A repressão ao Espetáculo Teatral “Blitz – O império que nunca dorme”, da Trupe Olho da Rua, e seu significado

Foto: Marcel Sachetti

Entrevista com o ator e diretor Caio M. Pacheco

A compreensão da relação entre a produção artística e a política é das mais complexas. Embora o marxismo possa – e já demonstrou muitas vezes seu potencial nesta questão – colaborar muito com a análise e desenvolvimento da teoria no campo da estética, ao apresentar o método para a análise da produção artística e dos movimentos artísticos como parte de um complexo social, cujas bases materiais são as mesmas de todo o conjunto da produção social de um determinado local em determinado momento histórico, ainda assim, engatinhamos nesse tema.

Trotsky, em seu brilhante livro “Literatura e Revolução”, ao combater o ponto de vista daqueles que – a partir da escola formalista russa – questionavam o marxismo de forma geral e, particularmente, no campo dos debates sobre arte e cultura, nos dá diversas orientações sobre o alcance do materialismo dialético para o estudo da produção artística:

“É indiscutível que a necessidade da arte não é criada pelas condições econômicas. Mas tampouco a necessidade da alimentação é criada pela Economia. A necessidade de alimentação e calor, pelo contrário, é que cria a Economia. É perfeitamente exato que nem sempre se pode seguir somente os princípios marxistas para julgar, rejeitar ou aceitar uma obra de arte. Uma obra de arte deve-se julgar, primeiramente, segundo suas próprias leis, isto é, segundo as leis da arte. Mas só o marxismo pode explicar porque e como, num determinado período histórico, aparece tal tendência artística; em outras palavras, quem expressou a necessidade de certa forma artística, e não de outras, e por que.”

Estamos decididos, portanto, a utilizarmos esse potencial do método marxista, a trabalhar para aproximar o nosso trabalho teórico e prático na luta de classes das questões culturais e da criação intelectual cada vez mais. Este é, portanto, um primeiro de uma série de artigos que passaremos a publicar sobre este tema. Trata-se do aprofundamento do trabalho de investigação sobre o cenário da produção artística, suas relações com os movimentos sociais, com as diversas tendências políticas e os efeitos dessas relações em sua produção, na elaboração de suas tendências estéticas, bem como a relação dessa produção com a luta de classes. Em suma, trata-se de entender o papel que pode cumprir o artista revolucionário independente, de que falava o “Manifesto da Federação Internacional por uma Arte Independente e Revolucionária”, nos dias de hoje. E, consequentemente, buscar, com todas as forças, cumpri-lo.

Se, porventura, algum companheiro possa não compreender a importante relação entre a produção artística e a luta de classes, se não acreditar nos nossos argumentos ou naqueles que apresentaram alguns de nossos mais importante teóricos do marxismo, ele pode aceitar ao menos como forte indício dessa relação a observação do absoluto ódio nutrido pela classe dominante contra os artistas que se colocam ao lado da classe trabalhadora e aceitam como ponto de partida para a sua produção a forma de sentir o mundo por parte da classe trabalhadora. Particularmente, neste momento de forte polarização social e acirramento da luta de classes, fruto da grave crise econômica mundial, a burguesia tem alimentado cada vez mais temor e desprezo para com as manifestações artísticas críticas à moral e à noção de belo da burguesia. Os cães raivosos da pequena-burguesia intelectual têm sido usados para assustar os melhores artistas que se colocam na trincheira de cá, a da revolução. Um sentimento de abatimento muitas vezes toma conta dos melhores indivíduos e coletivos. Precisamos combater esse estado. A melhor arma é o constante desenvolvimento teórico, que dará munição aos combates de hoje e aos que estão por vir. A essa tarefa nos lançamos.

Para iniciar esse trabalho, falaremos de um espetáculo de teatro de rua que ganhou enorme repercussão, não apenas pela qualidade artística em si – o que seria o mais justo motivo – mas, acima de tudo, por ter provocado inúmeros casos de repressão policial, com ações truculentas, visando impedir sua apresentação em diversas cidades e tendo chegado mesmo ao limite da prisão de um de seus atores e diretor da peça, o companheiro Caio Martinez Pacheco, durante a apresentação. Trata-se do espetáculo “Blitz – O império que nunca dorme”, da Trupe Olho da Rua.

O artigo foi escrito tendo por base uma entrevista realizada com Caio no fim do ano de 2017, onde foi reconstruída a cronologia desde a criação do espetáculo até o mais recente caso de repressão.

Mas, antes da entrevista, é necessário apresentar ao leitor do que se trata. O espetáculo é um trabalho da Trupe Olho da Rua, da cidade de Santos, uma comédia popular cujo tema é a Polícia Militar.

Há várias maneiras, tal como em política, de tratar qualquer tema em arte. Tudo depende, em última instância, do ponto de vista assumido pelo artista sobre o mundo em que vive e, consequentemente, sobre o tema do qual tratará sua arte. A polícia, aqui, é tratada como o aparato de repressão do Estado contra os pobres, contra os negros e moradores da periferia. Como a ferramenta da burguesia, da classe dominante, para manter seu sistema de exploração da classe trabalhadora. Nada das ilusões impostas pela ideologia burguesa de que sua função seja. O ponto de vista, fortemente inspirado na luta das Mães de Maio, é o dos setores mais oprimidos da classe trabalhadora. Essa posição política, aliada a um grande talento, apurado por muitos anos de experiência no teatro de rua, dão uma força muito grande ao trabalho.

