Tomaz Silva, Agência Brasil

O marxismo e a questão trans

O Brasil é o país que mais mata pessoas transexuais e travestis no mundo. No ano de 2020 houve um aumento no número de casos, sendo o maior dos últimos quatro anos. Foram 175 pessoas trans – travestis e mulheres transexuais – assassinadas no Brasil. Segundo relatório da Antra1, não foram encontradas informações relacionadas a assassinatos de homens trans em 2020. Mesmo sendo um ano de pandemia, no qual todas as trabalhadoras deveriam ter direito a ficar isoladas em casa, o número de assassinatos de pessoas trans aumentou, principalmente em relação àquelas que trabalham nas ruas e que, como milhares de brasileiras, não tiveram acesso às ineficientes políticas públicas voltadas à garantia da renda e da dignidade dos trabalhadores durante esse período.

É importante destacar a conquista de alguns direitos para as pessoas trans desde 2018 na esfera jurídica. O STF autorizou a adequação do nome nos documentos mesmo sem a realização de procedimentos cirúrgicos e, em 2021, autorizou que mulheres trans e travestis em situação de privação de liberdade possam escolher onde cumprem suas penas – se em presídios femininos ou masculinos. Essa decisão vem ao encontro de uma demanda dessa população, que sofre violência nesses espaços, tanto por agentes públicos quanto por outros detentos, uma vez que são mulheres presas ao lado de homens. Pode-se também, a partir dessa decisão, reivindicar os cuidados à saúde necessários para essa população, como os tratamentos hormonais.

Outro aspecto que deve ser considerado diz respeito à decisão da OMS de retirar os chamados transtornos de identidade de gênero da lista de doenças mentais. Com a mudança realizada no CID 11, que entra em vigor em 2022, passa-se a considerar o uso do termo incongruência de gênero, inserido no capítulo voltado à saúde sexual. A decisão da OMS pauta-se no entendimento de que a incongruência de gênero não se trata de um transtorno mental, mas que exige cuidados de saúde específicos para esse grupo. Um dos objetivos dessa mudança, segundo a OMS, é combater a discriminação e ampliar o acesso das pessoas trans aos serviços de saúde.

Desde 2018, o Conselho Federal de Psicologia tem orientado que a atuação profissional em relação às pessoas transexuais não seja realizada pelo viés da patologização, mas sim considerando as diversas possibilidades de vivência em relação ao gênero, que divergem daquelas que são hegemônicas em nossa sociedade.

E como nós, marxistas, compreendemos essa questão?

Não é demais relembrar que, como marxistas, compreendemos o papel do Estado e suas instituições na manutenção do sistema capitalista e dos seus interesses em dividir e oprimir a classe trabalhadora. Portanto, não confiamos na burguesia, na sua justiça e em suas instituições. Mesmo diante da brutalidade da pandemia da Covid-19 em todo o mundo, pudemos perceber de que forma os países imperialistas e suas burguesias lidaram com o problema da saúde pública e das vacinas. Como a OMS, por exemplo, apesar do discurso aparentemente progressista e preocupado com os países de economia dominada, nada fez – nem fará – para questionar o modo de produção capitalista, deixando que a anarquia que caracteriza a produção e distribuição de mercadorias permaneça condenando milhares de pessoas à morte.

Compreendemos, porém, que toda conquista da classe trabalhadora, por menor que seja, é um avanço, fruto da sua luta, e que deve ser defendida contra os ataques da burguesia, que se acentuam em momentos de crise como o atual. Nesse sentido, os direitos apresentados no início do texto são conquistas para as pessoas trans e devem ser defendidos por toda classe trabalhadora.

Existe um debate, entre diferentes grupos que se designam feministas, em relação aos direitos das pessoas trans. Para alguns grupos o debate inclusive se dá a partir do questionamento do direito dessas pessoas existirem. Alguns afirmam que as mulheres trans não são mulheres, compreendendo a questão a partir de um ponto de vista estritamente biológico. Esses grupos, e em especial das feministas radicais, se referem às mulheres trans como homens que estariam usurpando o corpo feminino e que, por isso, não seriam merecedoras de serem chamadas de mulheres. Para elas, além das mulheres trans tentarem emular as características biológicas das mulheres, estariam reforçando e reproduzindo aspectos do machismo que as feministas radicais afirmam destruir, como a vestimenta, maquiagem e formas de se portar que são comumente atribuídas às mulheres. Para as feministas radicais, as mulheres trans reforçam uma feminilidade artificial que nos aprisiona, tornando-se, portanto, um obstáculo à luta das mulheres.

