A Nigéria nas últimas décadas (Parte 2)

Artigo publicado no jornal Foice&Martelo Especial nº 14, de 03 de setembro de 2020. CONFIRA A EDIÇÃO COMPLETA.

A guerrilha (Boko Haram) e o banditismo

Infelizmente é comum vermos violentos conflitos e até guerras civis eclodirem em contextos semelhantes, uma realidade sangrenta que não deve ser vista como exceção, mas como a verdadeira e crua face assassina do sistema capitalista. A burguesia, embora parasite o trabalho humano e lucre com a miséria, tenta evitar esses conflitos ao máximo. A revolta das massas parte de um sentimento de descontentamento que muitas vezes vira ódio ao sistema e ganha proporções de insurreição, um produto direto do antagonismo inconciliável dos interesses das classes. Contudo, nem sempre essa força tem um direcionamento consciente, podendo definhar pela falta de convencimento quanto à necessidade de derrubar o sistema e tomar os meios de produção ao controle operário.

O APC, partido do atual presidente nigeriano (Buhari), chegou ao poder em 2015 denunciando, de forma oportunista, que os problemas da Nigéria se resumiam à má gestão do PDP. Logo, o rechaço ao PDP nas urnas expressou, de forma distorcida, um repúdio ao próprio sistema. No entanto, a agenda econômica desses partidos em pouca coisa difere. Há de se ressaltar que o candidato rival de Buhari, Atiku Abubakar (PDP), falou abertamente durante a campanha que pretendia vender os recursos petrolíferos da Nigéria, ainda que fosse assassinado por isso. Não há dúvidas de que era exatamente esse o interesse da burguesia. Contudo, Abubakar não obteve o apoio esperado, pois Buhari apresentou a mesma proposta de forma mais velada e “democrática” (lembrando que Buhari é um general da reserva que comandou o país durante o período ditatorial).

Nessa polarização que se arrasta por mais de duas décadas, Omoyele Sowore, um jovem ativista que se apresentou como terceiro campo, levantou bandeiras não necessariamente socialistas, mas de certa forma progressistas ao contexto, como taxação de grandes fortunas e prestações sociais por grandes empresas, ganhando alguma simpatia da juventude. Sowore foi duramente perseguido e chegou a ser preso pelo governo, causando indignação e solidariedade à sua causa.

Porém, embora esta intimidação física, esta grave ofensa às liberdades políticas, deva ser profundamente repudiada, há de se ressaltar que o programa de Sowore flerta com as chamadas Parcerias Público-Privadas (PPP’s), reparos no capitalismo e, não por acaso, recebeu financiamento de ONG’s e fundações “sem fins lucrativos”, como a Fundação Ford. Estas entidades tinham o claro intuito de cooptarem lideranças e trazê-las aos interesses da burguesia (não podemos esquecer do histórico racista da Ford, suas relações com a Ku Klux Klan e com o Partido Nazista, e como ainda hoje lucram com políticas de inclusão).

Essa falta de alternativas e carência de programas revolucionários dão margem a organizações que se aproveitam da radicalidade de uma parte considerável da juventude (em especial a do norte da Nigéria, onde a miséria mais se concentra), com ideologias completamente distorcidas e reacionárias. Um exemplo é o Boko Haram, uma organização extremista e fundamentalista islâmica que culpa o ocidente e o cristianismo pelos problemas sociais do país, promovendo atentados a igrejas, a cristãos, e fazendo uma oposição de guerrilha ao governo Buhari.

É certo que o imperialismo tem um papel fundamental na origem e manutenção desse quadro e esse sentimento pulsa na juventude. No entanto, a falta de um canal que encaminhe esse ódio à luta por uma revolução proletária internacional com grandes manifestações de massas gera uma lacuna, e essa força termina encontrando alguma outra forma de se expressar. O Boko Haram usa dessa lacuna para provocar atentados, assassinatos, roubos e até sequestros de jovens em escolas para vendê-las como escravas, cobrando resgate como forma de se manter financeiramente (Leia mais sobre o Boko Haram em https://www.marxismo.org.br/os-ataques-de-boko-haram-e-as-tarefas-da-classe-trabalhadora-nigeriana-2/).

No entanto, o Boko Haram nada mais é do que expressão de um sistema podre que não consegue produzir outra coisa a não ser morte e terror. Outra expressão nesse sentido é a crescente de violência, com roubos e assassinatos entre os próprios populares (não necessariamente organizados no Boko Haram) como forma de vingança pessoal às medidas dos governos. A CMI registrou o contato com um desses “fora-da-lei”, que denunciou a falta de condições de saúde no norte da Nigéria, a desnutrição, a mortalidade infantil, as medidas arbitrárias de policiais que confiscam mercadorias, prendem e cobram fianças ilegais (entre outros problemas), apontando que esse banditismo é apenas “reflexo de um povo esquecido e desolado, sem futuro” (leia o relato aqui: https://www.marxist.com/nigeria-northwest-banditry-the-product-of-a-rotting-system.htm). São denúncias legítimas, mas essa onda de banditismo termina saqueando e vitimando populares, idosos e crianças, derramando o sangue do próprio povo, da própria classe.

É um cenário que nos arrepia de raiva e indignação. Mas enquanto lemos esses relatos, os partidos que se digladiam em falsa oposição tiram proveito dessa situação. De um lado, o PDP, derrotado nas eleições, segue denunciando o governo por fazer um combate ruim à violência, chegando a acusá-lo de estimular e até financiar esses atentados. Do outro, o APC, que está no poder, tenta legitimar seu discurso pelo endurecimento de leis, por maior repressão e por mais orçamento para segurança, que é completamente desviado e repartido entre os abutres do governo de qualquer jeito, assim como os orçamentos de saúde em plena pandemia.