Uma crítica marxista da proposta das cotas raciais

Por meio da crítica a um artigo escrito por Valério Arcary – “Por quê as cotas são uma proposta mais igualitarista que a eqüidade meritocrática?” –  esse texto procura explicar que a proposta das cotas raciais é contrária aos interesses de todos os jovens e trabalhadores brasileiros.

Por meio da crítica a um artigo escrito por Valério Arcary – “Por quê as cotas são uma proposta mais igualitarista que a eqüidade meritocrática?” –  esse texto procura explicar que a proposta das cotas raciais é contrária aos interesses de todos os jovens e trabalhadores brasileiros em sua luta pela emancipação social e, consequentemente, em sua luta pelo socialismo. Essa proposta, em vez de contribuir para combater o racismo, produz o efeito inverso: reforça o racismo como instrumento político de opressão da classe capitalista contra toda a classe trabalhadora. A discussão sobre as cotas raciais é, especialmente em nossos dias, um terreno pavimentado de armadilhas ideológicas, mas, além de não contribuir para desmontar as armadilhas, o citado artigo faz uso de citações de Marx e Lênin para apoiar uma argumentação que coloca-se a uma enorme distância do método e do conteúdo da teoria marxista. Esse texto, ainda que esteja longe de esgotar todos os aspectos desta discussão, é bem mais extenso que o artigo escrito por Valerio. Talvez ele tenha uma capacidade de síntese maior que a minha. Ao meu ver, ele omitiu, ou tratou de modo muito superficial, vários aspectos que são fundamentais para uma real compreensão política da proposta das cotas raciais. Aqui, o leitor haverá de perceber que não estou exigindo da sua mente um esforço fora de propósito, pois o racismo, e não apenas no Brasil, é uma questão tão importante e tão concreta para a luta de classes que deve ser tratada considerando os muitos aspectos que a envolvem e determinam.

Valerio Arcary coloca a discussão política sobre as cotas raciais a partir de uma perspectiva, no meu entender, tão estreita que contradiz a sua própria afirmação: “A luta contra as opressões é indivisível da luta contra a exploração”. A sua perspectiva é limitada porque simplesmente aceita os termos de uma contraposição entre, de um lado, o “princípio meritocrático” do liberalismo que recusa as cotas porque elas dariam acesso ao ensino superior, ou a empregos públicos por concursos, a estudantes ou trabalhadores que não estariam entre os mais preparados e, de outro lado, as “políticas afirmativas” que usam as cotas sociais e raciais com a declarada finalidade de contrabalançar as desigualdades sociais entre os estudantes ou entre os candidatos a empregos públicos. Para ele, a implementação das cotas é uma “reforma progressiva” porque é mais igualitarista que a falsa igualdade jurídica da sociedade burguesa, a suposta igualdade de oportunidades do princípio meritocrático, que trata como iguais os desiguais. Explicaremos, mais adiante, porque esta contraposição, entre o “princípio meritocrático” e as “políticas afirmativas”, embora expresse uma verdade meramente formal, é completamente ilusória do ponto de vista histórico da luta de classes.

É verdade que não são poucos os políticos, juristas e intelectuais ligados à burguesia que posicionam-se contra as “políticas afirmativas”, e muitos são especialmente contra as cotas raciais, afirmando que elas ferem o princípio da igualdade de oportunidades, ou seja, o “princípio meritocrático” tão caro ao discurso liberal mais típico. Sobre essa questão das cotas há, realmente, uma certa divisão dentro da burguesia. Muitos burgueses não querem ver seus filhos convivendo, nas universidades, com estudantes pobres e/ou negros, e isto por simples elitismo e/ou racismo. Outros vêem nas cotas sociais e raciais uma real ameaça à ideologia da classe dominante, embora os burgueses sejam, de fato, os primeiros a fraudar a regra da meritocracia. Há também amplos setores da pequena-burguesia que, se não são racistas e/ou não praticam o auto-engano de considerar-se parte da elite dominante, ainda assim não querem ver diminuir, para seus filhos, as vagas disponíveis no ensino de nível universitário público e gratuito (particularmente no Brasil, onde em geral as melhores universidades são públicas), ou nos concursos para empregos públicos. Neste último caso encontram-se os mais histéricos opositores das “políticas afirmativas”.

Toda esta reação burguesa e pequeno-burguesa contra as cotas, especialmente contra as cotas raciais, poderia impressionar e levar à conclusão de que a implementação das “politicas afirmativas”, inclusive as cotas raciais, significa uma conquista para os setores mais oprimidos da classe trabalhadora, e uma derrota para a classe dominante, e, portanto, como afirma Valerio, significa uma “reforma progressiva”. Triste engano, como demonstraremos nesse texto, se o esforçado leitor conceder a ele, até seu último parágrafo, a sua atenção. Se não houvesse adotado uma perspectiva tão estreita, Valerio poderia ter levado em conta a possibilidade de que toda a gritaria contra a cotas simplesmente não representa a posição das frações dominantes da classe capitalista, aquelas frações que exercem de fato o poder e atuam conscientemente para conservá-lo.

