Haiti 2004-2014: 10 anos de ditadura militar da ONU

Há 10 anos, o Haiti está sob uma ditadura militar sanguinária implantada pela ONU a mando de Washington e comandada pelo Exército Brasileiro. Alguns argumentam que se trata de uma “missão de paz” da ONU. Mas a verdade é outra. Iniciada a partir de um golpe militar no qual tropas estadunidenses sequestraram o então presidente eleito do Haiti, Jean Bertrand Aristide, a MINUSTAH (Missão das Nações Unidas pela Estabilização no Haiti) nada mais é do que uma ocupação militar repressora que impede o povo haitiano de se manifestar e de lutar por melhores condições de vida, por mudanças, garantindo assim o controle do imperialismo na região.

Assim como planejou e financiou ditaduras militares em toda a América Latina nas décadas seguintes à 2ª Guerra Mundial para conter o avanço das ideias socialistas e reprimir o movimento operário, agora o imperialismo do “Tio Sam” utiliza forças armadas de diversos países, sob o comando do Brasil, para fincar suas garras na ilha da América Central cuja história de luta do seu povo já foi exemplo para os povos oprimidos de todo o continente.

Para os que ainda duvidam desta breve introdução e sustentem alguma ilusão na suposta “Missão de Paz” da ONU, sugerimos que assistam ao vídeo-documentário de 1 hora de duração, dirigido por Kevin Pina, chamado: “Haiti: We must to kill the bandits” (pode ser encontrado em: http://youtu.be/25Mf7Lv5Qo8).

As raízes da histórica luta do povo haitiano

Há mais de 5 séculos, com a chegada dos europeus à América, a segunda maior ilha do Caribe que era chamada de Ayiti ou Quisqueya pelos índios, foi batizada de Hispaniola por Cristóvão Colombo, que estabeleceu ali, em 1493, a primeira colônia na América. Depois do genocídio que em menos de duas décadas reduziu a população nativa a 12% dos cerca de 500 mil indígenas que habitavam a ilha, os espanhóis levaram quase todo o ouro. À medida que os espanhóis abandonavam parte do território onde o ouro ficava escasso, os franceses começavam a ocupá-lo pelo norte da ilha. Até que em 1697, os espanhóis reconhecem a parte ocidental da ilha como colônia da França e os franceses a batizam de São Domingos (Saint-Domingue). Quase sem ouro, os colonizadores franceses apostam na cana-de-açúcar e no café produzidos com mão-de-obra de escravos trazidos da África.

São Domingos torna-se uma potência produtora de açúcar e fonte de altíssimos lucros para o tráfico negreiro. Foi a colônia francesa mais próspera na América e o açúcar de boa qualidade concorria com o que era produzido no Brasil. Já pouco antes de 1770 a colônia exportava 35 mil toneladas de açúcar bruto e 25 mil toneladas de açúcar branco ao ano. Entre 1764 e 1771, a média anual era de 10 mil novos escravos comprados, trazidos pelos navios vindos da África. No fim dos anos 1780, a produção de açúcar quase dobrou na ilha e de 1787 em diante, eram mais de 40 mil novos escravos comprados por ano! A pequena ilha foi “colonizada” com escravos africanos. E estes recebiam o pior tratamento imaginável por parte de seus “donos” franceses.

“Os africanos que chegavam escravizados eram sobreviventes: os negros enfrentavam uma viagem transatlântica pela Rota do Meio como cargas selvagens de um traficante. Não raro, quase um quarto dos escravos transportados morria dentro dos navios pelas péssimas condições de alimentação e higiene. Quando chegavam aos portos, eram examinados, comprados e queimados com ferro em brasa em cada lado do peito para identificar seu dono. Os maus tratos que se seguiam estimulavam juras de contra-ataque. Algumas delas eram proferidas nos rituais noturnos de vodu, sincretismo dos rituais africanos com o catolicismo.” (Aloisio Milani, Revolução Negra, Revista História Viva nº 51, Jan/2008).

Uma massa numerosa de escravos – que falavam crioulo e francês – foi colocada a trabalhar em toda a extensão da colônia (parte ocidental da ilha). Com cargas desumanas de trabalho, torturas e punições, os escravos se revoltavam.

Na sua obra “Os Jacobinos Negros”, o historiador trotskista Cyril Lionel Robert James relata: “Em creoule, dançavam e gritavam canções ameaçadoras. Ê! Ê! Bomba! Heu! Heu! Canga, bafio té! Canga, mauné de lé! Canga, do ki la! Canga, li!”. A tradução seria algo como: “Juramos destruir os brancos e tudo o que possuem; que morramos se falharmos nesta promessa”. Havia “quilombos” (comunidades de resistência, onde os escravos podiam viver livremente) nas montanhas haitianas para organizar a luta contra a escravidão. O mais temido foi o líder Mackland. Negro da Guiné, ele era um visionário, grande orador e se dizia imortal com os poderes do vodu. Tinha seguidores aos montes. Em 1758 planejou envenenar a água das casas dos brancos para libertar os escravos. Foi traído, capturado e queimado vivo.

Mas não foram apenas os maus-tratos dos franceses contra os escravos que incentivaram as revoltas. As notícias da independência dos EUA em 1776 – inspirada pelas ideias iluministas – e a própria Revolução Francesa em 1789 agitavam o ambiente na ilha caribenha.

Revolução Francesa e luta contra a escravidão

Em 1789, a grande revolução eclode na França. Mas os princípios de Liberdade, Igualdade e Fraternidade que inspiraram a revolução francesa não podiam ser empregados na colônia de São Domingos, pois contrariariam os interesses econômicos dos senhores de escravos. Os colonos de São Domingos são questionados pelos franceses em plena revolução. A partir disto a luta dos escravos de São Domingos se torna intrínseca à luta pela revolução na França.

Após a queda da Bastilha, com o desenvolvimento da revolução na França, em 1790 é permitida a instituição de uma assembleia colonial em São Domingos, dividida entre “latifundiários, brancos pobres, mulatos livres e escravos”. Mas nos debates prevalecia o poder dos latifundiários. Só em 1791, na assembleia constituinte da França, é que foi aprovada a igualdade de direitos entre todas as pessoas em São Domingos.

A notícia da decisão chegava aos poucos aos ouvidos dos escravos na ilha. Os latifundiários não a aceitaram e contra-argumentavam que negros e mulatos não eram pessoas e, logo, não podiam ter direitos. Um clima revolucionário percorria todas as fazendas. E foi Boukman – um capataz e sacerdote de vodu – que liderou uma revolta que ateou fogo em todas as fazendas da planície do norte de São Domingos, matando os latifundiários.

Os escravos do sul e do leste espanhol da ilha somam-se aos rebeldes. A repressão aumenta e Boukman é morto em combate, mas a revolta não para! A cada dia aumentava o número de insurgentes. Passaram de 100 mil homens e essa quantidade propiciou um salto de qualidade levando a luta a amadurecer e levantar a bandeira pela independência da colônia.