Cabe destacar que, apesar de se denominarem radicais, esta parte do movimento feminista não busca uma transformação radical da sociedade como nós marxistas entendemos. Uma vez que compreendem que a luta das mulheres – e só de mulheres – deve ser contra o patriarcado, compreendido como um sistema a-histórico e independente das relações sociais de produção, as feministas radicais não acreditam na necessidade da organização das mulheres como classe social junto aos homens trabalhadores, nem nos métodos de luta da nossa classe e, portanto, não têm como objetivo a superação do sistema capitalista, mas sim a aniquilação do patriarcado.

Em outro extremo, estão os grupos que, a partir das teorias pós-estruturalistas, defendem as políticas identitárias e a teoria queer que, de forma idealista e reacionária, abandonaram a perspectiva de transformação radical da sociedade, afirmando que, diante do fim da história, cabe a cada indivíduo resistir, performar, questionar e transgredir os padrões hegemônicos atrelados aos papéis de gênero. Essas teorias vão além de questionar a ideologia que determina as características socialmente esperadas de cada gênero. A teoria queer questiona inclusive se a noção de sexo não seria também elaborada a partir de discursos científicos, a serviço de interesses políticos e sociais, a fim de estabelecer o binarismo homem X mulher como suporte para as expectativas de gêneros. Nesse sentido, caberia aos “transgressores” superar o binarismo homem X mulher.

Como marxistas, analisamos o mundo e seus fenômenos a partir da sua materialidade. Mas isso não significa que reduzimos a vida humana aos seus aspectos biológicos e instintivos, ou que limitamos uma pessoa a esses aspectos. A humanidade, em sua relação com a natureza, desenvolveu as forças produtivas atingindo conquistas extraordinárias. Desconsiderar que somos seres capazes de dominar e transformar a natureza e, com isso, transformar a nós mesmos, é reduzir toda capacidade humana que, aliás, deverá ser plenamente estimulada em uma sociedade comunista. Nos limitarmos à nossa natureza ou biologia é desconsiderar que somos seres sociais.

Portanto, compreendemos que existe uma base biológica que determina uma série de características orgânicas e físicas. E que, ao longo do desenvolvimento das sociedades, essas características foram a base de uma série de processos sociais que culminaram com o desmoronamento do direito materno, fruto da acumulação de riquezas, fazendo com que o homem passasse a ter uma posição mais importante que a da mulher na família. A desigualdade nas relações sociais entre homem e mulher, determinando a sua posição até hoje inferiorizada, caminha, portanto, ao lado do desenvolvimento da sociedade de classes.

Aceitar que existem determinantes biológicos não significa que devemos nos posicionar ao lado daquelas que afirmam que somente são mulheres os indivíduos que nasceram com esse sexo biológico, nem nos torna deterministas. Por isso, também não fazemos nenhuma concessão às teorias pequeno-burguesas que têm sido falsamente indicadas como “complementares” ao marxismo.

As teorias identitárias e queer descartam a centralidade do proletariado e apontam como única solução a resistência individual. Glamorizam a transgressão do binarismo de sexo/gênero como se isso fosse uma simples opção para a maioria das mulheres trans e travestis que sofrem violência cotidianamente em função da sua forma de andar, vestir ou falar. Não apresentam nenhuma perspectiva de luta coletiva, de organização e de superação da raiz de toda violência: a sociedade capitalista.

Assim como as feministas radicais, os grupos que se apoiam nas teorias identitárias e queer não vão além da aparência radical, transgressora ou progressista. Juntamente com outros agrupamentos feministas, esses dois extremos não enxergam a luta de classes como motor da história e a necessidade de mulheres e homens trabalhadores se unirem em luta pelas suas reivindicações imediatas e históricas com vistas à destruição do sistema capitalista.