A própria sede da Trupe Olho da Rua, a Vila do Teatro, dividida com outros coletivos, é, na verdade, uma ocupação de um equipamento da Prefeitura de Santos, abandonado por anos. O espaço foi ocupado, revitalizado e serve de sede não apenas para importantes reuniões e eventos do Movimento Teatral da Baixada Santista como para saraus, festas e encontros políticos diversos, desde preparações de atos e manifestações à formação política.

Um momento particularmente importante do Movimento Teatral da Baixada Santista, junto a artistas de outros segmentos e trabalhadores da cultura da região, foi o debate quando da luta contra o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Após duas longas assembleias – a segunda entramos pela madrugada no Anfiteatro do Sindicato dos Metalúrgicos de Santos – foi aprovado um documento que, se não coincide completamente com as posições da Esquerda Marxista (fala de um movimento golpista e de “avanços sociais” do governo petista), era muito mais avançado que os documentos saídos de assembleias de artistas de São Paulo (da qual também participei) ou Rio de Janeiro. Embora combatesse o impeachment, procurava não acobertar e, mais que isso, denunciava os diversos ataques feitos pelo governo do PT à classe trabalhadora brasileira. Aí estava expressa a disposição de aprofundar as discussões sobre a situação política, o que se reflete na profundidade da produção artística de vários outros coletivos componentes deste movimento também. O documento pode ser lido neste link.

A luta política para que o Estado – em seus diversos níveis – assuma a responsabilidade para garantir o acesso à cultura, seja o direito do artista produzir e trabalhar, seja do conjunto do povo de usufruir desta produção, bem como a postura de irmanar-se com o conjunto da classe trabalhadora em suas diversas lutas por direitos, permite à Trupe Olho da Rua uma visão das lutas da classe trabalhadora em tom natural, alguém que vê de dentro, diferente daquele que trata a luta do povo como objeto de pesquisa puramente acadêmica. Por outro lado, não se trata de um reflexo impensado, imediato. Saber sentir do ponto de vista da classe trabalhadora alia-se ao querer pensar um futuro para a classe trabalhadora, com a classe trabalhadora. Falar sobre a Polícia Militar alia-se com querer, profundamente, extingui-la. Tão ou mais importante do que saber onde se pisa e com quem se anda é saber para onde apontam os olhos ao buscar uma saída, é saber qual o alcance desse olhar, o que se procura no horizonte.

A questão da luta pelo fim da Polícia Militar tem diferentes matizes. Um Artigo contendo a posição da Esquerda Marxista sobre a Polícia Militar, também de minha autoria, pode ser lido neste link.

Tive a grande satisfação de acompanhar parte importante do desenvolvimento do espetáculo, que já assisti algumas vezes. A primeira vez foi quando a Trupe apresentou-se no Acampamento Nacional da Campanha “Público, Gratuito e para Todos”, que deu origem à Liberdade e Luta. Depois disso, acompanhei viva e curiosamente o processo. A pedido dos companheiros Caio M. Pacheco e João Paulo T. Pires, emiti minha opinião sobre a primeira apresentação do espetáculo completo, se bem me lembro, no FESTA – Festival Santista de Teatro, do qual eu também participava com meu grupo. De lá para cá meu pensamento sobre essa questão se desenvolveu, mas o que há de central permanece atual. A despeito de algumas pequenas imprecisões, pode ser publicado sem prejuízo. Em 14 de setembro de 2015 escrevi uma “carta”, por e-mail, em resposta a esse pedido. Abaixo reproduzo alguns dos trechos mais relevantes:

