Foto: Gendarmerie

Sobre o fim da Polícia Militar e o armamento da classe trabalhadora

“O Estado moderno é apenas um comitê que administra os negócios de toda a classe burguesa.” (Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels)

Há 171 anos, no Manifesto Comunista, Marx e Engels já afirmaram que o Estado é o comitê de negócios da burguesia. Difícil justificar que muitos que se dizem socialistas neguem este que é um dos fundamentos do marxismo. É o correto entendimento sobre o papel do Estado e de seus destacamentos armados que permite a compreensão da sociedade e o entendimento de que não é possível reformar nem o Estado capitalista nem sua polícia.

No livro “Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, Engels aprofunda o tema:

“O segundo traço característico do Estado é a instituição de um poder público que já não corresponde diretamente à população e se organiza também como força armada. Esse poder público separado é indispensável, porque a organização espontânea da população em armas se tornou impossível desde que a sociedade se dividiu em classes… Esse poder público existe em todos os Estados. Compreende não só homens armados, como também elementos materiais, prisões e instituições coercivas de toda espécie”.

No Chile, mais de 200 manifestantes sofreram “traumas oculares” depois de terem sido alvejados pela polícia nos olhos / Foto: GUE/NGL

A existência do Estado e de seu braço armado é a principal explicação para que 1% da população consiga controlar a maioria da humanidade. Prova disso é que em todos os grandes levantes do último período no planeta foi utilizada a repressão, com os aparatos de segurança dos Estados. No Chile, Líbano, Equador, Bolívia, França e outros tantos exemplos é possível verificar como o Estado trabalha. Nem precisamos ir tão longe. Quem não lembra do massacre do Centro Cívico em Curitiba, no dia 29 de abril de 2015, quando a PM – a mando do governo do estado – espancou centenas de professores para permitir o confisco da previdência desses trabalhadores? Quem não lembra de como começaram as manifestações de 2013, após a PM espancar uma manifestação de 200 pessoas contra o aumento da passagem em São Paulo e furar o olho de uma jornalista? Certamente, com o povo em armas, esse tipo de covardia não seria possível.

Duas questões centrais fazem com que a política majoritária de boa parte da esquerda brasileira divirja da palavra de ordem “Fim da Polícia Militar” e em apontar a perspectiva da necessidade da autodefesa do proletariado.

1. Como estes “socialistas” que alimentam ilusões pacifistas creem que se dará uma revolução proletária e a expropriação da burguesia para a edificação de uma sociedade socialista?

Lenin escreveu, um pouco antes da Revolução Russa, em 1917, no livro “O Estado e a Revolução”:

“[…] na prática, toda grande revolução põe diante de nós em plena evidência e na escala da ação das massas, ou seja, a questão das relações entre os destacamentos ‘separados’ de homens armados e a ‘organização espontânea da população em armas’”.

No entanto, a via que essa esquerda insiste em defender é a disputa meramente eleitoral do Estado burguês, alimentando a ilusão de que é possível reformá-lo por dentro. Isso, mesmo que esse Estado mate historicamente os trabalhadores, e especialmente pobres e negros, com seus braços armados oficiais, como a polícia, e extraoficiais, por meio da milícia.

O maior desejo de qualquer socialista, sem dúvida, é de que possamos viver em paz, com trabalho, saúde, educação e usufruindo de todas as alegrias que a humanidade merece. O grande problema é que, no capitalismo, esse é um desejo utópico, romântico, que não tem nenhum respaldo na realidade e na história.

É preciso retomar a história e discutir a fundo a forma de organização dos jovens e trabalhadores, sem falsos moralismos e covardias. O Estatuto do Desarmamento, por exemplo, só desarmou o trabalhador, é preciso dizer isso. Hoje, para conseguir o registro e posse de armas é necessário ou muito dinheiro ou um pouco menos de dinheiro aliado a um contato com o crime organizado. Por outro lado, a burguesia está triplamente armada: ela é a única que consegue se armar e, além disso, conta com segurança privada e com a proteção da polícia – que está a seu serviço.

Já o trabalhador, desarmado, não tem nada que o proteja. A polícia não só o mata como não o protege. Além disso, ele também está refém do crime, que cresce em momentos como o que vivemos, de crise do capital.

Um exemplo histórico importante são os Panteras Negras, partido dos EUA, que organizou a autodefesa dos negros, armando-se para combater a violência policial. Eles se utilizaram do direito à autodefesa, uma conquista democrática fruto da revolução americana. Ressalta-se que a burguesia liberal, na sua fase mais progressista, defendia a liberdade de se autodefender. Ou seja, essa não é uma posição restrita aos comunistas nem diz respeito necessariamente ao enfrentamento do sistema. Ter direito a proteger a si próprio e não permitir que o Estado tenha o monopólio sobre o armamento, foram também pautas democráticas e republicanas, ainda que hoje isso seja mascarado.

Retomamos então a pergunta inicial: como os que se dizem socialistas pretendem que o povo trabalhador exproprie o grande capital e tome o poder para construir uma sociedade socialista? Nos parece muito ingênuo, ou mal-intencionado, acreditar que será com conversas amistosas, tentando convencer a burguesia sobre a superioridade do socialismo em relação ao capitalismo. A história prova que uma classe dominante e privilegiada não sai de cena sem tentar contra-atacar com toda a violência, com todas as armas a seu dispor. Vale recordar a Revolução Russa, como o Exército Branco, organizado e financiado por países imperialistas para afogar em sangue a revolução, só pode ser derrotado porque os trabalhadores organizaram o seu exército, o Exército Vermelho. A Comuna de Paris, por outro lado, foi a demonstração do banho de sangue que a burguesia está disposta a realizar para dar o exemplo de que o povo não deve se revoltar.

