A questão da moradia e algumas lições a partir da Ocupação Vila Soma

O significado e as perspectivas de luta das famílias da Ocupação Vila Soma após a vitória (parcial, mas fundamental), com a paradigmática decisão do STF que determinou a suspensão da reintegração de posse de 17/01/2016, que provocaria, como alertado, uma enorme tragédia e um verdadeiro caos social. 

O significado e as perspectivas de luta das famílias da Ocupação Vila Soma após a vitória (parcial, mas fundamental), com a paradigmática decisão do STF que determinou a suspensão da reintegração de posse de 17/01/2016, que provocaria, como alertado, uma enorme tragédia e um verdadeiro caos social. 

Histórico

A Ocupação Vila Soma é uma ocupação em Sumaré/SP (100 km de São Paulo), que abriga 2,5 mil famílias, ou seja, aproximadamente 10 mil pessoas. Atualmente a ocupação está ameaçada por uma ordem de reintegração de posse do terreno que seria cumprida no dia 17 de janeiro de 2016, mas foi suspensa por decisão do Supremo Tribunal Federal, na noite do dia 13 de janeiro de 2016, como veremos abaixo. Trata-se da maior ocupação de moradia do estado de São Paulo, bem como é considerado o caso mais complexo de conflito urbanístico desde 2012, quando houve a criminosa reintegração de posse na comunidade “Pinheirinho”, em São José dos Campos/SP.

A Ocupação Vila Soma significa para milhares de trabalhadores o acesso à moradia, mas também se transformado, dialeticamente, em um movimento mais amplo de conscientização das lutas sociais. A situação destas famílias não é isolada, pois, ao contrário, grande parte da população, não possui casa própria, onde muitos têm que viver de favor ou deixando de comer para ter que pagar um aluguel exorbitante, vítimas da especulação imobiliária, da cidade como mercadoria a serviço dos interesses do capital.

Segundo o Plano de habitação do município, Sumaré possuía em 2010, 5.833 domicílios precários, outras 2.554 famílias em situação de ônus excessivo de aluguel, e outras 3.500 em situação de coabitação. Em uma conta rápida, o déficit habitacional ficaria estimado em 12.000 unidades, demanda equivalente a 20% da população sumareense. Mesmo com a entrega das mais de 5.000 unidades habitacionais nos últimos cinco anos em Sumaré, a demanda permaneceu crescente, sobretudo nas regiões metropolitanas, já que o Minha Casa Minha Vida incidiu diretamente sobre o aumento exponencial dos preços dos imóveis e das terras, uma vez que nenhum mecanismo para controle do mercado imobiliário foi previsto na concepção do programa. 

A variação do preço de compra e venda do imóvel em São Paulo, entre 2008 e 2015 foi de 220% (FIPE ZAP 2015), enquanto a variação da inflação foi, no mesmo período, de 51,5% (IPCA 2015). Para o aluguel de imóveis a realidade é semelhante, o aumento absoluto do valor no período é de pelo menos 48% acima da inflação. Hoje, é seguro portanto afirmar que nas regiões metropolitanas, uma família com renda mensal de até 3 salários mínimos, encontrará grande dificuldade para comprar ou alugar uma casa adequada, fora dos programas públicos que atualmente constroem casas de péssima qualidade em terrenos cada vez mais longínquos. 

A Ocupação Vila Soma, mediante sua organização política, fortalecendo seu trabalho interno, como lideranças de ruas e quadras, e o trabalho externo, com apoio de várias organizações, dentre elas a Esquerda Marxista, há dois anos e meio conseguiu caracterizar o conflito “jurídico” em uma questão de ordem pública, mostrando que não se tratava de uma “simples” reintegração de posse, mas que se tratava de uma questão urbanística, de uma política habitacional e que expressa um confronto de classe, escancarando as contradições do próprio Estado.