“Caio, tudo bem?
Antes de tecer os comentários, preciso rapidamente explicar de onde parto. Vocês são algo muito próximos do que podemos chamar de artistas revolucionários independentes, tal qual Trotsky, Rivera e Breton colocaram a questão ainda na primeira metade do século XX. Apenas isso, de minha parte, é um elogio maior do que qualquer outra coisa que eu possa escrever adiante.
Esta figura, o artista revolucionário independente, tanto para estes autores como para a grande maior parte dos revolucionários em toda a história da luta contra o capital, não eram (simplesmente) os autores que escreviam ou falavam – em suas linguagens artísticas – sobre a revolução, sobre luta de classes. Eram aqueles que, no campo da arte, não aceitavam o controle, a direção do estado, da burguesia ou mesmo das organizações do próprio proletariado. Defendiam que a arte deveria ser livre, como condição de ser arte. E que, ao fazer isso, viam os fenômenos da vida social do ponto de vista dos oprimidos.
Engels, Rosa, Plekanov e, principalmente, Trotsky, entre estes teóricos, alertavam os artistas militantes de esquerda de que falar sobre a luta de classes na arte não era necessariamente fazer arte revolucionária. Engels considerava que quanto mais escondida estivesse a opinião do autor, melhor para a obra de arte. Plekanov atentava para o fato de que ao fazer uma arte que buscava tomar o lugar do discurso político, poderia se acabar por fazer má política e arte nenhuma.
O Stalinismo, com o realismo socialista, causou um estrago profundo na condição teórica de nossa época. Tratando que o artista revolucionário tinha a obrigação de retratar e denunciar a miséria do proletariado e sua luta, ao convencer as seções dos partidos comunistas em todo o mundo, acabou por colocar uma coleira nas mentes mais prodigiosas e transformou milhares de talentos em estúpidos amorfos, cavando o túmulo da riqueza teórica de uma época.
Entre os artistas houve importantes contribuições sobre isso. (…)
Mas o fato é que o Stalinismo deixou um legado de confusão. Ele ensinou que o militante, quando faz arte, se não retrata a imagem manifesta da luta de classes, não serve à revolução e, consequentemente, ao futuro humano. É a maior falsificação que se poderia ter da função social do artista e, mais, do artista revolucionário.
A social-democracia e os reformistas de hoje apenas pioraram o cenário, aprofundaram a confusão colocando as forças artísticas surgidas dos setores sociais que se colocavam ao lado do proletariado, ou do próprio proletariado, em favor do equilíbrio e da humanização das relações capitalistas. O resultado disso foi praticamente a extinção dos grandes movimentos artísticos, as escolas baseadas em programas estéticos que faziam o pensamento e sentimento humano avançarem abraçados na fase do capitalismo ascendente, ainda que o uso do avanço científico e, muitas vezes, artístico, no capitalismo fosse usado contra a própria humanidade. Após as grandes guerras mundiais, a reorganização do capital numa crise estrutural crônica levou tudo isso à beira do abismo em que nos encontramos hoje e deixou de encontrar real resistência na produção artística mundial.
Por tudo isso – que é um resumo simples das ideias das quais parto – vocês são algo muito importante. O teatro de grupo hoje, no Brasil, é composto e impulsionado por muitos artistas de esquerda. Isso é incrível. Mas a maior parte deles acredita piamente que sua militância é sua arte e, mesmo quando não dizem isso, na verdade o praticam. Podem até dizer o contrário, mas na prática são isso. Assim, acabam por usar sua arte para convencer, no campo da razão, o povo a rebelar-se. Substituem o discurso científico, que é o campo da política, pelo discurso em versos, cenas, atos, etc. Mas se o manifesto comunista não está em versos não é simplesmente porque não haveria um artista naquele tempo com capacidade à altura. É porque tal explicação, a dedução da necessidade da transformação revolucionária da sociedade decorre das próprias leis internas da história, a compreensão de tudo isso é produto da aplicação da dialética baseada no materialismo, do desenvolvimento da filosofia. Necessita de precisão científica. O sentimento dos indivíduos, as tendências relacionadas ao desenvolvimento dos sentimentos e estados de espírito médios em cada uma das classes sociais, o germe do novo nos corações e mentes do povo, as oscilações e revoluções nas emoções da massa, esses são o verdadeiro material da arte.
É lógico que se um artista compreende cientificamente a situação de seu tempo, muito melhor. Mas isso nada resolve.
Vocês expressam uma arte absolutamente absorta pela luta do povo. São, claramente, pessoas do nosso povo e que se colocam ao lado dos oprimidos. Tem lado. Sabem se expressar politicamente. E sabem se expressar artisticamente. Dialeticamente, sabem que são coisas diferentes, mas que também devem estar devidamente entrelaçadas quando na obra de arte.
Vocês fazem algo muito difícil. Depois de tanto charlatanismo na arte que trata de temas explicitamente políticos, vocês se mantém artistas e revolucionários no campo onde gerações inteiras capitularam, com poucas exceções. Vocês não são os únicos, mas em minha opinião, são dos poucos. Quão importantes são estes poucos.
A arte que fazem impressiona. A própria aparição de homens fardados com máscaras de animais, fetichizados ao extremo com base no estereótipo da mercadoria-corpo-feminino, com meia-calça, etc, levam o público a rir da autoridade imediatamente, derrubando qualquer hierarquia baseada na realidade. A única hierarquia é que vocês são os artistas, todos sabem, todos esperam que falem. Mas falam ao rés do chão não apenas por estarem no chão, mas por terem tirado seus personagens policiais das alturas e colocado a um nível novo.
(…)”

Obviamente, não reproduzo aqui os trechos da carta que contém um debate sobre as partes da peça, que busquei elogiar ou criticar construtivamente.  Não se trata de um artigo de crítica estética sobre a peça. De qualquer forma, não é demais reforçar que é uma comédia primorosa e merece toda a atenção dos militantes revolucionários.