Por outro lado, como de fato demonstra a história da luta de classes, mesmo contra a vontade das frações dominantes da burguesia, o Estado burguês foi frequentemente compelido a implementar “reformas progressivas” como resultado da mobilização dos trabalhadores. Valerio Arcary afirma que a proposta das cotas raciais é também uma reforma progressiva, do mesmo modo que “o aumento dos salários ou a estabilidade no emprego, a reforma agrária ou a vinculação de verbas no orçamento do Estado para a educação e a saúde pública, é uma reforma progressiva.” Se uma reforma atende às reivindicações dos trabalhadores e melhora as suas condições de vida então, a princípio, devemos apoiar a luta por sua implementação. Este princípio geral é válido, ainda que os marxistas devam estar sempre dispostos a explicar que, sob o capitalismo, nenhuma conquista dos trabalhadores está garantida. Este princípio geral é muito simples mas a sua aplicação concreta, em cada questão ou situação particular, tem que levar em conta uma verdade básica da luta de classes: os interesses da burguesia estão em permanente contradição com os interesses do  proletariado.

Muitos militantes das lutas contra o racismo apoiam a proposta das cotas raciais porque reinvindicam uma providência imediata para corrigir a escandalosa baixa proporção de jovens e trabalhadores negros ou “não-brancos” nas melhores universidades públicas e nos empregos públicos melhor remunerados. Mas as consequências do racismo são muito mais amplas do que aquela escandalosa proporção, de modo que consideramos necessário responder a seguinte questão: qual será a consequência desta providência imediata para a luta contra o racismo? Na discussão da proposta das cotas raciais há muitos aspectos importantes e decisivos que não cabem dentro dos limites em que Valerio tenta encerrar o debate. Aceitar esses limites significa ignorar a relação histórica entre o racismo e a luta de classes, e significa tratar o racismo como uma forma de opressão separada da luta de classes. Ao aceitar os limites da polêmica entre a “meritocracia liberal” e as “políticas afirmativas”, Valerio perde de vista o que é essencial não só para a unidade como também para a independência política da classe trabalhadora. Se é verdade que o racismo causa uma desigualdade entre os próprios trabalhadores, é também verdade que essa mesma desigualdade é estimulada pela própria burguesia e por ela usada para enfraquecer a luta contra a desigualdade de classe entre capitalistas e trabalhadores. Portanto, qualquer proposta que enfraquece a luta da classe trabalhadora contra a exploração capitalista, inevitavelmente enfraquecerá a luta contra o racismo.

Especialmente a burguesia brasileira e a norte-americana, mas não apenas elas, herdaram o racismo da época do escravismo colonial, mas reconheceram a importância de cultivá-lo como arma política de dominação sobre toda a classe trabalhadora. O Estado burguês, o sistema juridico burguês, os politicos atrelados à burguesia, a midia burguesa e, mais diretamente, os prepostos da burguesia nas fábricas e outros locais de trabalho, são todos acustumados, com maior ou menor habilidade, a usar o racismo como meio de dominação. Este uso do racismo pode ser mais ou menos disfarçado, mais ou menos sofisticado, e a experiência ensina o cálculo da dosagem e da roupagem mais eficiente. O racismo não é a única e nem a principal maneira que a burguesia encontrou para cultivar e manipular politicamente as desigualdades entre os trabalhadores. Ela cria mecanismos burocráticos e econômicos para formar, em diversos níveis e setores, camadas de trabalhadores relativamente privilegiados que agem como elementos de confiança para desmobilizar e controlar a resistência e a revolta contra a exploração. Ela corrompe e promove a formação de uma burocracia sindical reacionária. Ela estimula a proliferação de estereótipos e preconceitos que dividem os trabalhadores, apelando para rivalidades entre religiões, entre diferentes tradições culturais, etc. Como devemos responder a todas essas manobras da burguesia? Confiar que o Estado burguês atue efetivamente para reduzir essas desigualdades entre os trabalhadores, que ele próprio ajuda a criar e estimular, seria como chamar a raposa para tomar conta das galinhas.

Podemos ler no citado artigo de Valerio Arcary: “Os marxistas insistem na centralidade da luta contra a exploração, mas não ignoram o racismo e o machismo. Reconhecem a legitimidade das lutas contra a opressão. O argumento dos que defendem a igualdade de oportunidades contra as cotas aceita o limite da igualdade burguesa.  A eqüidade é o limite do liberalismo. O socialismo quer igualitarismo. A sociedade burguesa histórica nunca pôde realizar a igualdade jurídica. Em país algum os cidadãos são iguais diante da lei, porque os donos do capital podem mais. Ser branco pobre no Brasil nunca foi, também, o mesmo que ser negro pobre. A igualdade de oportunidades não pode corrigir estas desigualdades. Apresentar aos trabalhadores negros o mesmo programa que se apresenta aos trabalhadores brancos significa ignorar sua condição”. O raciocínio é equivocado e a conclusão é absurda, porém, como vamos deixar claro adiante, não é incoerente: a finalidade política das cotas raciais é exatamente dividir para enfraquecer o movimento político da classe trabalhadora. Os marxistas devem ir muito além de apenas “reconhecer a legitimidade” das lutas contra qualquer forma de opressão, incluindo o racismo, colocando-se na linha de frente dessas lutas com um programa político que proponha a unificação de todas elas com a luta pelo socialismo. Explicaremos sempre que não se trata de uma questão de justiça como uma figura abstrata: o racismo não é uma forma de opressão separada da luta de classes. Ele surgiu como um instrumento de dominação da classe dominante na época da escravidão moderna e foi herdado pela classe capitalista, que continua usando esse instrumento e trata de conservá-lo.