Luta pela independência

Depois de Boukman houve outros líderes, mas o que mais se destacou foi Toussaint L’Ouverture, um ex-escravo que teve acesso à literatura política e se revelou um grande estrategista militar. Ele unificou os grupos de rebeldes e organizou um exército capaz de derrotar tropas europeias. Entretanto inclinava-se a conciliar com os latifundiários, que por sua vez, recusavam qualquer acordo de paz. A França envia então 3 comissários com 6 mil soldados para conter as rebeliões dos escravos e resolver a situação.

Mas, enquanto os comissários tentavam negociar um acordo, a nova república francesa declara guerra à Inglaterra. A guerra envolve as colônias europeias e o exército de Toussaint defende a ilha, combatendo tropas francesas, inglesas e espanholas.

Em 1794, a república francesa declara a abolição da escravidão em todos os seus territórios e o exército de Toussaint, agora aliado aos franceses, expulsa os ingleses e espanhóis da ilha (inclusive da parte espanhola). Com isso, Toussaint foi nomeado pela metrópole o Chefe do Exército de São Domingos. Em 1801, São Domingos proclamou uma Constituição, tornando-se província autônoma.

Porém, em 1802, Napoleão Bonaparte dá início à sua jornada pela dominação de tudo e de todos. Já com o domínio da Louisiana, ao sul dos EUA, viu na ilha de São Domingos um ponto-chave para a expansão do império francês na América e enviou uma armada para retomar o domínio da colônia: 47 mil homens sob o comando do General LeClerc.

Toussaint combateu as tropas napoleônicas, mas seu instinto conciliador o traiu de novo: o líder negro fez um acordo de paz e se deixou levar, preso, até a França, na tentativa de negociar. Acabou morto numa prisão em Forte Joux, nos Alpes.

Mas a luta pela independência continuou. Os ex-escravos se organizam sob a liderança de Jean Jacques Dessalines e derrotam as tropas napoleônicas de LeClerc em 28 de Novembro de 1803. No dia 1º de Janeiro de 1804, Dessalines proclama a independência da colônia (da ilha inteira) que passa a se chamar Haiti, em homenagem ao antigo nome indígena da ilha que significava “ilha de montanhas altas”.

A derrota das tropas francesas fez com que Napoleão vendesse Louisiana a preços baixos e evitou sua possível expansão nas Américas. Gerou grande impacto no mercado do tráfico de escravos e no preço do açúcar. É… a história dá voltas: a burguesia que tomou o poder na França inspirou as revoltas no Haiti; e a revolução no Haiti acabou com uma importante fonte de renda da burguesia francesa.

Exemplo de luta para os povos

A luta do povo haitiano que se desenvolveu de 1791 a 1803 foi e é considerada a única revolta de escravos bem-sucedida desde a Antiguidade Clássica. Ganhou grande repercussão no mundo todo e representou um gigantesco ponto de apoio para todos que lutavam contra a escravidão. Os senhores de escravos em toda a América ficavam preocupados com a repercussão da vitoriosa revolução negra. Nos EUA, os proprietários de terra se interessavam mais pelos desenvolvimentos na ilha do caribe do que na guerra entre as potências europeias.

Entre os escravos e abolicionistas o interesse não podia ser menor. No Brasil, há registros de milicianos mulatos no Rio de Janeiro que usavam retratos de Dessalines. Os que lutavam contra a escravidão e o racismo passaram a ser rotulados de “haitianistas” por algum tempo no Brasil:

“No período da Regência (1831-40), o termo ‘haitianismo’ foi usado como um epíteto contra jornais que supostamente representavam os interesses da população de cor livre e abordavam persistentemente a questão racial.” (Stuart Schwartz, Segredos Internos – Engenhos e escravos na sociedade colonial).

Dois séculos de mais exploração e repressão

Os imperialistas não podiam deixar barato o que os haitianos fizeram. Desde que os ex-escravos derrotaram as tropas napoleônicas, fazem o povo pagar. O presidente dos EUA Thomas Jefferson (1801 a 1809) – defensor da liberdade e proprietário de escravos – disse que do Haiti vinha o mau exemplo e que a peste devia ser confinada naquela ilha!

“Em 1804, herdaram uma terra arrasada pelas devastadoras plantações de cana-de-açúcar e um país queimado pela guerra feroz. E herdaram “a dívida francesa”: a França cobrou a humilhação infringida a Napoleão Bonaparte. Logo depois de nascer, o Haiti teve que se comprometer a pagar uma indenização gigantesca pelo dano que havia feito libertando-se. Esta expiação do pecado da liberdade lhe custou 150 milhões de francos em ouro. O novo país nasceu estrangulado por essa corda amarrada no pescoço: uma fortuna que atualmente equivaleria a 21,7 bilhões de dólares ou a 44 orçamentos totais do Haiti de nossos dias. Muito mais de um século levou o pagamento da dívida, que os juros de usura iam multiplicando. Em 1938 cumpriu-se, finalmente, a redenção final. Nesse momento o Haiti já pertencia aos bancos dos Estados Unidos.” (Eduardo Galeano, A Maldição Branca, 2004).

Depois da independência de 1804, os habitantes da ilha vivem muitos conflitos. A pressão externa é muito grande. A república fica instável. Dessalines se proclama imperador e é assassinado em 1806. O país se divide em dois e os espanhóis retomam o leste da ilha. Conflitos se seguem e em 1822, o presidente da república do Haiti, Jean-Pierre Boyer, ocupa militarmente o lado espanhol da ilha. Isso só dura até 1844 quando este é derrubado e é declarada a independência da República Dominicana (que ocupa dois terços da parte leste da ilha). Em 1861 os espanhóis retomam o controle do lado leste da ilha e em 1865 é proclamada a independência da República Dominicana de novo.

O povo haitiano passa por décadas de terríveis dificuldades econômicas. Apesar da dívida que seguia pagando à França, o país investe no aumento da produção agrícola, mas esse processo lhe custa um grande endividamento externo, especialmente com capitais norte-americanos. Essa dependência cresceu até o momento em que os EUA, sob a justificativa do não-cumprimento dos contratos, invadem o Haiti em 1915.

“A primeira coisa que fizeram foi ocupar a alfândega e o escritório de arrecadação de impostos. O exército de ocupação reteve o salário do presidente haitiano até que se resignou a assinar a liquidação do Banco da Nação, que se converteu em sucursal do City Bank de Nova York. O presidente e todos os demais negros tinham a entrada proibida nos hotéis, restaurantes e clubes exclusivos do poder estrangeiro. Os ocupantes não se atreveram a restabelecer a escravidão, mas impuseram o trabalho forçado para as obras públicas. E mataram muito. Não foi fácil apagar o fogo da resistência. O líder guerrilheiro, CharlemagnePéralte, foi pregado em cruz em uma porta e exibido em praça pública como advertência.” (Eduardo Galeano, A Maldição Branca, 2004).