A Esquerda Marxista apresenta divergências com alguns pontos de vista expressos por Caio M. Pacheco na entrevista abaixo transcrita. Particularmente, sua visão de que tenha havido um golpe (nossa posição pode ser melhor entendida neste artigo) ou, para além da entrevista, tendo em vista posições políticas apresentadas nas lutas cotidianas, como sua intensa participação no Conselho Municipal de Cultura, em Santos, destoam das posições da nossa organização. Não temos segredo sobre nossas divergências. Mas, se por um lado não abrimos mão de debater as divergências e avançar sobre esses debates dia-a-dia, por outro lado é preciso esclarecer que tais diferenças, no debate sobre a arte, não são impeditivo para um trabalho comum de desenvolvimento teórico e, uma parceria, no combate prático. Em suma, na construção de um diálogo e uma aliança entre militantes marxistas e artistas revolucionários na luta pela revolução. Nossa parceria nestes últimos anos tem demonstrado isso.

Por fim, há que se atentar a questões próprias do “meio” cultural. A expressão “classe artística”, usada por Caio na entrevista, costuma, na boca dos artistas de “esquerda”, significar “categoria profissional dos artistas”. De forma geral, o termo “classe” nos debates entre artistas não pretende ter o mesmo significado atribuído nas ciências sociais e na tradição do marxismo.

Nas próximas semanas será publicado outro artigo, produto do trabalho da Célula de Artistas da Esquerda Marxista, sobre o papel do Artista Revolucionário Independente nos dias de hoje. Seguiremos com o debate e convidamos os artistas que estão dispostos a lutar pela revolução socialista a debater e a contribuir conosco nesta luta.

Segue a entrevista:

Vinícius Camargo: Caio, é possível fazer, de memória, uma lista de quantas e quais vezes o espetáculo Blitz sofreu censura, repressão e represálias?

Caio M. Pacheco: Vamos lá, sobre censura envolvendo a Blitz…

Durante o processo (de montagem do espetáculo), por duas vezes a gente abriu interlocução com o Comando da Polícia Militar, a fim de se prevenir e tentar já dissuadir qualquer ação futura que colocasse em questão qual seria o nosso intuito.

Então, numa reunião na OAB, da Comissão da Verdade, a gente comunicou o então coronel Ricardo sobre o projeto, inclusive ressaltando o apoio do governo do Estado através do PROAC e que o grupo faria algumas apresentações na região e que já gostaria de abrir uma interlocução com a polícia. Que [a polícia] enxergasse essa manifestação como uma colaboração crítica para o pensamento da instituição da sociedade. E, também, num outro momento, foi um Encontro da Polícia do Futuro onde a polícia de São Paulo fez uma série de encontros em universidades para poder discutir o papel da instituição e apontar futuras reformas, o que seria essa polícia do futuro, para onde caminharia. Então, nesses dois momentos a gente marcou posição, foi lá tentar uma interlocução.

Depois que o espetáculo estreou, tiveram alguns casos, alguns momentos onde houveram repressões que ainda estavam não organizadas, pode-se falar. Impulsos de um “polícia” que parava e reclamava, falava alguma coisa, ou de alguns policiais que, enquanto a gente estava montando o cenário, já sabendo o conteúdo da peça, nos questionavam e alguns de maneira mais agressiva, outros que a gente até percebia que faziam isso no intuito de querer entender mesmo qual que era a nossa perspectiva. Até aí então a gente achou que isso seria natural, que seria tolerável com o ambiente democrático, a gente sabia que pequenos questionamentos viriam.

Repressão organizada, que eu acho que esse é o problema, é quando uma instituição se organiza pra reprimir algo e aí não é uma atitude isolada de alguns policiais. Foi em Santos em um primeiro momento. Em Santos, vai fazer um ano agora, daquele episódio, onde a polícia interrompeu um espetáculo, apreendeu o cenário, investiu contra o público impedindo que eles filmassem a ação e o que culminou em uma detenção e depois na repercussão que isso veio a ter. Essa repercussão, dialeticamente, para a gente, foi um ponto positivo, porque colocou a questão, pelo menos dentro de um curto prazo. Uma oportunidade da sociedade discutir qual seria o limite das instituições e a liberdade da arte e ao mesmo tempo a pauta em si que o espetáculo levanta, a segurança pública, como ela se organiza e como ela oprime uma parte da população. Então acho que nesse momento houve essa discussão, gerou outras repercussões, como repressões também organizadas no caso do coronel Telhada que fez uma fala na ALESP, com a gente presente na Comissão de Direitos Humanos, nos ameaçando. Dizendo que nós éramos lixo, que lixo merece amanhecer dentro do lixo, que chumbo trocado não dói, que a gente nunca mais iria ter paz, que a polícia nunca iria esquecer o que aconteceu. Enfim, esse discurso ele mesmo postou na sua própria página  do Facebook, nas redes sociais, o que gerou também uma série de outras ameaças e incitação de ódio no meio virtual, e alguns políticos também fizeram caldo nesse discurso na época.

Aqui em Santos, alguns vereadores tinham proferido uma posição também muito semelhante à do Telhada, só que um pouco menos ameaçadora, e depois, também, teve uma discussão pública de uma lei. Depois de uma manifestação nossa, mudaram de posição, a maioria deles gravou um vídeo ressaltando o absurdo do que tinha acontecido, ou seja, a pressão popular funcionou ali pelo menos.