Uma das estratégias utilizadas foi garantir, mesmo que com uma decisão judicial transitada em julgada (sem mais poder recorrer), que “se as famílias deveriam ser despejadas, também era verdade que a decisão judicial determinava sua realocação através dos programas habitacionais”, dentre os quais, a construção de unidades habitacionais dentro do programa do governo federal, chamado “Minha Casa, Minha Vida, na modalidade entidades”.

Pelas dificuldades processuais, e pelas intransigências impostas pelos governos para buscar a regularização da área atualmente ocupada, as famílias tiveram que se apegar a tal programa, mesmo sabendo das contradições e limitações do mesmo. Apesar de todos seus problemas, objetivamente, o direito à moradia seria garantido. Cabe esclarecer que, atualmente, já está bastante avançado esse caminho com o governo federal e estadual, via Caixa Econômica Federal, com a realocação por meio de um projeto habitacional que contemplaria os moradores da ocupação em outro terreno de Sumaré, considerando a contratação do empreendimento por portaria governamental, destinando mais de 100 milhões de reais para a construção das moradias.

Apesar dos avanços, infelizmente o trâmite é bastante burocrático e demorado, fazendo com que todos, especialmente as famílias, fiquem reféns do ritmo procedimental, dos laudos técnicos, da construtora e dos tramites governamentais. Vítimas da sociedade vigente e do ritmo da solução indicada, as famílias não podem ser despejadas sem ter a garantia da moradia. Por isso, a insistência de que não se pode admitir o cumprimento de reintegração de posse, tendo em vista que a pergunta mais óbvia permanece presente: Para onde vão as famílias?

Neste contexto, em luta pelo direito à moradia, os moradores da Vila Soma, após inúmeras assembleias e atos públicos, conseguiriam levar o caso, no inicio de 2015, ao Grupo de Apoio às Ordens de Reintegração de Posse (GAORP), grupo do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), criado após o massacre do Pinheirinho, com o objetivo de evitar novas tragédias. Os encaminhamentos adotados pelo GAORP foram unânimes visando uma solução pacífica e consensual.  Apesar de todos os esforços republicanos, a Prefeitura de Sumaré lamentavelmente se retirou das negociações e hoje se posiciona contra a construção das habitações para atendimento da demanda da Vila Soma, que já tem financiamento assegurado e apoiado pelos governos federal e estadual, com anuência da Caixa e do Ministério das Cidades. 

Nesse sentido, interessante verificar que, juridicamente, a questão se expressa com bastante complexidade, num cenário dividido entre duas decisões judiciais: uma, no âmbito privado, mandava cumprir a reintegração; outra, na esfera pública, aponta para a suspensão. A Polícia Militar argumenta que apenas cumpre a ordem judicial. Com decisões antagônicas, com evidente relação entre elas, se torna dúbio qual delas deve prevalecer. Afinal, qual decisão ela cumprirá? Se cumprir a primeira, perde-se o objeto da segunda. 

Some-se a essas considerações, há ainda um terceiro processo, a Ação Civil Pública, ajuizada pelo Núcleo de Habitação da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e que ainda não tem julgamento, por ser recente, onde se requer a suspensão de qualquer ordem de desocupação enquanto não tiver garantidas condições de moradia provisória, indicando, inclusive, a alternativa do auxilio moradia, considerando sua obrigação legal. 

Sempre devemos ressaltar que, no caso da comunidade do Pinheirinho, em 2012, o Judiciário brasileiro foi denunciado na OEA, tamanha as ilegalidades cometidas. Agora, novamente! A Corte Interamericana de Direitos Humanos foi acionada pelas famílias da Ocupação Vila Soma, por petição da Defensoria Pública em dezembro de 2015. Ou seja, antes da tragédia, e não depois, como no Pinheirinho. Isso tudo somente reforça desfecho ainda mais absurdo! O Estado Brasileiro não pode ignorar esta situação!