Como marxistas, devemos lutar lado a lado com todas as trabalhadoras e trabalhadores, partindo de suas reivindicações mais imediatas com vistas à construção de reivindicações transitórias ao socialismo. Devemos nos posicionar contrariamente a qualquer tentativa de ataque às pessoas trans, à exploração da ignorância por parte de governos reacionários e ao apelo que têm feito, em diversos países, aos setores mais atrasados da classe trabalhadora.

Na sociedade em que vivemos, fundada sobre a exploração capitalista, devemos lutar pelo direito ao trabalho, reivindicando uma existência digna para todos. Os arautos do capitalismo insistem em afirmar – ainda mais nesse período de pandemia – a impossibilidade de atender a essa reivindicação. Mas para nós, trabalhadoras, é imperioso lutar pelo pleno emprego, pois trata-se, como afirmou Trotsky, “da vida e da morte da única classe criadora e progressista e, por isso mesmo, do futuro da humanidade”.

Aliados à luta pelo pleno emprego, é preciso que nos organizemos em defesa da saúde e educação pública, gratuita e para todos. Direitos esses, ainda mais restritos às pessoas trans. É diante dessas lutas que compreenderemos a necessidade de liquidar o capitalismo e toda violência que ele causa.

Em momentos de crise do capitalismo como o que estamos vivendo, agravada pela pandemia da Covid-19, a burguesia, com sua moral também decadente, busca usar os governos de plantão para atacar a classe trabalhadora e, sem ter nada a oferecer em troca, utilizam discursos preconceituosos para dividir os trabalhadores, colocando-os como inimigos. É nesse sentido que, no caso do Brasil, temos visto as tentativas de ataque do governo Bolsonaro aos direitos das mulheres, a banalização de posturas machistas, homofóbicas e racistas e a tentativa de fortalecimento dos setores mais reacionários da sociedade.

Diante disso, é importante reafirmar que a luta isolada de grupos ou setores da classe trabalhadora, muitas vezes lutando entre si, fortalece nossos inimigos de classe. A luta das pessoas trans e da classe trabalhadora não são opostas. Elas precisam ser unificadas contra os ataques, a violência, as políticas de austeridade e o sistema capitalista.

A perspectiva de representatividade, já incorporada por setores da burguesia supostamente progressista, também não pode ir além da superfície do problema. E por essa razão é adotada por ela, já que não questiona a raiz da exclusão e da violência e não se coloca como revolucionária. A ideia de que uma presença maior de representantes dos grupos historicamente oprimidos nos espaços de poder seria suficiente para erradicar a opressão é falaciosa, pois, como dissemos anteriormente, o Estado e suas instituições não são neutros, mas têm como função garantir a manutenção do sistema capitalista e da sua classe dominante. Esse sistema e seu Estado criam as barreiras para a participação das pessoas trans na vida pública, violentando-as cotidianamente de diversas formas. Não devemos, portanto, disputar esse Estado, mas derrubá-lo.

Somente a construção de uma sociedade socialista será capaz de, efetivamente, pôr fim a todas as formas de violência, possibilitando que todas as pessoas possam expressar suas individualidades com a dignidade que todas merecemos. Será também assim que poderemos construir uma nova consciência, livre dos preconceitos acumulados e alimentados ao longo de séculos pela burguesia.

  • Pelo fim da violência contra pessoas trans e travestis!
  • Em defesa das liberdades democráticas!
  • Pelo direito à educação e saúde pública, gratuita e para todos!
  • Pelo direito ao pleno emprego!
  • Lutar pela emancipação dos explorados e oprimidos é lutar pelo socialismo!

Nota:

  1. Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil

Referências:

<https://antrabrasil.org/category/violencia/>

<https://antrabrasil.files.wordpress.com/2021/01/dossie-trans-2021-29jan2021.pdf>

<https://www.conjur.com.br/2018-mar-01/stf-autoriza-trans-mudar-nome-cirurgia-ou-decisao-judicial>

<https://congressoemfoco.uol.com.br/justica/stf-detentas-trans-e-travestis-podem-escolher-entre-presidio-feminino-ou-masculino/>

<https://site.cfp.org.br/transexualidade-nao-e-transtorno-mental-oficializa-oms/>

<https://unaids.org.br/2018/06/oms-anuncia-retirada-dos-transtornos-de-identidade-de-genero-de-lista-de-saude-mental/>