Depois disso teve mais dois casos de repressão. Um foi em Sorocaba, onde após o espetáculo algumas viaturas chegaram no parque, querendo questionar o conteúdo do espetáculo, dizendo que precisava abrir um B.O., um boletim de ocorrência contra a gente. Nos levaram pra um salinha lá dentro do parque, onde a gente ficou quase uma hora e meia tendo que se explicar. Aí, apareceu um cara da plateia, um suposto membro do público, e também queria fazer uma reclamação formal contra a gente por ter sido usado palavrão, e isso somou ao discurso da polícia. Depois essa confusão foi desfeita. Depois de quase duas horas, a polícia resolveu deixar a gente ir embora, dizendo que veio uma outra ordem dizendo para deixar a gente ir embora.

Mas dentre essas coisas que eles falaram, uma delas foi: “recebemos um comunicado da instituição, do Comando da Polícia Militar, que vocês estariam na cidade, esse encontro aqui nosso com vocês é pra vocês saberem que não terão paz para circular com essa peça”. Isso deixou a gente muito preocupado. Uma outra questão que eles levantaram é que queriam ter acesso ao vídeo do espetáculo que foi mandado pro PROAC, a fim de poderem verificar se a gente não estava subvertendo o próprio edital, apresentando uma coisa para a plateia que a gente não mandou pro governo do Estado, uma questão absurda.

Depois em Guarulhos, depois de Sorocaba foi em Guarulhos. Faz uns três meses* que aconteceu algo bem parecido com Sorocaba. Uma ação praticamente idêntica, a diferença é que a gente não estava em um parque público e não tinha nenhuma salinha. Mas no final do espetáculo também a polícia chegou e faz praticamente toda a mesma encenação que aconteceu em Sorocaba, registraram um boletim, questionaram o intuito do espetáculo. Só que aí foi um pouco mais curto, em uma hora eles deram o recado e foram embora. E agora, recentemente, em Osasco, que foi uma repressão póstuma, depois da nossa participação na Mostra Vermelha, dos companheiros do Teatro dos Ventos, lá de Osasco. A Câmara Municipal votou uma carta de repúdio à Secretaria de Cultura, por ter permitido nossa apresentação na cidade, levantando questões que vão de encontro à discussão que está acontecendo agora sobre as repressões que estão aparecendo e que o movimento de direita organizado está jogando para cima e pondo fogo pra encobrir outras questões maiores da política brasileira, e também para dar vazão a esse conservadorismo tão pungente hoje. Então, aconteceu isso em Osasco agora e, em relação à repressão, também existe, que a gente não chama muito de repressão, mas que existe, que a gente sabe que é para provocar isso, de parte de algumas pessoas que já assistiram, uma reação violenta. Pessoas que às vezes nos interrompem pra poder xingar, pessoas que não entendem e se posicionam de maneira agressiva e tal, retrógrada. Nem sempre formulam uma crítica direta, mas às vezes nos ameaçam e esse tipo de coisa. Mas isso ainda é tolerável quando você faz a opção de fazer um espetáculo de enfrentamento, que vai no nervo de uma questão que não está sendo amplamente discutida, que gera uma série de tabus, e uma série de tabus classistas. Uma série de tabus onde a classe dominante não quer enxergar a questão e a classe oprimida vive essa dor e essa pecha na pele, no cotidiano.

E também tem uma repressão de parte do dito mercado cultural. A Trupe Olho da Rua é um grupo que vai fazer 15 anos. Nós, dentro do repertório, tivemos outros espetáculos que circularam de uma maneira muito mais fluente, pelas instituições de cultura, por mostras e festivais etc. E com a “Blitz”, depois que isso aconteceu, se interrompeu esse ciclo. Está certo que a gente vive um momento muito difícil na economia, essa crise, que um dos setores que mais assola é a cultura. Mas, de qualquer maneira, a gente sente que tem muitos festivais em que, naturalmente, a “Blitz” teria um espaço pra se apresentar, muitas instituições que normalmente chamariam a “Blitz” pra compor a programação, que em virtude do que aconteceu, em virtude dessa discussão classista, não chamam. Não chamam porque não querem comprar para sua instituição, para seu evento, uma possível discussão, o que foi agora, por exemplo, o que aconteceu com a Mostra de Osasco, do pessoal do Teatro dos Ventos, que foi incluir a gente na sua mostra e teve que comprar, de maneira muito contundente, e que faz parte de uma discussão que está aí, que os elementos estão postos.

Vinícius Camargo: Por que acredita que exista este ataque cada vez maior contra os artistas? Em particular, por que a Trupe é tão atingida?

Caio M. Pacheco: Eu acho nos últimos 15 anos houveram algumas conquistas. Pressões populares, organizadas, que fizeram com que, dentro dessa política de conciliação, o peso pendesse para poder concretizar algumas pautas históricas de diversos movimentos populares e, dentro deles, da cultura.

