Profissão do artista em perigo? Uma análise sobre o que é a DRT e a luta dos artistas e técnicos por seus direitos

O SATED-SP lançou uma campanha contra o que chamam de “a extinção do registro profissional de artistas e técnicos”, envolvendo a luta contra a extinção da DRT, sigla para Diretoria Regional do Trabalho, referente ao registro feito na Carteira de Trabalho do artista ou técnico ou impresso diretamente pelo próprio site do Ministério do Trabalho – que no Brasil é pré-requisito para a contratação nas suas funções designadas.

A campanha do SATED é uma pretensa denúncia contra dois processos que tramitam no STF e aproximam-se da fase de julgamento:

– A ADPF 183, uma ação movida desde o ano de 2009, por iniciativa do Deputado Estadual Carlos Giannazi, do PSOL, através da Procuradoria Geral da República, para buscar acabar com a exigência de que o músico deva apresentar a carteira da OMB, questionando inclusive a própria existência da Ordem dos Músicos do Brasil, baseia-se no direito constitucional do livre exercício profissional e no direito a liberdade de expressão e manifestação artística. A legislação vigente até então permitia à OMB exigir a apresentação de diploma superior ou técnico ou, quando da ausência deste, submeter o músico a uma prova para atestar sua capacidade, cobrando por sua inscrição na Ordem e anuidades para manutenção do direito de trabalhar. Esta ação baseava-se em uma reivindicação histórica dos músicos em todo o país.

– A ADPF 293, de 2013, ao que parece de iniciativa da própria Procuradoria Geral da República, solicitando o fim da exigência do diploma superior ou técnico ou, quando da ausência deste, do Atestado de Capacitação Técnica para a emissão da DRT. Trata-se, claramente, de uma ação que visa aplicar o mesmo princípio da ADPF 183, mas ao campo dos Artistas e Técnicos de Espetáculos de Diversão.

Os processos encontram-se nas mãos da Presidente do STF, Carmem Lúcia, e há uma audiência marcada para o dia 26/4. Ambas as ações alegam, corretamente, a inconstitucionalidade destas exigências.

O SATED-SP, junto com outras entidades, de maneira equivocada, divulga a campanha como se estivesse em questão a extinção do próprio reconhecimento da profissão de “artista” ou “técnico” de espetáculos! Trata-se de um grave erro!

Este artigo tem a intenção de elucidar esta questão, demonstrando a real função social da exigência do diploma ou do “Atestado de Capacitação Profissional” para artistas e técnicos pelo SATED, cujo monopólio de expedição foi concedido pelo Estado. Diferentemente de como ocorria com os músicos – em que havia uma autarquia (a Ordem dos Músicos do Brasil) a quem a legislação concedia o monopólio da decisão sobre quem pode trabalhar como músico – no caso dos “artistas e técnicos de espetáculos de diversão” este monopólio foi entregue ao próprio sindicato da categoria. Trata-se de algo muito mais grave, uma completa aberração, que atrela o sindicato ao Estado, desvirtuando completamente sua função política.

No artigo publicado por nós, da Esquerda Marxista, no dia 10 de agosto de 2017, “Uma análise sobre a assembleia do SATED e de seu processo eleitoral” momento em que se debatia em assembleia da categoria a redução do valor abusivo cobrado aos candidatos a obtenção do “Atestado”, esboçamos, em linhas gerais nossa posição quanto à DRT:

“Em um contexto em que a imensa maioria dos trabalhadores da cultura, sobretudo os mais jovens, sofrem com o desemprego e a falta de direitos trabalhistas na sua categoria, ainda é um grande ataque que a DRT custe R$ 600,00.
Essa questão é da maior importância. Consideramos um completo absurdo que o sindicato que representa artistas e técnicos de espetáculos se preste ao papel de cobrar pedágio – e fazer disso uma máquina de fazer dinheiro – para que seus colegas de profissão possam trabalhar!
A função do Estado de regular, proibir ou permitir o exercício de uma profissão é uma necessidade quando essa oferece risco à vida, tal como ocorre por exemplo com a engenharia, enfermagem ou medicina. Na área das artes, deve aplicar-se apenas ao campo da arquitetura e, por exceção, aos casos que envolvam segurança.
No caso da arte, portanto, o controle sobre o exercício da profissão é uma afronta ao próprio direito constitucional republicano e democrático de liberdade de expressão. É extremamente lamentável que um sindicato, ou seja, uma organização dos próprios trabalhadores se preste a ajudar o Estado na restrição a um direito constitucional.
As condições de técnicos podem ser, de fato, diferentes da dos artistas. Realmente há diversos casos em que sem determinada capacitação técnica para exercer a profissão sua atividade possa oferecer riscos. Isso deve ser debatido e aprimorado. Mas de forma alguma pode servir de justificativa para a absoluta imoralidade que é o pedágio cobrado pelo sindicato para a emissão da DRT.
A questão da DRT, portanto, extrapola as necessidades de assegurar à sociedade a capacitação de um profissional. Ao entrar na banca avaliadora, uma atriz, por exemplo, é examinada sob determinados padrões artísticos para ter seu registro e poder trabalhar formalmente. Isso se configura como uma censura, uma forma de cercear a liberdade artística ao determinar se a atriz é boa o suficiente ou não, capacitada ou não. Não cabe ao Estado, muito menos ao sindicato avaliar as questões internas à arte, dizer quem é artista ou não. A função do Estado deveria ser a de assegurar uma vida digna, com moradia, horas regulamentadas de trabalho, férias, décimo terceiro, etc. A função do sindicato é exigir isso para seus filiados e demais trabalhadores. Essa sim é uma pauta urgente que precisa ser discutida no sindicato”.