Valerio afirma que “A eqüidade é o limite do liberalismo” e pensa que as cotas raciais ultrapassam esse limite. Tanto a afirmação quanto o pensamento estão equivocados. Equidade significa senso de justiça, disposição para ser justo, imparcial, isento. Em termos políticos liberais, equidade significa uma distribuição justa do poder e da riqueza com base na supostamente igual distribuição dos “direitos fundamentais” à vida, à liberdade e à propriedade. Os liberais justificam as desigualdades sociais no capitalismo afirmando o princípio meritocrático, ou seja, dizendo que essas desigualdades apenas refletem diferenças naturais entre os indivíduos quanto à inteligência, iniciativa, etc., e assim eles enfiam no mesmo saco todas as batatas das desigualdades humanas, e, lá no fundo do saco, disfarçada de uma desigualdade como outra qualquer, querem ocultar a posição determinante da desigualdade de classe entre a burguesia e o proletariado. O verdadeiro limite do liberalismo é a propriedade privada dos meios de produção, algo bem menos abstrato que o conceito de equidade, e algo pelo qual a burguesia está disposta a rever e adaptar todos os seus conceitos liberais, sem verdadeiramente abandoná-los. A raposa burguesa tem muitas faces.

John Rawls, considerado por muitos intelectuais e juristas como o mais influente filósofo liberal do século XX, publicou em 1971 o livro “Teoria da Justiça”, no qual modifica a noção de equidade do liberalismo clássico para justificar o papel do Estado burguês como agente capaz de implementar “politicas afirmativas”, entre elas as cotas raciais, supostamente para reduzir as desigualdades sociais a um patamar que poderia ser considerado “justo”. A sua teoria tem a explícita finalidade de tornar moralmente e politicamente compatíveis, de um lado, a estreita noção liberal de  liberdade como ‘iniciativa privada’ e, de outro lado, a implementação pelo Estado burguês das “politicas afirmativas” que o liberalismo tradicional considera uma ofensa à liberdade individual (ou seja à liberdade sem freios do capitalista, naturalmente). Em outras palavras, o seu objetivo político é defender o sacrossanto direito à propriedade privada dos meios de produção, formulando um ideal de justiça “igualitária” ou “equitativa” que seria perfeitamente realizável, graças à intervenção do Estado, nos limites da exploração capitalista. Para dar fundamento a este ideal ilusório, a principal acrobacia teórica de Rawls foi a sua proposta de uma “experiência mental”, que ele chamou de “posição original”, na qual cada cidadão deve, em breves momentos de reflexão, esquecer a sua situação social concreta (além de outras circunstâncias, também esquecer se é capitalista ou trabalhador), e então, colocado nesta situação abstrata ou imaginária, julgar imparcialmente se uma determinada lei ou medida administrativa do Estado é justa ou não. Segundo ele, podemos supor que todos somos dotados de um senso inato de “justiça” e, ao mesmo tempo, de um desejo inato de “liberdade”, de tal modo que poderia haver um consenso sobre as “politicas afirmativas” que fariam possível a harmonia entre a propriedade privada (a “liberdade”) e a equidade social (a “justiça”). 

A política é economia em forma concentrada, e Rawls está para a teoria política burguesa assim como Keynes está para a teoria econômica burguesa. Tanto um quanto o outro expressam os interesses gerais da burguesia na fase histórica de decadência do capitalismo. Como sabemos, Keynes reconheceu, na primeira metade do século XX, quando a economia capitalista já era dominada pelos grandes monopólios industriais e financeiros, o que Marx já havia cientificamente demonstrado no século XIX, ou seja, que a “mão invisível” das forças de mercado, muito longe de promover o interesse comum por meio do egoísmo individualista, tinha uma séria tendência a desencadear crises econômicas altamente destrutivas e ameaçadoras para a hegemonia burguesa. Keynes propôs como remédio econômico (assim como as “politicas afirmativas” de Rawls tem a intenção de ser um remédio político) a implementação de gastos públicos, como parte do que foi chamado de “medidas contracíclicas” que evitem a desproporção entre produção e consumo, que é um resultado inevitável da anarquia da produção no capitalismo. O resultado prático das medidas Keynesianas é apenas recriar as mesmas contradições, que estas medidas não podem resolver, na forma de aumento da dívida pública que deverá ser paga com medidas de “austeridade”, o que somente recoloca a mesma necessidade capitalista de reproduzir a miséria ao lado da riqueza.