O saldo do regime militar sob comando estadunidense que durou até 1934 é de mais de 10 mil haitianos mortos. A partir da década de 30 o imperialismo estadunidense trata as ilhas da América Central como quintal de exploração de mão-de-obra barata, contrabando e prostituição. Mesmo depois de 1934, a influência norte-americana continuava forte no Haiti. Apesar da saída militar do país, mantiveram uma polícia nacional fiel às suas ordens.

Até que, após sucessivos golpes militares, em 1957, François Duvalier – um médico mais conhecido como Papa Doc – assumiu a presidência sob o apadrinhamento dos EUA e implantou novo regime de terror massacrando todos que se contrapunham à sua vontade. A oposição que sobrou era nitidamente controlada por Papa Doc.

Na mesma época em que a ilha vizinha, Cuba, passava por uma revolução liderada por Fidel Castro e Che Guevara, Papa Doc reprimia qualquer manifestação do povo haitiano. Treinou milícias armadas chamadas de TontonsMacoutes (Bichos-Papões), que promoviam chacinas, abusos sexuais e controlavam o contrabando de armas e tráfico de drogas na região. Um regime cruel com o povo pobre, e submisso aos interesses do imperialismo estadunidense.

Na década de 1960, muitos haitianos de esquerda se organizam na igreja católica. Nessa época Papa Doc extermina sistematicamente todos com “influência cubana” e persegue a igreja católica.

O regime de Papa Doc era a expressão da degeneração de uma sociedade submetida a todos os males do capitalismo. Sob patrocínio de Washington, Papa Doc montou um enorme sistema comercial ilegal que transformou o Haiti em rota obrigatória do narcotráfico entre Colômbia e EUA. No fim de seu governo o Haiti já era o país mais pobre das Américas, com a maior taxa de analfabetismo e mortalidade infantil. Morto em 1971, Papa Doc foi substituído por seu filho, o Baby Doc.

Baby Doc impôs um brutal sistema de super exploração do trabalho, que beneficiou largamente as multinacionais norte-americanas e também a “raquítica” burguesia haitiana. O povo trabalhador reage. Baby Doc decreta Estado de Sítio, até que, em 1985, protestos populares se intensificam e Baby Doc foge para a França num avião da Força Aérea Norte-Americana, deixando em seu lugar uma junta chefiada pelo General Henri Namphy.

Tem início uma disputa entre os militares pelo comando do Estado e do narcotráfico. Uma série de golpes se sucede até que sob forte pressão popular é aprovada uma nova Constituição e são convocadas eleições diretas para presidente, num tipo de sistema parlamentarista, para Dezembro de 1990.

As origens da crise atual

Com uma campanha de denúncia da dominação imperialista no Haiti, Jean Bertrand Aristide, ex-padre católico, defensor haitiano da “Teologia da Libertação”, foi eleito presidente com enorme apoio popular, 67% dos votos, tomando posse em Fevereiro de 1991. Líder de um movimento popular chamado Lavalas, nomeou um primeiro-ministro de sua confiança. Aristide estabeleceu como eixos de seu governo o combate à corrupção e ao narcotráfico e a luta contra a pobreza. Sete meses depois sofreu um golpe militar, liderado pelo General Raoul Cedras e patrocinado pela CIA.

Exilado nos EUA, Aristide busca ajuda internacional. É a oportunidade de ouro para o imperialismo voltar ao comando do Haiti desde que Baby Doc fugiu e estabelecer um controle militar direto no transporte das drogas, contendo a insatisfação popular com Aristide. O governo dos EUA propõe apoiar a volta de Aristide ao poder desde que este aceite e apoie a presença de tropas estadunidenses para “estabilizar o país”.

O ex-presidente americano Jimmy Carter se apresenta como “mediador” e faz de conta que obtém um acordo com Cedras: em troca de anistia os militares deixam o poder, o exército haitiano é dissolvido e tropas norte-americanas entram no país em Setembro de 1994 para “assegurar o retorno à legalidade”. Aristide reassume a presidência em Outubro escolhendo Smarck Michel como seu primeiro-ministro. Em Abril de 1995, as tropas dos EUA são substituídas por soldados da ONU.

Aristide é recebido pelo povo haitiano com grandes manifestações de boas vindas. Em Junho de 1995, nas eleições, René Préval, o candidato do movimento Lavalas, apoiado por Aristide – e também pela Casa Branca – é eleito presidente com 87,9% dos votos. O povo queria Aristide, porém a constituição do Haiti não permite a reeleição para um mandato consecutivo e Préval carrega os votos do antecessor. Mas não corresponde às expectativas do povo. Ele mantém a presença das tropas da ONU e nomeia para o posto de primeiro-ministro um economista alinhado com Washington, chamado Rony Smarth.

Em Março de 1996, Préval anuncia plano de privatizar todas as estatais e serviços públicos, desencadeando greves e grandes manifestações de protesto. Em Agosto do mesmo ano, o Lavalas é responsabilizado pelo assassinato de dois líderes burgueses. A situação fica instável e a população é reprimida pelas tropas da ONU. Aristide racha com Préval e cria o movimento Família Navalas, anunciando que será candidato à presidência em 2000.

Em Janeiro de 1997, a República Dominicana decide expulsar os imigrantes ilegais haitianos, mas interrompe o envio diante dos protestos do povo haitiano à chegada dos primeiros 16 mil deportados. Os protestos de rua ganham força e possibilitam a formação de um movimento nacional contra a imposição de um programa de cortes de gastos públicos acordado entre o primeiro-ministro Smarth e o FMI. Centenas de milhares vão às ruas. A crise institucional se acentua e menos de 10% dos eleitores votam nas eleições legislativas e municipais de Abril de 1997.

Nessa época a população do Haiti já chega a quase 8 milhões de habitantes. O desemprego atinge 70% da população ativa. A fome se alastra nas zonas rurais. Uma greve geral dos professores fecha as escolas de todo o país! O povo trabalhador haitiano tinha as condições de efetuar uma insurreição vitoriosa e a tomada do poder em 1997. Mas, além da presença das tropas militares da ONU, lhe faltava um partido revolucionário. A fragmentação política é impressionante. Há mais de uma centena de partidos e organizações políticas no Haiti. Com o recente racha entre Préval e Aristide e as traições do Governo Préval, o Movimento Lavalas que teria maior apoio popular não consegue ocupar este papel.

O primeiro-ministro Smarth renuncia em Junho, porém continua no cargo até Outubro. Em Novembro, o presidente Préval indica Hervé Denis para o cargo de primeiro-ministro. A ONU retira as tropas militares e coloca uma Polícia Civil das Nações Unidas (MIPONUH) para conter a onda revolucionária e profissionalizar a Polícia Nacional do Haiti – única força repressora do Estado, já que o exército foi dissolvido em 1994. Essa missão da ONU permanece no Haiti até Março de 2000.