E eu acho que uma parcela da sociedade convivia com essa conjuntura política, mas que não aceitava. Não aceitava e também não via bases sociais para poder sustentar o seu discurso retrógrado, o seu discurso conservador. E que a gente sabe que ele é regado por uma ignorância e manipulação de massas muito frequente. E dentro dessas conquistas, a cultura veio promovendo um pensamento que ela não poderia estar operada apenas pela lógica mercantilista, que a cultura precisava construir políticas públicas que sustentassem um pensamento pra além do mundo do mercado. Pensamento condizente com a declaração dos direitos humanos, condizente com nossa própria constituição de cultura como direito. Direito tanto de você ter acesso como de você praticar. Então, cultura, dentro do campo das artes… E que isso, obviamente influencia nosso parâmetro cultural dentro de um pensamento muito maior. Essas conquistas estavam muito aquém da pauta histórica, muito aquém. Mas já eram um sinal de mudança de paradigma. Que inclusive fez com que fosse possível grupos como a Trupe, que não estão dentro das capitais, se articularem em torno de uma perspectiva de um trabalho profissional e contínuo de pesquisa. Essa parcela, mais conservadora da sociedade, em que uma grande parte dela nem sempre tem uma crítica substancialmente formulada e sim opera dentro do ódio manipulado, nessa conjuntura política depois do golpe, depois dessa série de perdas de direitos ser motivada por um…, de uma maneira organizada, por instituições da direita como MBL, que querem fazer essa disputa da narrativa, ou seja, construir uma pauta que seja discutida pela sociedade, que tenha um interesse político específico. E que obedeça à conjuntura do momento desse projeto de direita que está sendo defendido no Brasil, então nesse momento onde no Senado, na Câmara dos Deputados, onde estão acontecendo tantas questões de perda de direitos, uma discussão sobre essa subjetividade, a liberdade artística, cai muito porque ela pressupõe um nacionalismo, moralismo, pressupõe uma entrega de uma parte da população de uma maneira muito visceral, tanto da direita como da esquerda.

Então é um grande artifício, porque essa discussão não está sendo feita de uma maneira contundente, de uma maneira progressista, ela está sendo feita dentro da paleta do ódio. E eu acho que quando você fala em específico com a Trupe, não é só a Trupe, acho que os grupos artísticos e os artistas que estavam vindo dentro de uma construção de buscar intuitos artísticos pra além do mercado, discutindo questões sociais, discutindo o pensamento, o mundo, dentro de um plano mais de choque de ideias e de quebra de tabus, esses caras, assim como a Trupe, esses caras perdem um espaço logo quando essa conjuntura política muda. Então esses caras não são mais interessantes porque é uma discussão que precisa ser varrida pra debaixo do tapete neste momento de efervescência. E as instituições fazem esse papel. Mas acho que é importantíssimo pra nós, no campo das artes, ler este momento e saber que, diferentemente do momento anterior, o momento de algumas conquistas, mas também de uma certa passividade natural, ou seja, pouca coisa era feita que tinha uma reverberação de discussão, dentro do campo das artes. Porque a conciliação, ela pressupõe esse lugar. Agora, quando a gente está num momento de intensa luta de classes, onde o lado do opressor está largamente dando passos, eu acho que a arte, por ter essa força subjetiva, da discussão, por ter essa materialidade da ação, ela tem o potencial de jogar discussões na sociedade. Então, é um paradoxo, menos condições com mais potencial.

Vinícius Camargo: Havia tanta repressão à Trupe antes deste espetáculo? Há outros casos a citar?

Caio M. Pacheco: Essa pergunta, se havia tanta repressão antes desse espetáculo, à “Blitz”, eu acho que a repressão que existia até então, que a gente já tinha enfrentado, era a respeito do espaço público. Que é uma outra questão que também hoje está em voga. Aqui em Santos, por exemplo, existe um decreto em vigor, há pouco tempo, que restringe o uso do espaço público de uma maneira muito visceral, burocrática, te impede a livre realização de eventos no espaço público. Então acho que essa questão do espaço público, que a gente estava envolvido diretamente, sempre gerou uma certa repressão. A gente tem na nossa história um caso de repressão, que foi muito parecido lá em 2003. Uma apresentação no Boulevard, no Gonzaga, a gente foi cercado por cerca de quatro, cinco viaturas da guarda municipal, que interromperam a peça e ameaçaram, apreenderam o cenário todo da peça “Pra lá de Bagdá” e levaram a gente para a delegacia, porque era proibido fazer sem autorização, e isso só não foi concretizado porque na época o próprio público interveio de uma maneira muito contundente. A guarda municipal não tinha tanto poder institucional como tem hoje e aí eles tiveram que recuar. Mas, em outras cidades, também, a gente foi praticamente impedido de apresentar por não ter autorização. Então, essa discussão sobre autorização, sobre a disputa do espaço público, ela estava presente nos últimos dez anos e foi partindo dessa discussão que se criou a Rede Brasileira de Teatro de Rua, ou seja, uma rede de pessoas que fazem teatro de rua, que estava trocando, basicamente, essa informação, planejando estratégias para lutar contra esse empecilho. E a gente estava caminhando, acho que estava caminhando, dentro dessa disputa, o campo das artes estava caminhando para poder ter uma liberdade legitimada de fazer algo no espaço público, se apoiando na constituição. Mas, também, de um ano e meio para cá, a quantidade de cidades que estão fazendo legislações municipais proibindo é algo absurdo. No Estado de São Paulo, as grandes cidades praticamente todas já fizeram algum tipo de legislação que proíbe ou restringe a arte na rua. Ribeirão Preto, São José dos Campos, parte de Campinas, Santos, se não me engano, Sorocaba, tiveram episódios também, de repressões organizadas pelo poder público municipal. São Paulo também teve que criar uma lei específica do artista de rua, com uma série de restrições. Então, é… a repressão contra essa arte que não se enquadra dentro do esquema mercadológico, ela existe sempre que você faz o enfrentamento à lógica mercantilista e não faz a lógica de olhar o espaço público como um espaço feito pra circulação do capital, não para o encontro de pessoas, não no sentido da ágora, do espaço político.