Na luta de classes, o que é remédio para os capitalistas, é veneno para os trabalhadores, e vice-versa. Como médicos do capitalismo decadente, Rawls e Keynes constituem uma dupla fraude e um duplo fracasso, mas o veneno destilado por eles ainda produz ilusões. Ambos são a contrapartida ideológica de uma situação histórica caracterizada, em largos traços, por dois aspectos básicos. Objetivamente, em função do processo inevitável de concentração do capital, a correlação de forças sociais é hoje muito mais favorável  à classe trabalhadora, que constitui a imensa maioria da população, enquanto a classe capitalista dispõe de uma base social cada vez mais estreita. No entanto, subjetivamente, mesmo as autênticas  lideranças da classe trabalhadora, nos seus partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais, ainda não compreenderam a necessidade de guiar suas ações políticas com base nas lições históricas da luta de classes e na análise científica (marxista) das contradições do capitalismo. A fraqueza objetiva dos capitalistas ainda é compensada pela fraqueza subjetiva dos trabalhadores. Mas esta situação é altamente instável porque a crise do capital acelera a tomada de consciência dos trabalhadores. Daí que, para os capitalistas, seja crucial investir em qualquer manobra que dissemine a confusão e a divisão entre os trabalhadores.

A teoria de Rawls não surgiu por acaso, nem foi por acaso que o governo americano, em 1972, começou a implementar algumas dessas “políticas afirmativas”, inclusive as cotas raciais. Nesta época, e desde os anos 50, o crescimento das lutas contra o racismo nos EUA (Martin Luther King, os Panteras Negras, rebeliões violentas da juventude negra, etc.) havia se transformado em uma verdadeira batata quente nas mãos da burguesia norte-americana. Além disso, depois das revoluções de 1968 na França e em outros países, a burguesia ficou um pouco mais disposta a reconhecer que a verdade contida naquele verso de uma canção de Gilberto Gil – “tudo agora mesmo pode estar por um triz” – é especialmente verdadeira quanto a sua própria existência (digo ‘um pouco mais’ porque desde a Comuna de Paris, e principalmente desde a Revolução Russa de 1917, a burguesia já havia adquirido tal disposição). O movimento contra o racismo estava ganhando o apoio de amplos setores da classe trabalhadora, e potencialmente poderia articular-se com um programa mais abrangente de transformação social. Na teoria e na prática, as “políticas afirmativas” foram implementadas para esfriar a batata quente, que ameaçava explodir, com medidas administrativas do Estado burguês que criavam ilusões e ressentimentos para desmobilizar as massas e isolar os setores mais combativos da classe trabalhadora. Infelizmente, não havia uma organização marxista com presença e influência significativas no movimento contra o racismo nem nas organizações operárias em geral. Como intelectual de esquerda e historiador, Valerio Arcary deve uma explicação: ele realmente ignorava ou simplesmente omitiu a história real da proposta das cotas raciais?

“Ser branco pobre no Brasil nunca foi, também, o mesmo que ser negro pobre”. É verdade. Evidentemente, o que faz diferente a condição do “branco pobre” e a do “negro pobre”, no Brasil, é a existência social do racismo, sendo o “negro pobre” o alvo direto desta forma de opressão que o atinje sob múltiplos disfarces ao longo da sua vida, o que o coloca, pelo menos potencialmente, em desvantagem em comparação ao “branco pobre”, inclusive quando se trata de conseguir um emprego melhor remunerado ou, ainda que as regras sejam formalmente iguais para todos, no acesso ao ensino superior. Sem ignorar a realidade e, portanto, com plena consciência desta desigualdade entre o “branco pobre” e o “negro pobre”, os marxistas devem defender as cotas raciais como uma medida que efetivamente combate o racismo?. Em vez de preocupar-se em dar uma resposta a essa questão, Valerio defende as cotas raciais como uma providência imediata para reduzir aquela desigualdade. Se prestarmos atenção ao que significa o “também” na frase citada e dentro do contexto da citação anterior, Valerio está dizendo que a igualdade de oportunidades não pode resolver a desigualdade entre capitalistas e trabalhadores e “também” não pode resolver a desigualdade entre o “branco pobre” e o “negro pobre”. Ele coloca as duas desigualdades, uma ao lado da outra, sem relacioná-las do ponto de vista histórico da luta de classes, reproduzindo o saco de batatas de todas as desigualdades com o qual o liberalismo pretende ocultar as contradições do capitalismo. É impressionante a facilidade com a qual, pelo menos aparentemente, ele se deixa enganar por uma das faces da raposa burguesa, e ainda por cima pretende justificar esse engano com citações de Marx e Lenin.