Um golpe preparado 4 anos antes

Aristide foi eleito presidente novamente nas eleições de Dezembro de 2000 num processo conturbado. Mesmo ele tendo demonstrado no passado que diante de pressões segue fielmente às ordens do imperialismo, ele representa a vontade de mudanças de milhões de haitianos e por isso a burguesia e os senhores de Washington não confiam nele.

Uma forte oposição de latifundiários, empresários, paramilitares, grupos narcotraficantes e ONGs acusam Aristide de ter manipulado as eleições parlamentares do início do ano e por isso boicotam as eleições presidenciais. Na verdade sabiam que não teriam forças para vencer Aristide que contava com grande apoio popular e não prometia dar continuidade ao governo entreguista de Préval. Sem adversários, Aristide foi eleito com baixa votação. Toma posse em Março de 2001. Entretanto dessa vez Washington está do lado da oposição e o Banco Mundial corta a ajuda anual de US$500 milhões que enviava ao governo anterior.

A política econômica aplicada por Aristide foi ambígua, pois ao mesmo tempo em que fazia críticas abertas ao FMI, seguia sua cartilha à risca. O desemprego aumentou. A miséria e a fome também. A epidemia de AIDS atingiu números alarmantes. Sua popularidade caiu. Sem dinheiro para programas sociais, Aristide passa a exigir da França a devolução de 22 milhões de euros como compensação por riquezas repassadas pelo Haiti no decorrer do século XIX.

Em Janeiro de 2004, as comemorações dos 200 anos de independência do Haiti se transformam em grandes manifestações de rua por comida. Os empresários haitianos organizam greves e grupos armados começam a atacar os apoiadores de Aristide nas ruas. A imprensa noticia conflitos com dezenas de mortos. O Governo dos EUA se pronuncia dizendo que Aristide tinha que estabilizar seu país e garantir a democracia. A oposição de direita armada exige a renúncia de Aristide ameaçando um golpe. Grupos de apoiadores de Aristide resistem, mas a oposição tinha muito mais recursos. Aristide diz que não renuncia e que não abandonará o Palácio do Governo mesmo que tenha que pagar com sua vida. O povo sai às ruas.

Como o Haiti não tem mais exército (dissolvido em 1994) isso dificulta aos opositores tomar o poder militarmente como estavam habituados no passado. Foi então que, em 29 de Fevereiro de 2004, fuzileiros navais estadunidenses raptam o presidente eleito do Haiti e declaram que ele havia renunciado. Um governo interino é nomeado pelos americanos e tropas francesas, canadenses e americanas reprimem as gigantescas manifestações pró-Aristide, deixando dezenas de mortos, até que em 1º de Junho de 2004 chegam as tropas da ONU, comandadas pelo exército brasileiro.

A Missão da ONU e o Governo Lula

O golpe de 2004 no Haiti chega a ser mais escandaloso do que foi o golpe de 2002 na Venezuela em que Chávez ficou seqüestrado por 3 dias. Não foi um golpe de militares haitianos patrocinados pelos EUA. Foi um golpe executado diretamente por militares estadunidenses! E no contexto de então, em que Bush se via confrontado com a maior mobilização global da história, de milhões de pessoas nas ruas, em todos os cantos do mundo, contra a guerra do Iraque, Washington não podia deixar parecer que estava começando outra guerra na América Central, numa ilha a duas braçadas de Cuba e da Venezuela!

Era importantíssimo para os EUA que a ocupação militar no Haiti tivesse a aparência de uma “missão humanitária”, uma “missão de paz”. Para isso precisavam que um país não-imperialista, de “ficha limpa”, chefiasse as tropas da ONU. E o Brasil caiu como uma luva, pois tinha como presidente recém-eleito uma figura respeitada pelos movimentos de esquerda em todos os países: Lula.

Lula, que já vinha seguindo à risca a orientação de Washington no Brasil (alianças com a burguesia, contra-reforma da previdência, subsídios ao latifúndio, aumento do superávit primário para o pagamento da dívida externa, etc.) não pensa duas vezes. E argumenta que isso ajudará o Brasil a conquistar um acento permanente no genocida Conselho de Segurança da ONU!

Os trabalhadores brasileiros não elegeram Lula para conseguir uma vaga pro Brasil num conselho que decide qual país deve ser invadido militarmente, muito menos para participar de uma dessas invasões militares! Mas Lula é inteligente e faz forte propaganda sobre a “missão de paz” da ONU. Organiza inclusive um jogo amistoso da seleção brasileira contra a seleção haitiana no Haiti em Agosto de 2004. É chamado de “o jogo da paz”. O Brasil vence por 6 a 0.

Nós, marxistas brasileiros, organizamos abaixo-assinados antes e depois do envio das tropas. Milhares de assinaturas dirigidas a Lula dizendo: “Não envie as tropas!”; “Retire as tropas!”. Mas o governo não deu bola. E não dará bola até que haja uma exigência das massas. Voltaremos a isso mais adiante.

A MINUSTAH (Missão das Nações Unidas pela Estabilização no Haiti) foi formada com a participação de tropas dos seguintes países:

Efetivos militares: Argentina, Benim, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Croácia, Equador, Espanha, França, Guatemala, Jordânia, Marrocos, Nepal, Paraguai, Peru, Filipinas, Sri Lanka, Estados Unidos e Uruguai.

Forças policiais: Argentina, Benin, Burkina Faso, Camarões, Canadá, Chade, Chile, China, Colômbia, Egito, El Salvador, França, Granada, Guiné, Jordânia, Madagascar, Mali, Maurícia, Nepal, Níger, Nigéria, Paquistão, Filipinas, Romênia, Federação Russa, Ruanda, Senegal, Serra Leoa, Espanha, Togo, Turquia, Estados Unidos, Uruguai, Vanuatu e Yêmen.

Notem que além do Brasil, há tropas de outros países da América do Sul cujos presidentes foram levados à vitória eleitoral como expressão da luta por mudanças das massas trabalhadoras em seus países: Bolívia de Evo Morales, Chile de Bachelet, Paraguai de Lugo, Uruguai de Vasquez e Equador de Rafael Correa!

Todos cumprindo um papel asqueroso a mando do imperialismo, enviando tropas, usando recursos materiais e humanos para reprimir e assassinar o povo pobre e sofrido do Haiti. Além do cubano Fidel, em 2004 apenas Chávez se posicionou contra a ocupação do Haiti. Mas não é pra menos, há uma revolução em curso na Venezuela!

No início a ONU anunciou uma missão de 6 meses. Depois foi prorrogada até que houvesse eleições. Depois de muitos adiamentos, houve eleições em 2006, mas Aristide – o presidente de fato eleito pelo povo, exilado na África do Sul – estava e permanece impedido de regressar ao Haiti! Préval acabou eleito novamente. Depois, em 2010-2011, numa outra eleição conturbada e sem Aristide, o cantor e ator Michel Martelly, também conhecido pelo seu nome artístico de Sweet Micky, foi eleito e é o atual presidente do Haiti.