2. A segunda divergência profunda é sobre a leitura da conjuntura e o que se deve fazer diante dela.

Há uma tese lançada em 2013 pelo PT, e reforçada depois da eleição de Bolsonaro, de que a maior parte da população é reacionária e que o país vive uma “onda conservadora”. Para seus defensores, é preciso camuflar e adequar a política ao conservadorismo da maior parte da população. Essa análise errada leva-os à descrença no poder da classe operária e a preferir armas na mão da polícia ao armamento dos trabalhadores.

Quando a menina Ágatha foi assassinada pela PM, a família se negou a aceitar ajuda do Estado. Claro que essa revolta contra a polícia e o Estado é espontânea e não significa que estamos na véspera da revolução, mas também é evidente que essas pessoas estão cansadas de sofrer e dispostas a lutar pelas suas vidas. O papel que o PSOL deve exercer é justamente o de partido que faz avançar a consciência nesses momentos e que ajuda a explicar como os trabalhadores tomaram o poder na história. Assim, na hora certa, esses milhões de descontentes estarão do nosso lado pela derrubada desse Estado.

É importante ressaltar que a Esquerda Marxista não defende uma organização de militantes armados na atual conjuntura – isso significaria métodos de guerrilha e heroísmo desconectados da classe trabalhadora. Defendemos o direito ao armamento de toda a classe e uma revolução de massas.

A respeito da palavra de ordem de “Fim da PM”, se entendemos que a polícia é a força que o Estado utiliza para coagir a classe trabalhadora em defesa da classe dominante, precisamos exigir seu fim. Não a melhoria, a mudança, a reforma e a individualização dos culpados. Simplesmente “desmilitarizar” a PM não fará com que esta instituição deixe de ser o braço armado do Estado capitalista para garantir a propriedade e o privilégio do 1% contra os 99%.

O problema da polícia não é que alguns profissionais são desqualificados. Assim como, quando combatemos pelo fim da PM, não estamos culpando os que nela trabalham. O que combatemos é a função social dessa instituição. Queremos acabar com a violência instaurada no sistema atual e a única forma para isso é que a classe trabalhadora crie mecanismos para sua autodefesa, obviamente armada.

E como se daria a segurança pública em uma sociedade sem a polícia? Voltemos mais uma vez ao livro “O Estado e Revolução”, de Lenin:

“Não somos utopistas e não negamos, de forma alguma, a possibilidade e a fatalidade de certos excessos individuais, como não negamos a necessidade de reprimir esses excessos. Mas, em primeiro lugar, não há para isso necessidade de um aparelho especial de pressão; o povo armado, por si mesmo, se encarregará dessa tarefa, tão simplesmente, tão facilmente, como uma multidão civilizada, na sociedade atual, aparta uma briga ou se opõe a um estupro. Sabemos, aliás, que a principal causa dos excessos que constituem as infrações às regras da vida social é a exploração das massas, condenadas à miséria, às privações. Uma vez suprimida essa causa principal, os próprios excessos começarão infalivelmente a “definhar” também. Não sabemos com que presteza, nem com que gradação, mas é certo que irão definhando. E o Estado desaparecerá com eles.”

É importante esclarecer ainda que nossas defesas nada têm a ver com a retórica de Bolsonaro sobre o armamento. O fim da PM e o direito ao armamento da população é uma posição histórica da Esquerda Marxista, o que pode ser comprovado em diversos textos publicados ao longo dos anos em nosso site. Fomos ainda a primeira organização de esquerda do país a defender o “Fora Bolsonaro”.

Marcelo Freixo é um bom exemplo do que a falta de um entendimento e posicionamento fundamentado no marxismo e com compromisso de classe pode causar. Uma das figuras mais conhecidas do PSOL, que se elegeu no combate à violência policial, traiu sua base votando a favor do pacote anticrime, que aumenta o poder repressivo do Estado. Quando justificou sua votação, ele afirmou que tinha um compromisso com a Comissão que discutia o projeto, ou seja, um compromisso com o Parlamento e suas amarras e não com o povo.

A luta pelo socialismo precisa ser séria e exige que se conheça o marxismo. A história, as revoltas, as revoluções não se medem pela quantidade de vereadores ou deputados eleitos. Para acertar nas análises é preciso compreender a dialética e a não linearidade na história. Para saber como agir, não bastam boas intenções. “O inferno está cheio delas”, como diz o dito popular.

Também no livro “O Estado e a Revolução”, de Lenin, a perspectiva de sociedade que a Esquerda Marxista defende:

“Quando toda a gente tiver, de fato, aprendido a administrar e administrar realmente, diretamente, a produção social, quando todos procederem de fato ao registro e ao controle dos parasitas, dos filhos-família, dos velhacos e outros ‘guardiões das tradições capitalistas’, então será tão incrivelmente difícil, para não dizer impossível, escapar a esse recenseamento e a esse controle, e toda tentativa nesse sentido provocará, provavelmente, um castigo tão pronto e tão exemplar (pois os operários armados são gente prática e não intelectuais sentimentais, e não gostam que se brinque com eles), que a necessidade de observar as regras simples e fundamentais de toda sociedade humana tornar-se-á muito depressa um hábito.”

É com esse horizonte que a Esquerda Marxista convida todos os seus simpatizantes a aprofundarem esse debate e a juntarem-se a nós.