Sejamos claros, para que a discussão sobre as cotas raciais seja plenamente compreendida no contexto histórico em que ela ocorre: tal providência imediata está sendo implementada pelo Estado burguês brasileiro,  e não está sendo discutida como uma proposta para uma sociedade de transição entre o capitalismo e o socialismo. Assim, ao usar citações de Marx, retiradas da Crítica ao Programa de Gotha – em que Marx afirma que, para evitar tratar os desiguais como iguais, como faz o direito burguês, “o direito deveria ser não igual, mas desigual” – Valerio Arcary omite o importante detalhe de que nesta afirmação Marx refere-se ao que ele chama de “primeira fase da sociedade comunista” e, mesmo assim, para dizer que, mesmo nesta fase – “como ela acaba de sair da sociedade capitalista, portanto trazendo de nascença as marcas econômicas, morais e espirituais herdadas da velha sociedade de cujo ventre ela saiu” – ainda não será possível eliminar imediatamente as distorções derivadas de desigualdades pré-existentes entre os trabalhadores, e isto porque, segundo Marx, “O direito nunca pode ultrapassar a forma econômica e o desenvolvimento cultural, por ela condicionado, da sociedade”. Marx refere-se ao direito como uma realidade social contraditória e não como uma aparência fantástica com a qual, em nossa época, o liberalismo quer pintá-lo. Para enfeitar sua argumentação, mais próxima de John Rawls e muito distante de Marx, Valerio Arcary arrisca-se a deturpar o pensamento de Marx !!! Ao aderir à reinvindicação da resolução imediata, ainda no capitalismo, de todas as desigualdades entre os trabalhadores, Valerio confunde em vez de esclarecer, e propõe uma tarefa para a qual ainda não estão dadas as condições objetivas e subjetivas para a sua realização. Existem muitas causas de desigualdade entre crianças e jovens da classe trabalhadora, além do racismo, como o alcoolismo dos pais, a violência doméstica, doenças, etc. Deveríamos propor cotas para cada um destes casos? O que é pertinente aqui é entender a diferença política entre estes outros casos e a desigualdade causada pelo racismo: o que há de realmente específico no racismo é sua relação orgânica com a luta de classes. É exatamente por isso que a luta contra o racismo é uma tarefa imediata a ser implementada com a união de toda a classe trabalhadora.

Tratemos então de responder a questão que Valerio Arcary deliberadamente contornou, e tratemos de justificar a nossa resposta. Não seguiremos pelo caminho que ele escolheu trilhar: ao evitar discutir e expor claramente, da perspectiva da luta pelo socialismo, o conteúdo e as consequências políticas das cotas raciais, ele situou o debate completamente fora da perspectiva histórica da luta de classes. Em vez de fortalecer a luta contra o racismo e unir esta com a luta pelo socialismo, contribuiu para afastar uma da outra e para enfraquecer ambas.

Ao contrário do que o autor do citado artigo afirma, referindo-se a um projeto de lei do governo Lula (sem ao menos mencionar o fato de que este projeto começou a ser elaborado no governo de FHC), as cotas não são apenas “o bombom em um bolo envenenado” pelo perdão das dívidas fiscais dos empresários do ensino privado. Valerio denuncia o conteúdo econômico do bolo e, ao mesmo tempo, defende o bombom que, para ele, parece apenas ser o enfeite inofensivo que teria como função esconder o conteúdo do bolo. Mas ele está enganado: como trataremos de mostrar nos parágrafos seguintes, as cotas são a parte política do veneno. Não podemos combater o veneno econômico (a exploração, a propriedade privada)  sem combater o veneno político (todas as formas de opressão que a ideologia dominante estimula para enfraquecer a luta pelo fim da exploração), e isto por uma razão decisiva: a luta pelo socialismo, assim como a luta contra o racismo, depende da ação política independente do conjunto da classe trabalhadora, e tudo o que puder enfraquecer e dividir o movimento da classe trabalhadora como um todo será estimulado pela burguesia. Não é a toa que, nos EUA e a nível internacional, a Fundação Ford – detentora de um longo currículo de parcerias com a CIA – tenha feito há várias décadas, e continue fazendo, um grande esforço para promover a idéia das cotas raciais. As frações dominantes da burguesia percebem claramente aquilo que, infelizmente, Valerio Arcary não quer ver ou, por alguma razão, prefere deixar em segundo plano, ou seja, que a implementação das cotas raciais alimenta o racismo e divide a classe trabalhadora. O fato de que haja outros segmentos da burguesia que “defendem a igualdade de oportunidades contra as cotas” não implica que devamos limitar a discussão a essa contraposição que só tem significado real entre diferentes setores da classe capitalista.