Agora já há presidente “eleito” – imposto. E as tropas continuam lá! A ONU argumenta que sem as tropas lá as gangues de narcotraficantes e seqüestradores afundariam o país no caos novamente. Mas isso é falso!

Polícia de Elite e Esquadrões da Morte

São incontáveis os mortos, assassinados pelas tropas da ONU e a Polícia Nacional no Haiti nesses mais de 10 anos de ocupação. E está bastante claro que não se trata de combate a traficantes, mas sim de repressão ao movimento Lavalas que se opõe à ditadura imposta pelos EUA e pela ONU e segue com forte apoio de massas, exigindo a volta de Aristide.

Mas nos morros e favelas do Brasil a polícia também não mata o negro pobre sob o pretexto de combater o tráfico? Não é à toa que o BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais) da PM do Rio fez um convênio com o exército brasileiro para “trocar experiências de combate” com as tropas brasileiras em missão no Haiti e que alguns contingentes, antes de serem enviados ao Caribe, passaram por semanas de treinamento na “favela do BOPE”, no Rio.

Soldados brasileiros que voltaram do Haiti deram entrevista para o Jornal “Folha de SP” onde afirmaram que o nome “missão de paz” dava uma impressão errada do que estava acontecendo no Haiti. Um dos soldados identificado como “S”, explica: “Até parece que este nome é para tranqüilizar as pessoas no Brasil. Na verdade, não há dia em que as tropas da ONU não matem um haitiano em troca de tiros. Eu mesmo, com certeza, matei dois. Outros, eu não voltei para ver.” (Folha de SP, 29/01/2006).

E o mais revoltante: desde 2005 as tropas da ONU têm chacinado haitianos em represália explícita por se manifestarem pela retirada das tropas e pelo retorno de Aristide – Titid, como o povo pobre o chama. Manifestações com dezenas de milhares de haitianos são reprimidas a bala pelas forças policiais e tropas da ONU. Quando as manifestações são muito grandes, no dia seguinte as tropas da ONU costumam fazer incursões em Cité Soleil – com 300 mil moradores é a maior favela na periferia da capital do país, Porto Príncipe – e atiram por horas sem parar contra as casas dos moradores, matando homens, mulheres e crianças. Só não matam idosos porque estes são raros no Haiti. A expectativa de vida é de 49 anos!

Nessas incursões – chamadas de “punições coletivas” por alguns jornalistas presentes no Haiti – os soldados atiram de dentro de seus carros blindados e helicópteros. Muitas pessoas, principalmente crianças, são atingidas na cama, enquanto dormem, por balas de calibre pesado que atravessam os telhados de suas habitações.

Depois de contar e chorar seus mortos, o povo pobre de Cité Soleil volta às ruas protestando e é reprimido de novo! A situação de um povo desarmado enfrentando forças externas tão poderosas como essas, pode aniquilar física e psicologicamente toda uma geração. E este é o objetivo da ONU: acabar com o Lavalas e qualquer possibilidade de resistência política aos planos do imperialismo.

Os que buscam se organizar ou participar de movimentos de resistência são mortos ou presos sem motivo, ilegalmente. Depois de presos sofrem torturas e geralmente são “desaparecidos” pela Polícia Nacional. Já são incontáveis os presos políticos e ativistas desaparecidos. Jornalistas independentes falam em mais de 20 mil pessoas mortas e desaparecidas nestes 10 anos!

A situação no Haiti ocupado

Como se não bastassem as mortes causadas pelas tropas estrangeiras e pela Polícia Nacional, os haitianos ainda correm muitos outros riscos de vida.

Há a fome: Quem não ficou chocado ao ver imagens na TV dos biscoitos de barro que os haitianos comem? Quando não há comida os haitianos buscam fazer como as plantas, retirando os nutrientes direto do solo! Não é difícil conhecer alguém no Haiti que tenha na família uma criança que tenha morrido de fome. Mais de 80% da população vive abaixo da chamada “linha da pobreza”. E tudo ainda pode piorar! Com a crise mundial de aumento dos preços dos alimentos, em 2008, o saco de 23 quilos de arroz passou de 35 para 70 dólares no Haiti, enquanto o milho, o feijão e o óleo de cozinha registraram aumentos de 40%. Isso provocou protestos de massa, com saques a depósitos de alimentos e barricadas com pneus queimados nas ruas. As tropas da ONU reprimiram os manifestantes famintos com balas. Hoje 80% do arroz consumido no Haiti é comprado dos EUA com altas taxas de importação.

Há doenças: Já chegam a 400 mil os haitianos portadores de HIV (5% da população). Outras epidemias como malária e tuberculose também aterrorizam os mais pobres. A mortalidade infantil é de 57 a cada mil crianças. A mortalidade materna é de 630 a cada cem mil partos. Faltam remédios elementares nas farmácias – e faltam farmácias. Faltam médicos, recursos e estrutura nos hospitais – e faltam hospitais. Na maioria das comunidades não há esgoto encanado nem coleta de lixo. O índice de contaminação da água que a população bebe é muito elevado. A falta de higiene e saneamento agrava os problemas de saúde e aumenta o risco de contração de muitas doenças que poderiam ser facilmente prevenidas. Em 2010, após o grande terremoto, uma epidemia de Cólera se abateu sobre o povo com milhares de mortos em alguns meses!

Há a super-exploração do trabalho: segundo o conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ), Anderson Bussinger Carvalho, a ocupação militar internacional sob comando do Brasil “tem interesses de explorar a mão-de-obra haitiana através de zonas francas”. As jornadas de trabalho muitas vezes ultrapassam as 12 horas diárias e o salário mínimo foi dobrado em 2008, passando a um valor correspondente a 120 dólares mensais. Empresas de capital americano, canadense e dominicano fazem a festa. Sindicatos haitianos denunciam o aumento de maquiladoras no país. O Governo brasileiro está em constante diálogo com o Governo dos EUA sobre indústrias brasileiras que se interessaram em criar unidades no Haiti para exportar produtos aos Estados Unidos desde 2006. Entretanto os operários fabris somam apenas 3% dos trabalhadores ativos no Haiti. A grande maioria está nos setores informais e trabalhando no campo, onde a precarização do trabalho é ainda pior. Não raro há mortes no campo por excesso de trabalho.