Vinícius Camargo: Como foi o processo de produção do espetáculo? Antes disso, como veio a ideia de construí-lo?

 Caio M. Pacheco: Dentro da Trupe, os temas ficam burilando durante algum tempo. Quase todos os nossos espetáculos, dos nove, os temas surgiram alguns anos antes. Esse tema, ele surge num bojo que para a gente foi muito norteador de um critério de escolha de produção. Que foi a Iná Camargo da Costa, na ocupação da FUNARTE, acho que em 2009. Ela deu uma palestra que terminava falando o seguinte: nós perdemos um lugar na sociedade, nós de teatro, nós não vamos nunca ter a abrangência da televisão, nunca vamos ter o apuro técnico do cinema, não somos uma indústria, mas temos uma coisa que essas áreas mais, essas áreas que tem relação mais próxima com o mercado, não tem: nós temos a liberdade. Nós temos a possibilidade de discutir temas de uma maneira radical que outras esferas no campo da representação não podem fazer.

E falou que daria pra contar nos dedos de uma mão questões tabus que só o teatro poderia fazer e, dentre elas, ela falou sobre a segurança pública e o papel da polícia, sobre democracia e sobre outras coisas… Nessa mesma palestra, nessa mesma ocupação da FUNARTE, a gente conheceu a Débora, das Mães de Maio, que foi lá dar uma palestra, e foi chocante você ver a luta das Mães de Maio. Você começar a ter contato. Desde então, a gente fez uma série de atividades com elas, mesmo antes de começar a pensar nosso espetáculo. Mas sempre que a gente conversava no coletivo, esse era um tema muito presente, e a gente percebeu que nos últimos quatro, cinco espetáculos nossos, de alguma maneira a gente abordava o tema da polícia, beirando, assim, sabe, tanto o tema da polícia como também o tema da grande mídia. Isso estava sempre presente, de alguma maneira, nos outros espetáculos. Então a gente decidiu se dedicar a um espetáculo que falasse como a mídia legitima a violência do Estado e como a violência do Estado é classista.

O processo foi bem difícil, porque é um tema muito espinhoso. É um tema que te coloca politicamente sempre num meio termo, porque [significa] você pautar uma discussão sobre o racismo, sobre o machismo de uma instituição, sobre uma violência que vem historicamente herdada desde a fundação da própria polícia, ou seja, desde a fundação do Brasil, as guardas nacionais. Então isso realmente levou a gente a um processo bem confuso de investigação, onde a estética, realmente, a estética que permeia o espetáculo foi, talvez, uma das últimas coisas que vieram a aparecer. Nesse processo, também, a gente experimentou uma coisa que pra gente foi muito bacana, que foi logo no início, na segunda fase, depois de alguns meses de tentativas de abordagem. A gente produziu uma intervenção e aí, durante o resto do processo, durante o outro um ano e meio que a gente levou montando essa intervenção, foi apresentando e foi testando algumas questões que a gente queria abordar nesse espetáculo. Isso deu um norte, assim, um caminho, porque houve uma interlocução o tempo inteiro com o público para a construção do espetáculo. Então o tom sarcástico, o olhar fetichista pela violência, tudo isso foi sendo testado em interlocução direta com o público durante o processo de construção do espetáculo. E, mesmo depois da estreia, eu acho que a gente ficou mais um ano e meio mexendo constantemente no espetáculo, com ensaios semanais onde a gente sempre estava revendo alguma cena, cortando ou aumentando, mexendo, trocando coisas, para que ele fosse mais potente. Um espetáculo que estreou com quase três horas de duração, hoje ele está com uma hora e dezoito, então acho que a gente conseguiu nesse processo o poder de síntese, ele foi se aprimorando.

Vinícius Camargo: Que limites você vê na atuação política através da obra artista?

Caio M. Pacheco: Agora, uma pergunta bem espinhosa. O limite da atuação artística, como eu vejo a atuação política através da obra artística. Que limites você vê na atuação política através da obra artística?