As cotas raciais não criam o racismo, mas alimentam o racismo e dividem a classe trabalhadora porque tranformam a própria idéia de raça em uma entidade juridica, uma lei de caráter racial, que introduz um elemento adicional de confusão e de ressentimento nas relações sociais entre os próprios trabalhadores. Digo que este elemento é “adicional” porque, no capitalismo, os trabalhadores são forçados a vender a sua força de trabalho e, portanto, a competir entre si para conseguir e manter um emprego, e a disputa pelo acesso ao ensino superior e aos empregos públicos é um dos aspectos dessa competição. A maioria dos trabalhadores, por meio da experiência concreta da luta de classes, alcançam um degrau mais avançado de consciência de classe ao perceberem que só podem realmente conquistar melhores salários e melhores condições de trabalho enfrentando coletivamente os estreitos interesses da classe capitalista. Eles avançam ainda mais quando a experiência mostra que suas conquistas, nos limites dados pelo capitalismo, são precárias e constantemente ameaçadas pelas inescapáveis contradições do capital. Então, além dos sindicatos, eles organizam partidos políticos que expressam a necessidade de uma alternativa política independente dos interesses dos capitalistas. A burguesia, por seu lado, lança mão de todas as manobras possíveis para barrar o avanço da consciência de classe dos trabalhadores, e ela não somente dispõe de muitos recursos para essa finalidade como também pesquisa a maneira mais eficiente de aplicá-los. A lei das cotas raciais, além de acirrar a competição entre os trabalhadores, oficializa o racismo como uma opressão a ser pensada e resolvida de modo completamente separado da luta de classes, como se fosse meramente uma questão que uma medida administrativa do Estado burguês poderia resolver ou amenizar significativamente. Vejamos as razões pelas quais afirmamos que uma perspectiva de vitória na luta contra o racismo é inseparável da luta de classes.

É espantoso que o historiador Valerio Arcary não se dê ao trabalho de ao menos oferecer uma breve reflexão sobre a origem histórica da idéia de raça como uma realidade social. Mas pode ser que o meu espanto seja injustificado. Talvez ele pense, como muitos outros, que “raça” seja uma entidade natural em vez de ser um produto histórico da ação humana. De fato, é óbvio que existem características físicas (e, portanto, naturais) que distinguem diferentes populações em diferentes regiões do planeta. Porém, não há qualquer relação entre as características físicas típicas de uma população humana e as suas respectivas tradições culturais (entre elas, o idioma), e é por esta razão que, para identificar um grupo humano por sua cultura particular, o termo usado é “etnia” e não “raça”. Assim como nos outros continentes, na África também existem várias etnias. São conhecidas muitas formas de discriminação baseada na etnia (ou em aspectos culturais, como a religião, etc.), e, tal como o racismo, essa espécie de discriminação também foi e continua sendo usada para justificar várias formas de exploração, inclusive a escravidão (Grécia antiga, Roma antiga, e mesmo na África pré-colonial), e também para dividir os oprimidos de diferentes tradições culturais e, dessa forma, dificultar a luta pela sua emancipação. O anti-semitismo contra os judeus, por exemplo, é comumente confundido com racismo, mas na realidade é um tipo de discriminação baseada na etnia. Embora haja realmente uma certa relação histórica entre a discriminação étnica e a racial (ver o final desse texto), esta confusão é estimulada pela burguesia e constitui um elemento de reforço para o racismo.

Atualmente, no Brasil ou talvez até mesmo nos Estados Unidos, os trabalhadores negros, especialmente nas áreas urbanas, não constituem uma etnia, pelo menos no sentido de que, em sua vida cotidiana, não vivem de acordo com tradições culturais suficientemente distintas dos outros trabalhadores para que possamos identificá-los por meio destas tradições. A existência de muitas e importantes manifestações culturais (na música, na dança, na culinária, etc.) que são relacionadas com a origem africana dos trabalhadores negros, mas também com o fato de que eles constituem um grupo social particularmente oprimido pela existência do racismo, não altera a circunstância de que, em sua vida real e concreta, eles participam da mesma cultura popular e urbana da qual também participam os outros trabalhadores, e da qual aquelas manifestações culturais fazem parte. A sua identificação como um grupo social distinto é, portanto, predominantemente baseada, em nossos dias, na idéia de raça como uma entidade que é sobretudo caracterizada pela cor da pele de um ser humano. O que é importante ressaltar aqui é o seguinte. A existência histórica das etnias está baseada em fatores naturais, especialmente a separação geográfica entre grupos humanos, que pode ou não determinar inclusive diferenciações das suas características físicas, além das diferenciações culturais, mas a existência histórica das “raças”, caracterizadas pelo critério da cor da pele (como eventualmente poderia ser por outra característica física), é uma criação puramente ideológica, longamente construida e estimulada pela classe dominante, e por meio dela adquiriu existência social. Onde não há possibilidade de explorar amplamente as diferenças étnicas, por serem secundárias ou inexistentes, é preciso cultivar o racismo.