Há os furacões: Imagine todos esses problemas batidos num liquidificador. Freqüentemente furacões e tempestades tropicais se formam no Atlântico e avançam em direção ao sudeste dos EUA. No caminho passam pelas Antilhas. Mesmo quando não acertam o Haiti em cheio, só de passarem próximos à costa já causam um forte estrago, provocando elevação do nível do mar e enchentes dos rios. Em 2004, Gonaives, principal cidade da região norte, atingida pelo furacão Jeanne, foi soterrada por uma enxurrada de lama de 3 metros de altura: quase 3 mil mortos! Isso ocorreu logo após a ocupação militar da ONU. O governo interino da época bateu todos os recordes de corrupção: os sobreviventes – que tinham perdido todos os seus bens – tinham que pagar (!) pela carteira de identidade que dava direito à ajuda aos desabrigados. Muitas ONGs receberam grandes quantias de dinheiro de ajuda humanitária internacional, mas ninguém sabe onde esse dinheiro foi parar. Em 2008, o país foi atingido por mais 4 tempestades (Hanna, Gustav, Ike e Fay) provocando grande devastação e centenas de mortes. O governo haitiano pedia que as doações fossem feitas diretamente ao governo e não através das ONGs. Na imprensa circulavam denúncias de desvio de alimentos que seriam entregues para os desabrigados, (mais de 20 mil haitianos).

O furacão Jeanne devastou o Haiti em 2004, oito meses após o golpe que derrubou Jean-Bertrand Aristide. Gerard Latortue [o primeiro-ministro do governo provisório], o cabeça da ditadura da ONU e natural de Gonaives, recebeu dinheiro de todo o mundo para ajudar a reconstruir a cidade. Infelizmente, as vítimas receberam poucos benefícios deste dinheiro. Gonaives situa-se abaixo do nível do mar, mas diques nunca foram construídos; muitas estradas ainda sequer foram reparadas. Os poucos resultados obtidos com dinheiro da ajuda internacional só trazem a convicção de que, em Gonaives, os amigos de Latortue e ONGs corruptas simplesmente embolsaram o dinheiro.” (Wadner Pierre, HaitiAnalysis.com, 9/9/2008).

O terremoto de 2010 desmascara a “missão de paz” da ONU

Reproduzimos aqui trechos de um artigo nosso escrito alguns dias após o terremoto que matou mais de 300 mil haitianos em janeiro de 2010:

“Todos ficamos chocados com as notícias e imagens que chegam do Haiti desde o dia 12/01, quando um forte terremoto destruiu a capital e várias cidades do país. As agências de notícia internacionais já falam em 70 mil corpos queimados e enterrados em valas comuns. Alguns analistas falam em cifras de 100 mil mortos, outros 200 mil e há os que falam em 500 mil mortos. Cerca de 3 milhões de haitianos estão desabrigados neste momento, um terço do país!

Também chegam notícias de que “aumenta a violência”. Repórteres relatam que a população sobrevivente faminta e sedenta começa a saquear estabelecimentos comerciais em busca de comida.

‘Os focos de violência nas ruas do Haiti, embora sejam casos isolados, são um problema de segurança que dificulta as tarefas humanitárias no Haiti, afirmaram hoje dois funcionários do alto escalão do Governo dos Estados Unidos. Tanto o tenente-general do Exército americano e subcomandante do Comando Sul, P.K. Keen, como o administrador da Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional (USAID), Rajiv Shah, fizeram essa advertência em diversos programas dominicais da televisão americana. “Há casos isolados, mas nos preocupam e teremos que fazer frente a esse problema. Temos que estabelecer um ambiente seguro para poder ter sucesso com nossa missão de assistência humanitária”, disse Keen, que coordena as atividades das Forças Armadas dos EUA nos trabalhos de resgate e reconstrução, à CNN.’ (EFE, 17/01/2010)

Mas, por que uma semana depois do terremoto os haitianos sobreviventes estão sendo levados a saquear armazéns em busca de comida se a imprensa fala em congestionamentos no Aeroporto de Porto Príncipe com cargas de comida, remédios e água que chegam de todos os cantos do mundo para as vítimas do terremoto? A verdade é que a ajuda que chega, em grande parte, não está sendo distribuída aos desabrigados!

‘Muitos desabrigados se queixam que não receberam nenhuma assistência, apesar do aeroporto de Porto Príncipe receber verdadeiros engarrafamentos de aviões com cargas com mantimentos e remédios. (…) “Só sei que em três dias comi um prato de arroz que recebi de uma vizinha”, contou Bobien Ebristout, que está em um barraco feito com quatro lonas em uma colina empoeirada de Peguyville, onde o cheiro de excrementos toma todos os ambientes.’ (EFE, 17/01/2010)

‘As agências de ajuda internacionais, contudo, alertam que muitos haitianos desabrigados ou feridos estão morrendo enquanto as equipes tentam superar o caos na organização da distribuição da ajuda. Alguns deles, afirma o jornal britânico ‘The Guardian’, criticam o controle excessivo dos americanos como parte do problema. A ONG ‘Médicos Sem Fronteiras’ diz que a confusão sobre quem comanda os esforços – os americanos ou a ONU – está atrapalhando a entrega de suprimentos de primeira necessidade a milhares de pessoas. “A coordenação não existe ou não está funcionando até este momento”, disse ao jornal Benoit Leduc, gerente de operação da ONG em Porto Príncipe.’ (Folha de SP, 19/01/2010)

A grande quantidade de ajuda que chega ao Haiti demonstra que os povos de todo o mundo são solidários. Isso desmonta os argumentos daqueles que buscam atribuir à “natureza humana” a causa das injustiças e desigualdades por todo o mundo. A humanidade está pronta para a solidariedade, para a cooperação. O obstáculo é o sistema da competição entre os indivíduos, o sistema da propriedade privada dos meios de produção: o capitalismo.

E é a serviço do capital que as condições de vida no Haiti estavam já tão rebaixadas antes do terremoto, o que maximizou as conseqüências da catástrofe natural. E é a serviço do capital também que estão as tropas da ONU. Afinal, ao invés de os EUA enviarem mais 11 mil soldados armados ao Haiti para “fazer frente ao problema da violência” e “garantir um ambiente seguro”, não deveriam as tropas da ONU estar empenhadas em distribuir os mantimentos que chegam de outros países? E nas regiões onde o acesso é mais difícil, não deveriam os próprios soldados tomar a frente e abrir os armazéns onde há comida e distribuí-la aos sobreviventes?

O relato de um estudante brasileiro que estava no Haiti antes, durante e depois do terremoto, com um grupo de pesquisadores de antropologia da Universidade de Campinas (Unicamp), não poderia ser mais claro:

O que o Brasil e a ONU fizeram em seis anos de ocupação no Haiti? As casas feitas de areia, a falta de hospitais, a falta de escolas, o lixo. Alguns desses problemas foram resolvidos com a presença de milhares de militares de todo o mundo?

A ONU gasta meio bilhão de dólares por ano para fazer do Haiti um teste de guerra. Ontem pela manhã estivemos no BRABATT, o principal Batalhão Brasileiro da Minustah. Quando questionado sobre o interesse militar brasileiro na ocupação haitiana, o Coronel Bernardes não titubeou: o Haiti, sem dúvida, serve de laboratório (exatamente, laboratório) para os militares brasileiros conterem as rebeliões nas favelas cariocas. Infelizmente isto é o melhor que podemos fazer a este país.