A decisão do STF

As famílias da Ocupação Soma comemoram o resultado de sua mobilização e luta, exposto através da decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Ricardo Lewandowski, que na noite do dia 13 de janeiro decidiu pela suspensão da ordem de reintegração de posse que estava marcada para se iniciar no domingo, dia 17 (Veja a decisão : https://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp).

 No texto, o presidente da Suprema Corte entende que o cumprimento da operação sem a definição de realocação das famílias “poderá catalisar conflitos latentes, ensejando violações aos direitos fundamentais daqueles atingidos por ela”. O ministro entende que uma reintegração desse porte, propalada como uma das maiores operações da história do Estado de São Paulo, possui alta probabilidade de causar “lesão a diversos direitos humanos das cerca de dez mil pessoas que vivem no local, como o direito à vida, à integridade física, à propriedade e outros direitos sociais, dentre eles o direito à moradia, pois não houve até o momento efetiva comprovação dos meios para o cumprimento da reintegração nem indicação de como será realizado o reassentamento das famílias”.

O Ministro prossegue ainda dizendo que as ordens de desocupação no Brasil seguem a lógica do desrespeito aos direitos humanos das pessoas removidas, e lembra o caso do Pinheirinho, em São José dos Campos, como exemplo emblemático desse truculento modus operandi no histórico das reintegrações. A decisão do STF parece óbvia e deveria ser acatada há tempos pelos Juízes de 1ª e 2ª instância, considerando que ela vai ao encontro de toda argumentação exaustivamente utilizada pela Ocupação Soma – de que o uso da força policial para resolver o conflito fundiário era a mais equivocada das alternativas, sobretudo em um cenário onde as tratativas estão avançadas para se chegar a uma definição negociada, pacífica e consensual entre os atores institucionais envolvidos.

A relação entre os casos é bastante evidente. Ambos os terrenos ocupados, no Pinheirinho e na Vila Soma, tem históricos semelhantes: eram propriedades de massas falidas, estavam abandonados à décadas e possuíam exorbitantes dividas junto às fazendas federal, estadual e municipal. É evidente que nenhum dos dois terrenos cumpriam sua função social. Apesar disso, o judiciário brasileiro parece insistir em privilegiar – nestes e em muitos outros casos quase cotidianos de reintegrações – o direito à propriedade privada em detrimento do direito à moradia.      

Assim, apesar da histórica decisão, trazendo um novo paradigma para casos de reintegração de posse no Brasil, e que traz alívio e conforto para as famílias neste primeiro momento, pois se refere apenas à “suspensão” (e não extinção, em si) da ordem de cumprimento da ordem de reintegração, sabemos que a luta continuará para evitar uma tragédia social, buscando garantir moradia para as 2,5 famílias. Se é verdade que a decisão é fundamental e brilhante, também é verdade que ela não garante efetividade ao direito à moradia, muito menos é discutido o conflito entre a propriedade privada e o direito à moradia.

Por tudo isso, é evidente que a ocupação das propriedades de terra ociosas e endividadas, que não cumpram sua função social, não podem mais ser tratadas como casos de polícia à favor de interesses privados, m

as sim como uma possibilidade de solução para a questão da moradia. As famílias apresentaram até agora inúmeras alternativas e propostas, todas fundamentadas na legislação visando a garantia dos direitos sociais mais elementares previstos no Estado Democrático de Direito. Resta-nos saber se há, efetivamente, interesse público para uma discussão séria sobre a questão da moradia. A decisão do STF indica isso, ao menos. 

Nesse sentido, a decisão se contrapõe ao que um Juiz, em audiência no Tribunal de Justiça havia afirmado de forma categórica: “Se as famílias da Vila Soma são beneficiadas, isso mostra que este é o caminho a fazer: Invadir (sic) terras. E isso não pode se admitir, pois traz riscos ao Estado de Direito”. Este é o grande medo dos que estão à serviço da manutenção da ordem social vigente. Não podem aceitar que a classe trabalhadora e os setores populares, na luta, conquistem direitos, questionem as contradições desta sociedade. 