Os estudos genéticos mostram que, no Brasil, mesmo para identificar se os ancestrais de um indivíduo são desta ou daquela etnia, a cor da pele não tem significado, e isto vale para a cor branca tanto quanto para a negra, exceto para indicar uma maior probabilidade de alguém ser mais ou menos predominantemente, mas não exclusivamente, “eurodescendente” ou “afrodescendente”. Apesar disso, podemos ler nos critérios do censo do IBGE: “Cor ou Raça – característica declarada pelas pessoas de acordo com as seguintes opções: branca, preta, amarela, parda ou indígena”. Neste critério há muito adotado pelo Estado burguês no Brasil, podemos observar a evidente identificação entre cor e “raça”, e também a deliberada confusão entre etnia e “raça”. As primeiras quatro opções são cores, mas a última pretende referir-se a uma etnia, embora no Brasil pré-colonial existissem várias etnias indígenas e não apenas uma, o que, aliás, continua sendo uma realidade. De qualquer modo, é verdade que o termo “indígena” tem um significado étnico coletivo, isto é, que identifica um certo modo de ser culturalmente distinto de outros grupos da população brasileira. No caso em que a distinção cultural é real usa-se um termo étnico e não uma cor. O critério da cor é usado para os não indígenas, para criar a distinção racial onde não há distinção étnica. Basta isso para verificarmos como esta classificação pela cor da pele impõe aos trabalhadores brasileiros uma identidade racial que nada tem a ver com a sua vida real, ou seja, com o seu modo de ser social, exceto quanto a um aspecto: a própria existência social do racismo, do qual este critério de “raça” do IBGE é uma expressão oficial e, ao mesmo tempo, um instrumento. A verdade histórica é que a noção de “raça” surgiu após o início da escravidão moderna, e foi inventada e construída para justificar a escravidão como uma ideologia totalmente falsa de superioridade racial.

Durante uma entrevista, Lula teve que responder a uma questão sobre a implementação prática das cotas racias: se, no Brasil, devido à assim chamada “miscigenação” (que é definida como mistura entre “raças”), existem muitas variações de tons de pele entre o branco e o negro, como seriam identificados aqueles que seriam incluídos nas cotas? Certamente para evitar comprometer-se com alguma ridícula idéia de um colorímetro, ele deu uma resposta muito significativa, dizendo que tal identificação se daria por “critérios científicos”. Será que Valerio Arcary concordaria com essa resposta? Afinal das contas, por maior que seja a aparente sofisticação intelectual dos seus argumentos, quem defende com seriedade as cotas raciais deveria ter pelo menos uma noção de como colocá-las em prática. Marx e Lênin concordavam plenamente com a seguinte afirmação do filósofo Hegel: “A verdade é concreta”. Como todos sabemos, parece que os tais critérios científicos não foram encontrados porque foi afinal resolvido que a inclusão nas cotas raciais se daria pela chamada “auto-declaração”, isto é, fica a cargo de cada um, tal como no critério do IBGE, declarar-se ou não como membro desta ou daquela “raça”.

Em outras palavras, a proposta das cotas raciais acaba por jogar o fardo dessa distinção racista nos ombros dos oprimidos !!! A burguesia oferece o seu bombom envenenado – o mesmo que Valerio considera inofensivo politicamente – e aguarda seus efeitos declarando debochadamente: “eles que se entendam entre si, eles que passem a desconfiar uns dos outros, eles que pratiquem o racismo entre si e contra si próprios !!!”. Mas aquilo que a burguesia realmente deseja, e que ela necessita desesperadamente, é fomentar a concepção de que a exploração de classe é apenas uma entre muitas formas de opressão e, quem sabe, talvez nem seja mesmo a mais decisiva em nossos dias. “Vamos com calma, cada coisa a seu tempo !”, susurra a raposa burguesa. Ela deseja espalhar a idéia de que cada forma de opressão deve ter uma solução separada das outras. Com um pouco de sorte, talvez ela consiga dar um sabor razoável ao seguinte pensamento: “Como pensar em socialismo se ainda estamos discutindo critérios para incluir ou excluir as pessoas das cotas raciais !!!”. Isto revela com toda clareza que o racismo é uma arma política apontada e disparada contra toda a classe trabalhadora, independente da cor da pele de cada trabalhador, e também revela que as cotas raciais, em vez de constituir uma proteção contra essa arma, é apenas uma das faces dela mesma.

Na realidade, aqueles critérios científicos mencionados por Lula simplesmente não existem. O que, de fato, existe por trás da idéia de raça é somente uma teoria pseudocientífica que, inicialmente elaborada na Europa, chegou no Brasil e substituiu o discurso dos padres que identificavam os escravos negros com o diabo ! Esta falsa teoria, que de ciência não contém sequer um grão, é composta por um amontoado de fraudes, e desde a época do colonialismo e da escravidão tenta justificar a exploração construindo a noção de superioridade racial e, portanto, de um direito natural ao exercício da dominação. A idéia de raça não tem significado cultural, e também não tem significado biológico: existe uma enorme variação de características físicas entre os seres humanos que tem a pele branca, assim como entre os que tem a pele negra, variação que não é menor do que entre os que tem a cor da pele diferente uns dos outros, de modo que a escolha da cor da pele como uma entidade social que diferencia e contrapõe os indivíduos em suas relações mútuas é uma escolha artificial e arbitrária, construída e imposta pela classe social dominante ao longo da história, com a única finalidade de manter e consolidar o seu domínio e enfraquecer a luta dos oprimidos por sua emancipação social. Se não é pequeno o número de trabalhadores, seja qual for a cor da sua pele, que não tem consciência deste fato histórico, isto não pode servir de argumento para alimentar, em vez de combater, uma idéia que reforça o racismo e debilita a luta do conjunto da classe trabalhadora. Ao contrário do que imagina Valerio Arcary, os marxistas tem a obrigação de esclarecer este fato histórico e não podem omiti-lo.

