Foto: Caros Amigos

Por que lutar pelo Fim da Polícia Militar?

No dia 14 de março, a vereadora do PSOL-RJ Marielle Franco e o motorista Anderson Pedro Mathias Gomes são executados. No dia 15, menos de 24 horas depois, as ruas do país estão tomadas por manifestações. Três palavras de ordem dão o tom da situação: “Marielle, presente!”; “Fora Temer!”; e “Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da Polícia Militar!”

Mais de dois meses já se passaram desde o crime. A intervenção no Rio de Janeiro e as ações da polícia continuam a matar jovens pobres e negros nas favelas e bairros populares. Em um único final de semana, a polícia matou oito pessoas na Rocinha e cinco em Maricá. As execuções de Marielle e de Anderson continuam impunes, apesar da repercussão mundial e da indignação popular.

Desde as jornadas de junho de 2013, passando por grandes eventos das massas onde a Polícia Militar atuou contundentemente contra jovens e trabalhadores, mostrando seu verdadeiro papel (greve dos professores de Curitiba em 2015, greve geral do dia 28 de abril de 2017, greve dos professores do RJ, entre tantos outros), a palavra de ordem “Fim da Polícia Militar” tem ganhado força. Ainda quando a maior parte das organizações insistia em não dar o nome correto aos anseios da classe, substituindo a palavra de ordem por “desmilitarização da Polícia Militar”, nós, da Esquerda Marxista, explicávamos que é necessário acabar com a Polícia Militar.

Agora, momento em que está evidente que a crise econômica não era uma marolinha e, por consequência, a desmoralização total dos aparelhos, das instituições do Estado, está exposta, a palavra de ordem toma corpo, ganha as massas e a quantidade se transforma em qualidade. Há um avanço significativo da consciência coletiva e de classe. Ainda assim, muitos militantes honestos se perguntam como isso seria possível. Esses militantes e algumas organizações, não por malevolência, mas sim por estarem presos à ideologia dominante, continuam resistindo à ideia de Fim da Polícia Militar, porque como explicaram Marx e Engels em “A Ideologia Alemã”: “Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes; em outras palavras, a classe que é o poder material dominante numa determinada sociedade é também o poder espiritual dominante.” E, neste caso, a ideia dominante é de que a polícia existe para salvaguardar a população, por isso tanta resistência.

O que acontece, porém, é que a ideologia dominante já não mais se sustenta e o povo oprimido sente na pele o significado real que têm a polícia e todo o aparelho repressor do Estado. Como explicaram Engels e Lenin, a polícia e o exército são destacamentos de homens armados que dispõem de prisões e servem para manter o Estado e suas instituições, garantindo a propriedade dos grandes capitalistas.

É preciso entender que hoje o Estado brasileiro, corroído pela corrupção, pela pobreza crescente da população, pelo desemprego e pelo brutal ataque aos direitos dos trabalhadores, obrigatoriamente, só consegue se manter em pé através da força de repressão e diante da traição dos dirigentes do movimento operário. Os dados da Anistia Internacional não deixam dúvidas do papel das polícias brasileiras que lideram o número geral de homicídios dentre todas as corporações pelo planeta. Em 2016, dos homicídios registrados no Brasil, 15,6% tinham como autor um policial.

Se por um lado os aparatos de Estado aumentam a pressão, por outro, as massas aumentam a indignação e a contestação ao sistema. A luta entre as classes se acirra e todo o aparelho de Estado é contestado. Nesse cenário surge com força um grito de resistência das massas: Fim da Polícia Militar!

Rapidamente, a burguesia tenta se rearticular e desvirtuar as bandeiras levantadas (no caso de Marielle, tenta unir o clamor das massas à ideia de justiça burguesa). Junto com ela, os oportunistas, reformistas e socialistas em palavras, correm para tentar confundir o clamor popular, com medo de que a situação fuja ainda mais do controle. Ao mesmo tempo, o Estado tenta manter as instituições e para isso precisa ampliar a força de repressão. Aceleram medidas que buscam aumentar o investimento em segurança, ou num português objetivo, em repressão, colocando na pauta o “Sistema Único de Segurança Pública”, um engodo para enganar o povo, engabelar os movimentos sociais e criar um fundo único de recursos para a segurança, além de piorar, mesmo nestas instituições falidas, qualquer forma de controle.