Assim, é certo que o embate prosseguirá. Com a grande visibilidade que se teve com a luta das famílias da Ocupação Vila Soma, o exemplo do resultado está muito disputado. Por um lado, querem dar outra “lição”, como no Pinheirinho, de que “invasão” de terras é crime e serão tratados com o braço mais duro do Estado. Por outro, mostrará que uma ocupação de moradia, organizada e com uma perspectiva clara dos passos a serem dados, consegue expor as contradições do Estado e do significado do confronto entre o direito à moradia e à especulação imobiliária.

Próximos passos

Por tudo isso, os moradores da Ocupação Vila Soma enfrentam uma série de desafios na sua luta, associados principalmente aos interesses das elites econômicas, em um ódio de classe 

evidente na política municipal. A Prefeita Cristina Carrara/PSDB não é que tem se omitido; ela tem agido de forma truculenta, mentirosa, ilegal e preconceituosa contra as famílias da ocupação Vila Soma, inclusive negando a prestação de serviços públicos essenciais: não há coleta de lixo nos domicílios, ausência de serviços de água, esgoto e transporte público.

Sabemos, no entanto, que a questão da moradia não é um problema isolado de Sumaré, do Estado de São Paulo ou mesmo do Brasil. O capital é internacional, e assim deve ser a luta. A cidade, no capitalismo, é um conjunto de mercadorias, e as contradições em relação à incapacidade de garantir moradia às famílias trabalhadoras são muito evidentes, ainda mais num país continental como o Brasil, ou quando verificamos a quantidade de alugueis existentes, sem falar dos prédios abandonados e terrenos ociosos. Nesse sentido, a luta de moradia, sob esta perspectiva, assume claramente uma luta 

anticapitalista.

Desta forma, para evitar mais uma brutal repressão contra um movimento social e para garantir que os moradores da Vila Soma tenham o seu direito à moradia respeitado, torna-se necessária um avanço ainda maior da rede de apoio, que fortaleça e dê visibilidade à luta dos moradores da Ocupação Vila Soma, organizando um chamado coletivo para que o governo federal, o governo estadual, o governo municipal e o Judiciário não permitam que esta tragédia ocorra. Não podemos tolerar que novamente a questão da moradia seja trata como uma questão policial.

É verdade que não chegamos até aqui sozinhos, e somos muito gratos por todo apoio conquistado até hoje, da mais notória figura pública aos simples cidadãos, mas o grito agora já não pode mais ser contido. Não temos tempo para esperar, tampouco para temer. Somos parte da classe trabalhadora e popular, e estamos todos no mesmo lado.

Assim, fazemos um chamado para que se somem ao Comitê de Resistência e Apoio à Ocupação Vila Soma, solicitando o apoio de todas as organizações, movimentos, entidades, mandatos, coletivos, etc.!

Pedimos que se manifestem em favor desta importante causa, para que a vitória das famílias da Ocupação Soma seja o triunfo de todos os movimentos por moradia, e que a partir desse histórico de mobilização maciça se construa uma tradição política que privilegie o desenvolvimento de habitações populares. 

Portanto, esperamos que esse movimento iniciado através das pautas e reivindicações mais objetivas da classe trabalhadora e popular, por moradia, para ter onde dormir, efetivamente, continue contribuindo para o avanço da consciência de classe de todas as famílias e apoiadores, seja por compreender os limites da sociedade capitalista e o significado do Estado à serviço dos interesses de manutenção o status quo.

Pela suspensão imediata de qualquer ordem de reintegração de posse!

Moradia, já! Enquanto morar for um direito, ocupar é um dever!

Toda solidariedade às famílias da Ocupação Vila Soma!

*Alexandre Mandl, militante da Esquerda Marxista, é advogado das famílias da Ocupação Vila Soma