ele não via necessidade de “provocar” os fascistas desarmando-os, visto que, mais uma vez, os militares defenderiam o governo contra eles.

Ensaio geral

A UP obteve 44% dos votos nas eleições parlamentares de março de 1973. A direita não conseguira enfraquecer o governo no campo eleitoral. Mas os trabalhadores avançados estavam conscientes de que uma conspiração golpista era iminente. A questão então era: esperar pela agressão ou tomar a iniciativa.

Em 29 de junho de 1973, oficiais de escalão médio do exército organizaram uma revolta contra o governo. O leal comandante-em-chefe, general Prats, acompanhado por um certo general Pinochet, reprimiu os insurgentes no centro de Santiago (Prats acabaria mais tarde morto no exílio por ordem de Pinochet).

Os Cordones Industriales tomaram a iniciativa e ocuparam todas as fábricas da capital e os principais acessos a Santiago, e os camponeses centralizaram o abastecimento de alimentos. O ensaio geral para o golpe foi derrotado.

Este teria sido um momento extremamente favorável para Allende apoiar-se na classe trabalhadora e lançar uma ofensiva para expropriar a classe capitalista como um todo. Deveria ter dito aos trabalhadores: “ocupai as fábricas e nós as nacionalizaremos”. Não há dúvida de que os trabalhadores o teriam feito, o capitalismo no Chile teria terminado e a classe trabalhadora teria conquistado o poder.

Em vez disso, Allende pediu aos trabalhadores que detivessem a ocupação das fábricas, permitindo que fossem retomadas pelos sabotadores capitalistas. O próprio governo que os trabalhadores defendiam através de meios revolucionários estava traindo os trabalhadores.

Mesmo assim, no dia 4 de Setembro, 800 mil trabalhadores marcharam em frente ao palácio presidencial, pedindo armas para se defenderem contra a conspiração militar de direita e o fechamento do congresso. Em 5 de Setembro, os Cordones Industriales enviaram uma carta ao Presidente Allende com uma advertência clara:

“Estamos absolutamente convencidos de que, historicamente, o reformismo que se procura através do diálogo com aqueles que nos traíram repetidamente é o caminho mais rápido para o fascismo.”

O golpe

No entanto, Allende e os líderes da UP permaneceram obstinadamente fiéis à sua concepção de um Estado “democrático” que obedecesse ao governo e de umas forças armadas “constitucionalistas” que respeitassem a cadeia de comando.

Ignorando o clamor da classe trabalhadora, Allende propôs aos partidos um plebiscito, na tentativa de utilizar métodos parlamentares para resolver a luta de classes. A data do golpe de Estado foi fixada pelos altos comandantes militares para 11 de Setembro, para evitar o anúncio desta medida.

Naquele dia, os trabalhadores concentraram-se nos locais de trabalho, à espera de instruções. Mas nenhuma instrução surgiu.

Naturalmente, os militares do Estado burguês têm sempre enormes vantagens técnicas sobre a classe trabalhadora. Eles têm à sua disposição vastos arsenais de máquinas mortíferas. Diz-se que o erro de Allende foi não armar os trabalhadores, o que é verdade, mas isto ignora o problema maior, que é político e organizacional.

Mesmo que os trabalhadores estivessem armados, os militares manteriam uma vantagem no armamento. Mas as suas armas exigem sempre que os soldados as utilizem, e estes soldados são em grande parte membros da classe trabalhadora e do campesinato.

É por essa razão que o partido revolucionário é indispensável. Na Revolução Russa, o Partido Bolchevique recrutou e desenvolveu quadros na classe trabalhadora e nas forças armadas, e, antes de tomar o poder, usou os seus quadros para conquistar setores da base militar czarista para a revolução. Isto tornou impossível para a contrarrevolução deter a insurreição, que, como resultado, foi incruenta.

Se a classe trabalhadora chilena tivesse sido organizada e liderada por um partido tão revolucionário quanto o Partido Bolchevique, poderia ter rapidamente conquistado e reorganizado as forças utilizadas por Pinochet no seu golpe e impedido que este ocorresse.

Em vez disso, Allende confiou na cadeia de comando formal no topo das forças armadas. Mas Pinochet traiu conscientemente o seu governo e provou ser leal a outra cadeia de comando: a da classe dominante e a dos imperialistas norte-americanos, que ajudaram a organizar e financiar o seu golpe de Estado.

Embora tenha ocorrido uma resistência espontânea aqui e ali, a confusão e a falta de liderança fizeram com que os militares controlassem toda a situação em poucas horas.