É preciso retomar a verdadeira concepção marxista sobre o Estado e ajudar a classe trabalhadora a entender que em sua defesa está apenas ela mesma e por isso é preciso organização.

Lenin afirma em “O Estado e a Revolução” que “O Estado é o produto e a manifestação do antagonismo irreconciliável de classe.”

Portanto, na medida em que aumenta esse antagonismo de classes, mais o Estado precisa das forças de repressão para se manter. É neste ponto que os revolucionários precisam estar seguros que não há forma de conciliação, de arrumar o aparelho de Estado, de arrumar o aparelho repressor. Este Estado, é preciso derrubá-lo e substituí-lo junto com todo seu aparato repressor. Neste ponto, a bandeira Fim da Polícia Militar casa-se com a ideia elaborada por Lenin de organização dos trabalhadores em armas para sua autodefesa. Para entender isso, apenas os exemplos históricos podem nos servir de guia, e exemplos não nos faltam.

Em 1871, quando os trabalhadores pela primeira vez assumem o poder na França, na Comuna de Paris, os decretos da Comuna deixam claro o que significa e como acontece em períodos revolucionários a dissolução da polícia:

“Artigo VII. A Comuna proclama a anistia geral e a abolição da pena de morte e declara que a sua ação se baseia nos seguintes princípios: dissolução da polícia municipal, dita polícia parisiense; dissolução dos tribunais e tribunais superiores; transformação do Palácio da Justiça, situado no centro da cidade, num vasto recinto de atração e de divertimento para crianças de todas as idades; em cada bairro de Paris é criada uma milícia popular composta por todos os cidadãos, homens e mulheres, de idade superior a 15 anos e inferior a 60 anos, que habitem o bairro; são abolidos todos os casos de delitos de opinião, de imprensa e as diversas formas de censura: política, moral, religiosa etc; Paris é proclamada terra de asilo e aberta a todos os revolucionários estrangeiros, expulsos [de suas terras] pelas suas ideias e ações.”

Assim, a classe rapidamente resolve sua autodefesa. Muitas vezes uma dificuldade aos burocratas de plantão, mas simples para a classe.

Para além de exemplos históricos, para muitos incomoda a ideia de que quando se fala de Fim da Polícia Militar se está falando de muitos trabalhadores que, no meio de uma estrutura podre, são cidadãos honestos e estão juntos na defesa dos direitos. Aqui, é preciso ter convicção de que não estamos falando de indivíduos, não estamos falando de um policial ou de um soldado, em especial, estamos falando da estrutura e de quem manda nessa estrutura.

Mais que isso, nada está descartado e definitivamente a classe sabe construir seus instrumentos, sabe pôr abaixo as estruturas que não mais a representam e garantir que permaneçam consigo todos aqueles honestos trabalhadores que se reconhecem na classe e ao lado dela permanecem. Exemplo disso foram os policiais que se dispersaram do Choque no Rio de Janeiro durante a tentativa de ocupação da ALERJ – Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Eles foram ovacionados pelos manifestantes e presos pela PM logo em seguida.

Ou o que vimos na maior greve geral da história, na França de 1968. O jornal The Times entrevistou na época os soldados franceses, a grande maioria filhos de trabalhadores que cumpria o serviço militar obrigatório. Um dos entrevistados respondeu, quando perguntado se abriria fogo contra os trabalhadores: “Nunca! Acho que seus métodos (dos trabalhadores) podem ser um tanto duros, mas sou filho de um trabalhador.” Na polícia, nas forças armadas e na marinha havia um clima de efervescência que ecoava do movimento de massas dos trabalhadores e dos jovens. O editorial do jornal evidencia isso:

“… Tampouco a polícia esteve muito impressionada com o comportamento do governo desde que começaram os distúrbios. ‘Estão aterrorizados em perder nosso apoio’ disse um homem.