O racismo é uma realidade social no Brasil e em outros países, principalmente naqueles em que houve por vários séculos a escravidão de homens e mulheres de origem africana. Esta origem histórica do racismo contra a população negra, ou contra os “não-brancos”, deve ser enfatizada justamente para esclarecer o significado social do racismo hoje: ele não é apenas uma sequela ou uma espécie de resíduo histórico da escravidão pré-capitalista, mas sim um instrumento para a manutenção atual da escravidão assalariada de todos os trabalhadores, qualquer que seja a cor da sua pele. Do ponto de vista dos interesses de classe da burguesia, o que interessa é o efeito político desse instrumento, e ele é tão precioso para a burguesia que ela fornece muitos recursos com a finalidade de conservá-lo intacto, pouco importando a direção em que ele é incentivado, se “negativo” ou “afirmativo”, o que interessa é dividir para reinar. A defesa das cotas raciais como uma “política afirmativa”, que o próprio autor do citado artigo reconhece que não vai alterar substancialmente a situação social da população negra, contribui substancialmente para a manutenção dos privilégios sociais da burguesia e para a preservação do capitalismo.

Há realmente uma dívida histórica para com o “negro pobre” no Brasil, mas o herdeiro desta dívida e quem deve pagá-la é a burguesia, e ela jamais será devidamente cobrada sem a união do “negro pobre” com o “branco pobre”. Portanto, apresentar um programa diferente, um para o “negro pobre” e outro para o “branco pobre”, é politicamente um completo absurdo. Se, como afirmamos, atualmente o racismo é uma forma de opressão social a serviço da exploração capitalista, a tentativa de amenizar as consequências sociais do racismo com propostas que  joguem os trabalhadores uns contra os outros, e fazem do racismo uma questão administrada sob controle da burguesia, é ignorar a ligação orgânica entre o racismo e a luta de classes, é separar a luta contra o racismo da luta pelo socialismo. Contra qualquer manifestação de discriminação racista, mesmo que ela ocorra entre os trabalhadores, devemos sempre propor a mais decidida e contundente ação política do conjunto da classe trabalhadora.

O racismo, não só objetivamente, mas também subjetivamente, assim como a discriminação étnica e o machismo, será superado completamente pela unidade efetiva da classe trabalhadora, unidade que só pode ser o resultado concreto da sua dura experiência de luta contra o capitalismo e, depois, pela abolição das classes sociais na construção e consolidação do socialismo: trata-se de um processo histórico no qual o indivíduo humano vai aprender, na teoria e na prática, que a sua única essência é a riqueza universal das suas relações sociais. Esta afirmação não é apenas uma proclamação vazia, não é mera retórica. Pelo contrário, ela está baseada em uma sólida análise dialética e materialista.

Como Marx explicou, a propriedade comunal – em sua forma tribal espontânea – é a relação original entre o indivíduo e suas condições de existência, e a propriedade privada é essencialmente uma relação social excludente na qual alguns indivíduos negam aquela relação original pela exclusão de outros indivíduos. A propriedade privada surgiu da dissolução da propriedade comunal-tribal espontânea como resultado do desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, do desenvolvimento das necessidades humanas que ultrapassaram os limites estreitos das relações de dependência pessoal, relações naturais que fundavam a comunidade original. Tanto a dissolução desta comunidade original, quanto o desenvolvimento da propriedade privada, constituem um mesmo processo histórico contraditório e antagônico, que o capitalismo elevou ao seu limite máximo. A propriedade privada não é uma consequência direta do desenvolvimento das forças produtivas, e sim dos limites estreitos das relações sociais originais e, em razão destes limites, do modo inconsciente ou espontâneo como eles foram ultrapassados. No capitalismo, com a formação do mercado mundial, esses limites foram dissolvidos em sua forma historicamente desenvolvida, somente para serem reproduzidos na forma caracteristicamente degenerada da propriedade privada capitalista. O dinheiro e o racismo são fenômenos muito diferentes, mas assim como o dinheiro é a forma degenerada das relações comunais, em menor escala o racismo é a forma degenerada das velhas rivalidades tribais e étnicas que existiam muito antes da emergência das classes sociais. Na sociedade comunista plenamente desenvolvida não haverá dinheiro nem racismo, pois nem um nem outro poderá existir quando todos os limites, subjetivos e objetivos, da propriedade privada forem superados.