O discurso final de Allende resumiu a impotência da sua liderança:

“Trabalhadores do meu país: quero agradecer-vos a lealdade que sempre tiveram, a confiança que depositaram num homem que foi apenas um intérprete dos grandes anseios de justiça, que deu a sua palavra de que respeitaria a Constituição e a lei e fez exatamente isso (…). O povo deve defender-se, mas não deve ser sacrificado. O povo não deve deixar-se destruir ou arrasar, mas também não pode ser humilhado (…).”

Ditadura

A DC e os setores moderados da burguesia pensavam que os militares lhes transfeririam o poder no curto prazo. Mas a ditadura durou 17 anos. As massas ficaram desmoralizadas e impotentes ante a reação triunfante.

Havia uma situação econômica desastrosa, depois de anos de sabotagem por parte da própria direita, mas também como produto da crise internacional do capitalismo. Apesar das suas contradições internas, a ditadura conseguiu manter-se por inércia.

Foi só com a chegada de economistas formados na escola liberal da Universidade de Chicago, os “Chicago Boys”, que o regime adotou um projeto econômico e político que foi combinado ao conservadorismo católico local.

A ditadura não recuperou simplesmente as posições perdidas da burguesia e do imperialismo, mas transformou a estrutura social e econômica do Chile no notório modelo denominado “neoliberal” que seria exportado para todo o mundo.

Isto incluía leis anti-sindicais perversas (que inspiraram Thatcher); a privatização do cobre, um pilar fundamental da economia; a privatização das pensões, os cortes massivos no ensino público e a privatização do ensino universitário, e muito mais.

Mas a liberalização econômica imposta a sangue e fogo não teve os efeitos que os seus criadores supunham. Em 1982, o Chile sofreu a maior crise econômica desde 1930. O PIB caiu 15% e o desemprego atingiu 40% em algumas áreas.

A resistência

Estes fatores explicam os protestos que apanharam de surpresa tanto os militares quanto os partidos políticos. As manifestações foram massivas e especialmente combativas nas favelas de Santiago, mas os sindicatos também aderiram.

O Partido Comunista, após uma série de altos e baixos, e influenciado pelo espírito dos jovens militantes dentro do país, começou a promover uma rebelião em massa. Os maiores protestos nacionais ocorreram em 1986, com uma greve geral.

Diante do crescimento de um clima pré-insurrecional que ameaçava sobrecarregar as negociações para o fim da ditadura, o Partido Comunista formou a organização paramilitar Frente Patriótica Manuel Rodríguez (FPMR).

Mas a tentativa de se criar uma organização armada separada do movimento de massas foi um fracasso. Armas enviadas de Cuba foram apreendidas e, um mês depois, um atentado a Pinochet foi frustrado. Estas derrotas mergulharam o Partido Comunista e a FPMR numa crise.

Os líderes social-democratas sobreviventes tiraram todas as conclusões equivocadas da sua derrota catastrófica em 1973 e, tal como os social-democratas de todo o mundo nesta altura, moveram-se para a direita. Abandonaram qualquer pretensão de lutar pelo socialismo. A sua ideia central era chegar a um acordo com os militares para o regresso da democracia burguesa.

Transição

Desta ideia surgiu a Concertación, a aliança entre sociais-democratas e democratas-cristãos, que fez campanha por um plebiscito em 1988. A “Opção Não”, que implicava a saída de Pinochet e um apelo a eleições livres, venceu com 56% dos votos.

A transição democrática acordada foi um compromisso vindo de cima, para evitar a revolução vinda de baixo. O mito oficial que alimenta hoje os chilenos é que a ditadura foi derrotada com o papel e a caneta. A impunidade para os crimes da ditadura foi estabelecida e as Forças Armadas permaneceram intocadas.

A Concertación administrou as aspirações democráticas do povo chileno após a ditadura. Mas governaram mantendo intacta a maior parte do legado da ditadura, fazendo as mudanças superficiais necessárias para que nada mudasse. As mesmas políticas capitalistas “neoliberais” permaneceram.

Em última análise, o golpe ocorreu não para criar uma ditadura, mas para proteger o capitalismo das exigências revolucionárias das massas. O capitalismo e as políticas econômicas de Pinochet permaneceram em vigor apesar da remoção do próprio Pinochet do poder.

Cinquenta anos depois do sangrento golpe de Estado, os chilenos ainda vivem com o legado dessa derrota. A revolta de 2019 representou uma rejeição a todo o regime criado no final da ditadura.

É crucial tirar as lições necessárias do governo de Unidade Popular. A principal delas é compreender o carácter de classe do Estado burguês, que não pode ser utilizado para que se introduza gradualmente o socialismo.

TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.