Hoje, dia 13 de janeiro, o povo haitiano está se perguntando mais do que nunca: onde está a Minustah quando precisamos dela?

Posso responder a esta pergunta: a Minustah está removendo os escombros dos hotéis de luxo onde se hospedavam ricos hóspedes estrangeiros.

Longe de mim ser contra qualquer medida nesse sentido, mesmo porque, por sermos estrangeiros e brancos, também poderíamos necessitar de qualquer apoio que pudesse vir da Minustah.

A realidade, no entanto, já nos mostra o desfecho dessa tragédia – o povo haitiano será o último a ser atendido, e se possível. O que vimos pela cidade hoje e o que ouvimos dos haitianos é: estamos abandonados.

A polícia haitiana, frágil e pequena, já está cumprindo muito bem seu papel – resguardar supermercados destruídos de uma população pobre e faminta. Como de praxe, colocando a propriedade na frente da humanidade. (Haiti: “Estamos abandonados”, por Otávio Calegari Jorge)

Relatos da Cruz Vermelha indicam que 6 dias após o terremoto o preço do pãozinho havia dobrado em Porto Príncipe e que “a busca de corpos parece ter terminado, enquanto as pessoas buscam entre os escombros qualquer coisa que possa ser útil ou comida”.

Por outro lado, a situação que se arrastava antes do terremoto já poderia ser classificada como catastrófica. E as tropas da ONU servem para manter tal situação!

Para não restar mais dúvida alguma, vejamos o que disse numa entrevista concedida em 2009, o Diretor do Comitê Democrático Haitiano, Henry Boisrolin, ao portal argentino Resumen Latinoamericano:

‘O acionar das tropas das Nações Unidas é algo que indigna qualquer ser humano com um pouquinho de sensibilidade. Em um país onde 70% de sua população ativa não têm trabalho, onde temos uma taxa de mortalidade infantil superior a 80 por mil e uma taxa de analfabetismo no campo, que supera 70% e nas cidades 50%, ou onde se tem uma expectativa de vida que não supera os 50 anos; estamos falando de um país com suas estruturas econômicas destruídas, onde 60% do orçamento haitiano provém da ajuda internacional e das remessas que enviam os haitianos que trabalham fora; por tudo isso, dizer que tem que vir com tanques, aviões e helicópteros para resolver isso, é totalmente falso e cruel.

O que fizeram estes “salvadores”? Estupraram as meninas e mulheres haitianas, agrediram e torturaram nossos jovens. Não somos nós que dizemos isso, foi uma investigação da própria ONU que confirmou esses fatos, e a única coisa que foi feita, foi pegar alguns soldados e mandá-los para casa, porque segundo o Convênio da Resolução 545, que permitiu a entrada das tropas no dia 1º de junho de 2004, o Haiti não tem direito de julgar nenhum militar estrangeiro, por mais que tenha cometido crimes de lesa-humanidade. Mais submissão que isso não pode existir!

(…)

Tem que ver, por exemplo, em Porto Príncipe, em alguns dos bairros mais calmos, como durante a noite (porque não há praticamente vida noturna no Haiti, não há luz, nem serviços que se possam encontrar em outros países) se vê um contínuo desfile de carros da ONU, em frente aos melhores bares e restaurantes, gastando muitos dólares, e lá fora o povo dormindo nas ruas.

(…)

Isso pede uma reflexão, porque escutamos alguns governos, quando passam furações ou sucedem outros acontecimentos climáticos, dizer que as tropas estão ali precisamente para nos ajudar em maus momentos. Mas isso não é o determinante, nem um pouco. A ocupação do Haiti é um novo esquema para dobrar a rebelião popular num país onde as classes dominantes não têm possibilidade alguma de ganhar as eleições de forma limpa. Então, é preciso impor, pela força das armas uma estratégia de dominação. Esse é o verdadeiro papel dos ocupantes. E para os que dizem que “melhor essas tropas do que as dos Estados Unidos”, nós dizemos que é justamente o contrário. De outra forma teríamos tido o inimigo de frente, de maneira mais clara. Em vez disso, ver irmãos latino-americanos enviados por governos que teriam que apresentar outro tipo de comportamento diante do drama haitiano, é muito duro. Eu estive em bairros populares muito castigados por estas tropas e escutei o que diz o coração dessa gente. A indignação com que contam como bombardeiam durante a madrugada para capturar supostos bandidos destes bairros. Ou quando soldados entram aos montes e chutam as portas, arrastando para fora aterrorizados moradores. Por isso, não há lugar para mais mentiras: trata-se de uma ocupação clara da República do Haiti, e à medida que esta situação segue, haverá mais resistência.’

Mas os que buscam resistir, organizar mobilizações contra a ocupação militar imediatamente são criminalizados, rotulados como traficantes, contrabandistas, seqüestradores são perseguidos, presos, torturados e desaparecidos, como num autêntico regime fascista. Assim como no Brasil a polícia trata os moradores das favelas e comunidades mais pobres sempre como suspeitos. Vejamos o que disse numa coletiva um enviado especial da ONU:

‘Há muitos setores que não gostam de nossa presença lá. Isso é certo e eles nos reservam uma enorme antipatia. Eu venho lhes identificando como aqueles envolvidos com o tráfico de drogas, aqueles que se beneficiam da impunidade, desordem, falta de Estado, falta de instituições, que se beneficiam de contrabando…’ (Edmond Mulet, enviado especial da ONU ao Haiti, Jan/2007).

Ajuda humanitária

Henry Boisrolin, Diretor do Comitê Democrático Haitiano, deixa claro em entrevista de 2009, qual é a ajuda de que necessitam os haitianos:

Queremos pedir solidariedade para que os governos latino-americanos entendam que essa não é a via, que o Haiti não precisa de tropas militares. O que nós precisamos é o tipo de ajuda que dão Cuba e Venezuela, esse é o modelo válido de apoio, de humanidade, de respeito à nossa independência e soberania.

Enquanto o governo dos EUA anunciava o envio de mais 10 mil soldados armados ao Haiti, 2 dias após o terremoto, Fidel Castro explicava que os 400 médicos cubanos enviados no dia seguinte ao terremoto já estavam salvando vidas em diversas cidades do Haiti. Os primeiros aviões a chegar com medicamentos, comida, médicos e bombeiros foram os venezuelanos.

Mas hoje, 19/01/2010, o Conselho de Segurança da ONU decidiu enviar mais 3.500 soldados da MINUSTAH! A que serve essa decisão? Pra que enviar soldados armados para um lugar onde são necessários médicos, comida, água, engenheiros, professores?!

A ONU fez um apelo aos governos de todo o mundo pedindo que contribuíssem para somar uma quantia de US$ 575 milhões para ajudar o Haiti após o terremoto. A ONU acaba de anunciar que já arrecadou 19% disso, ou seja: US$ 110 milhões!