Bom, eu demorei um pouco para responder essas questões, porque eu fiquei lendo elas diariamente para ir pensando nelas de uma maneira mais contínua. E sabendo que tinha questões muito espinhosas. Essa é uma questão muito espinhosa ao meu ver. Porque dentro dessa disputa do campo simbólico existem alguns aspectos subjetivos que fazem, por vezes, a gente não ter uma visão muito clara do todo sem ter um distanciamento histórico. Mas, eu acho que, primeiro, o nosso histórico, enquanto movimento de “classe”, estava muito desarticulado na década de 80 e 90, e isso fez com que a gente interrompesse um ciclo de organização da classe trabalhadora do campo das artes, como fruto da ditadura. Isso demora um pouco para reagrupar, demora um pouco para poder estabelecer um certo programa único. E eu acho que a gente nem conseguiu chegar nisso nos anos que a gente viveu uma efervescência na construção de uma pauta classista para o campo das artes. Mas houveram ganhos que estabeleceram outros parâmetros que podiam apontar para um papel do campo artístico mais significativo na sociedade, que não fosse tão a serviço da burguesia buscando uma lógica de mercado. Infelizmente, eu acho que a gente não chegou no auge, no apogeu do que poderia ser isso, para poder ter uma dimensão clara da utopia que é pensar a classe artística, o campo artístico atuando na política e na construção social de uma maneira mais pungente, ou seja,  nas relações dos pequenos territórios com as decisões políticas, a maneira de se organizar, como referência histórica e humanística de sociedade. Mas eu acho fundamental que haja uma proximidade entre a “classe” artística e outras classes de trabalhadores organizados, que, sim, já tem um outro histórico de organização muito mais concreto que é a dos sindicatos, para que a gente possa, de certa maneira, ter uma influência. O limite disso tudo é o capital. Uma grande parcela do mundo artístico não entende, não tem uma leitura sobre o sistema do capital, se afasta das referências postas históricas, dos grades pensadores, não participa da luta concreta, do dia a dia, não está nesse campo da construção coletiva e eu acho que é uma realidade, o limite é o momento em que a gente vive, essa conjuntura e aonde está o capital. Acho que como bons utópicos cabe à gente construir no dia a dia as condições para que tenhamos cada vez mais possibilidades materiais e concretas para poder construir esse novo paradigma, onde a arte possa ter uma preponderância na construção do homem.

Vinícius Camargo: Como enxerga o papel do artista na luta de classes? Na sua atividade artística e para além dela. Como um ativista na luta de classes, qual a saída que você enxerga para a classe trabalhadora na atual situação?

Caio M. Pacheco: Olha, eu acho que é muito difícil para a “classe” artística se enxergar como classe trabalhadora, porque a gente não conseguiu atingir nem o status mínimo que a classe trabalhadora em geral atingiu. A classe trabalhadora, em geral, conseguiu uma série de conquistas de direitos que davam o mínimo de condições para você se reconhecer como classe na sociedade.  Nós, artistas, que estamos aí divididos entre a ilusão do mundo do mercado e a realidade, em geral, dentro da nossa subjetividade, a gente quase se aproxima mais ao lumpen[proletariado] moderno, né? Aquele cara que o Milton Santos diz que não tem nada a perder porque nunca teve nada. Então, são pessoas que a precarização do trabalho chega a um tal ponto que não enxerga a perspectiva de organização. E isso distancia muito a classe artística da classe trabalhadora. Ainda mais da classe trabalhadora organizada, em torno de sindicatos, que enfrentam questões de peleguice, mas que tem fundamentos. Então, é difícil fazer um juízo de valor sobre a classe trabalhadora como um todo, sendo que eu mesmo pertenço à classe trabalhadora de uma maneira quase subjetiva, dentro deste mundo material que a gente vive e do sistema vigente. Mas, sem querer ser pessimista, ainda estamos vivendo um momento que se apontam muitas perdas de direitos e que eu acredito que, para haver um levante em massa, vai precisar sangrar muito ainda, porque a gente também, num outro raio de … (pausa)… o que está mais evidente para todo mundo é que a gente não conta com sistema de comunicação democrático, as mídias que operam para a grande massa. Elas têm uma unidade política muito fechada entre elas, não existe uma dicotomia de posições, uma disputa de opiniões, o que existe é um grande pacto para poder manter a ordem vigente. Então, para o povo como um todo poder enxergar um caminho político, uma saída política, vai demorar, ao menos que estoure uma grande revolta e a grande revolta nos leva para um caminho que eu acredito que talvez seja o necessário. Mas ele não tem muito como ser previsto, como aconteceram com as revoltas árabes há pouco tempo, como acontece nesses ciclos políticos que a gente estuda, onde as revoltas… elas sempre contam com um segundo momento, quando a real força de organização por trás da revolta aparece. Então acho que as organizações, as organizações de esquerda como um todo, precisam intensificar o seu trabalho de base. É um discurso bem batido, que é de alguma maneira estar aberto ao diálogo com a sociedade, aquela parcela da sociedade que está procurando uma resposta. Eu acho que é esse o caminho, estar disposto a dialogar, a ouvir, e a transformar as velhas respostas em questões mais contemporâneas que estejam ainda de certa maneira abertas à discussão coletiva.

* Vinícius Camargo, músico, ator e arquiteto, militante da Esquerda Marxista.