“Tal descontentamento é uma das razões da aparente inatividade da polícia de Paris nestes últimos dias. Na semana passada, homens de diferentes departamentos locais negaram-se a sair dos cruzamentos e praças da capital” (The Times; 31/5/1968)

Mais impactante é um panfleto publicado por membros da infantaria:

“Os trabalhadores e os jovens precisam saber que os soldados do contingente NUNCA DISPARARÃO CONTRA OS TRABALHADORES. Nós dos Comitês de Ação nos opomos a todo custo que os soldados cerquem as fábricas.”

“Amanhã ou depois de amanhã esperam que cerquemos uma fábrica de armamentos, cujos trezentos trabalhadores querem-na ocupar. CONFRATERNIZAREMOS!”

Se entendemos a função das polícias e do exército, sabemos que choques dolorosos e profundos com esses aparatos são inevitáveis. Mas a confraternização entre os soldados e manifestantes depende da determinação muito firme da luta dos trabalhadores. Só quando os soldados percebem que nossa luta é por tudo ou nada, abandonam suas armas. Em 1917, na Rússia, o regimento Volinsky era, no início do ano, um dos mais repressivos e violentos, para no final do ano ser um dos mais disciplinados regimentos revolucionários. Se a revolução tivesse fracassado, ele teria voltado a ser o que era, um braço da repressão.

Trotsky explica em diversos textos a necessidade de organização neste formato:

“OS PIQUETES DE GREVE são as células fundamentais do exército do proletariado. É de lá que é necessário partir. Por ocasião de cada greve e de cada manifestação de rua, é necessário propagar a ideia da necessidade da criação de DESTACAMENTOS OPERÁRIOS DE AUTODEFESA. É necessário inscrever esta palavra-de-ordem no programa da ala revolucionária dos sindicatos. É necessário formar os destacamentos de autodefesa em todo lugar onde for possível, a começar pelas organizações de jovens, e conduzi-los ao manejo das armas. A nova onda do movimento de massas deve servir não somente para aumentar o número desses destacamentos, mas ainda para unificá-los por bairros, cidades, regiões. É necessário lançar a palavra-de-ordem de MILÍCIA OPERÁRIA como a única garantia séria para inviolabilidade das organizações, reuniões e imprensa operárias. É somente graças a um trabalho sistemático, constante, infatigável e corajoso na agitação e propaganda, sempre em relação com a experiência das próprias massas, que se podem extirpar de sua consciência as tradições de docilidade e passividade; educar destacamentos de combatentes heroicos, capazes de dar exemplo a todos os trabalhadores; infligir uma série de  derrotas táticas aos bandos da contrarrevolução; aumentar a confiança em si mesmos dos explorados e oprimidos; desacreditar o fascismo aos olhos da pequena burguesia e abrir o caminho da conquista do poder pelo proletariado. Engels definia o Estado como “destacamento de pessoas armadas”. O ARMAMENTO DO PROLETARIADO é o elemento constituinte indispensável de sua luta emancipadora. Quando o proletariado o quiser, encontrará os caminhos e os meios de armar-se. A direção, também neste domínio, incumbe, naturalmente, às seções da IV Internacional”. (Os piquetes de greve, os destacamentos de combate, a milícia operária, o armamento do proletariado – Programa de Transição da IV Internacional).”

Quando os soldados, um batalhão ou um regimento, quebra a hierarquia e volta suas armas contra os oficiais ou contra o Estado burguês, o que se tem é o embrião de um exército revolucionário. Quando soldados, ou policiais, decidem em assembleia manifestar-se contra o governo, armados e organizados sob direção de um sindicato, eles não são um batalhão ou um regimento, mas outra coisa: uma milícia armada. E esta continua a ser a única orientação revolucionária em nossos tempos: armamento geral do povo e organizações operárias armadas de autodefesa.

“Não acabou, tem que acabar, eu quero o Fim da Polícia Militar!”