É aí que caem todas as máscaras dos capitalistas e dos defensores deste sistema podre. Todos acabamos de acompanhar o desenvolvimento da crise mundial: em poucos meses os governos capitalistas e seus bancos centrais doaram a um punhado de banqueiros mais de 15 trilhões de dólares de dinheiro público! Com esse dinheiro seria possível alimentar para sempre milhares de Haitis inteiros. E pra que precisamos de ONGs? Para desviarem dinheiro como fizeram no Haiti em 2004?! Há dinheiro e recursos para toda a população da Terra!

Para salvar meia dúzia de banqueiros: trilhões de dólares! Para livrar da fome quase 1 bilhão de seres humanos no planeta: milhares de ONGs! E para o povo de um país destruído por um terremoto: mais tropas militares! Este é o presente do sistema que não reserva nenhum futuro pra humanidade.

E todos eles choram. Diante das imagens da TV choram pelos milhares de haitianos que tiveram suas vidas levadas pelo terremoto. E os soldados fortemente armados com fuzis de alto calibre, tanques e helicópteros que eles enviaram antes para “pacificar” os haitianos, agora se travestem de heróis, de salvadores. Mas é por pouco tempo. Logo estarão pisoteando com suas botas as cabeças dos haitianos novamente. Porque eles têm medo de um outro tipo de terremoto. Um terremoto social que sacudiu o Haiti há mais de 200 anos. A única revolta de escravos vitoriosa desde a Antiguidade Clássica, que fez nascer a primeira República Negra do mundo! E cada vez que eles sentem um pequeno tremor, um pequeno sinal daquele terremoto, eles ficam desesperados e aumentam as tropas. E mandam bala! Mas a história é mais forte! Esse terremoto virá e será implacável. Deixará o capitalismo com suas crises, impostos, preços, ONGs, leis, taxas de lucro, tropas pacificadoras, maquiladoras, multinacionais, bancos, tudo sob escombros.”

Há saída! Lutar pelo socialismo!

O trecho citado acima de nosso artigo de 2010 segue atual. O povo haitiano pede ajuda! Precisa de comida, remédios, infra-estrutura, empregos, hospitais, escolas! Mas a ajuda chega em forma de balas que atingem os peitos e cabeças das crianças. Parece que está sendo seguida à risca a orientação de Thomas Jefferson: “confinar a peste na ilha”.

Apesar de todas as dificuldades, de alguma forma os haitianos encontram forças para levantar a cabeça e gritar! Para levantar os braços e com os punhos cerrados, marchar! Lutam esses homens e mulheres massacrados! E como lutam! E continuarão lutando, pois a história é deles! A história é nossa! Dos que lutam! A luta de classes é o motor da história e a história não vai acabar antes que vençamos!

Assim como os haitianos fizeram no fim do século XVIII, por todas as partes do mundo os povos dão o exemplo. Algumas braçadas pelo mar do Caribe ao sul do Haiti, chegamos às praias da Venezuela, onde uma revolução está em curso há mais tempo que a atual ocupação da ONU no Haiti.

A defesa da revolução cubana e o aprofundamento da revolução na Venezuela e em toda a América Latina são fundamentais para a luta do povo haitiano. Pode-se dizer que, da mesma forma que no fim do século XVIII a luta pela independência haitiana estava intrinsecamente ligada ao desenvolvimento da revolução francesa, hoje, a luta pela autodeterminação do povo haitiano está intrinsecamente ligada ao desenvolvimento da revolução na Venezuela.

É a teoria da revolução permanente: as conquistas democráticas mais elementares nos países atrasados estão invariavelmente associadas à luta pela tomada do poder de Estado pela classe trabalhadora. Não é possível a luta pela soberania do Haiti desconectada da luta pelo socialismo.

Para fazer frente a todos os problemas do Haiti, que em certo aspecto são comuns a todos os países atrasados do mundo, é preciso planificar a economia, socializar a propriedade dos meios de produção e estabelecer a democracia dos conselhos de operários e camponeses. Com o socialismo mundial poderemos planejar a produção e a distribuição de tudo, de tal forma que todos poderão viver sem qualquer necessidade deixar de ser atendida. Até acabar de vez com o Estado e estabelecer uma sociedade sem classes: o comunismo! A fome não existirá mais, nem as guerras. Não haverá mais exploração.

Mas para chegar lá é preciso começar lutando. E para lutar é preciso nos organizar. No Haiti, para os trabalhadores lutarem e se organizarem é preciso restabelecer minimamente os direitos democráticos. Urge a retirada da ditadura militar instalada pela ONU!

Uma tarefa imediata

No Brasil estamos desde antes do início da ocupação exigindo que Lula não envie soldados; que traga os soldados de volta. Seguimos exigindo que Dilma retire as tropas do Haiti. Mas o máximo que conseguimos foram alguns milhares de assinaturas. Sabemos que devemos seguir exigindo do governo brasileiro a retirada das tropas, mas não temos ilusões de que Dilma se sensibilizará com nossos apelos. Ela não está desavisada sobre o que se passa no Haiti. Ela sabe muito bem e aprova o massacre. Essa foi a opção que Lula e a direção do PT fizeram ao se aliar com a burguesia brasileira e submeter-se completamente ao imperialismo americano. A única chance de Dilma ceder e retirar as tropas seria uma campanha de massas que tivesse força para obrigá-la a fazer isso.

Por isso se faz urgente e necessária uma campanha ampla de propaganda e agitação. Textos, fotos, vídeos que expliquem que não podemos aceitar que dinheiro público brasileiro seja destinado para esse fim e nem que jovens militares brasileiros sejam enviados para o Haiti para massacrar os nossos irmãos haitianos e nem que essa missão de ocupação sirva de escola para tropas aprenderem como massacrar os jovens negros e pobres nas favelas e periferias do Brasil.

O mesmo deve ser feito em outros países da América Latina onde governos “de esquerda” mantêm tropas de seus respectivos exércitos na “missão de paz” da ONU, como Bolívia, Equador, Uruguai, Argentina, El Salvador.

Devemos exigir:

  • Fim da Ocupação Militar Já! Fora Tropas da ONU!
  • Ajuda humanitária deve ser com médicos, professores, infra-estrutura! Basta de tropas militares!
  • Pelo direito à autodeterminação do povo haitiano! Que os haitianos tenham a liberdade de se organizar e manifestar! Que possam lutar por melhorias e decidir seu próprio futuro!
  • O Presidente Aristide deve ter a liberdade de retornar ao Haiti!
  • Fim dos assassinatos, abusos sexuais e massacres dos pobres pelas tropas da ONU e Polícia Nacional!
  • Liberdade aos presos políticos – parem com as detenções ilegais e torturas no Haiti!
  • Os executores do golpe e massacres dos pobres devem ser punidos! Indenizações para as vítimas!
  • No Brasil: Dilma, traga os soldados brasileiros pra casa!

Dezembro/2014