Parte da defesa da exigência do Atestado Profissional para a expedição da DRT apoia-se na ideia de que o registro serve para proteger o trabalhador da precarização e de que a regulamentação do artista e do técnico, por meio da Lei 6.533 de 24 de maio de 1978, deve servir de saída para que o profissional da área cultural e da arte não seja associado à figura da prostituta, do michê – como oficialmente ocorria antes da DRT e que ocorre, ainda, de certa forma – ou do trabalhador informal, ilegal, desempregado; ou seja, do setor mais marginalizado e precarizado da sociedade.

Porém, a histórica vitória que permitiu ao artista e ao técnico regulamentar sua profissão não deve ser confundida com a obrigação do profissional de ter um diploma ou, pior, de ter que pedir e pagar ao seu próprio sindicato para ser reconhecido no mercado de trabalho. A Lei que criava a DRT, se por um lado criava a distinção da profissão de “artista” ou “técnico”, por outro lado continha uma armadilha. O reconhecimento da profissão foi importante. Mas a lei também tem seu aspecto extremamente reacionário: o atrelamento do sindicato, que de entidade de luta dos trabalhadores passa a ser parte da própria estrutura do Estado, cumprindo papel regulamentador e de policiamento sobre a própria categoria.

A exigência de um atestado sindical para a obtenção da DRT, da forma como é apresentada pela parte majoritária da diretoria do SATED, transmite a falsa ideia de que é um grande passo para o alcance das mínimas condições de vida da categoria que, em sua maioria, vive em condições extremamente precárias.

Por trás desta aparente confusão teórica, há na verdade o interesse daqueles que pretendem salvar a qualquer custo uma parte importante da receita sindical, dependente de impostos e cobranças compulsórias, levantando uma falsa bandeira contra a precarização, que serve como porta de entrada para obter maior audiência e apoio da categoria.

O que diz a Procuradoria Geral da República por meio da ADPF 293

“Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Arts. 7o e 8o da Lei 6.533, de 24 de maio de 1978, e arts. 8o , 15, 16, I e §§ 1 o e 2o , 17 e 18 do Decreto 82.385, de 5 de outubro de 1978. Exigência de diploma ou atestado sindical para registro de profissionais da área artística na antiga Delegacia Regional do Trabalho (atualmente Superintendência Regional do Trabalho e Emprego – SRTE) do hoje Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A liberdade de expressão artística não deve, no regime da Constituição da República de 1988, sofrer limitações de natureza política, ideológica ou artística (arts. 5o , incs. IX, XIII, e 215, caput, da Constituição). Precedentes do Supremo Tribunal Federal. Parecer pelo conhecimento e procedência do pedido.
(…)
Defende a ação a incompatibilidade desses dispositivos com a garantia constitucional da liberdade de expressão (art. 5o , IX, da Carta da República) e de profissão (art. 5o , XIII, da CR) e com a garantia do pleno exercício dos direitos culturais (art. 215, caput, da CR), por entender que em uma democracia constitucional não cabe ao Estado policiar a arte. Afirma que medidas restritivas à liberdade de manifestação artística só são constitucionalmente admitidas quando visem à proteção do direito de terceiros. Invoca o 4 PGR Arguição de descumprimento de preceito fundamental 293/DF julgado do Supremo Tribunal Federal no recurso extraordinário 511.961, que afastou a exigência de diploma de nível superior para exercício da profissão de jornalista. Requer que o STF declare a não recepção dos arts. 7o e 8o da Lei 6.533/1978 e, por arrastamento, dos arts. 8o , 15, 16, inc. I e §§ 1 o e 2o , 17 e 18 do Decreto 82.385/1978.
(…)
1.
DISCUSSÃO
(…)
No caso da Lei 6.533/1978, não há lógica, necessidade nem interesse público na exigência de diploma de “diretor de teatro, coreógrafo, professor de Arte Dramática, ou outros cursos semelhantes” para registro na antiga Delegacia Regional do Trabalho (atualmente Superintendência Regional do Trabalho e Emprego – SRTE) do (hoje) Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) de “artista ou técnico de espetáculos”. A exigência dessa qualificação não se pauta em critérios de ordem técnica, tampouco tem por fundamento interesse público, porquanto tais atividades não têm potencial de pôr em risco a liberdade, o patrimônio ou outros bens jurídicos sensíveis dos indivíduos.”

Não devemos fazer uma defesa em favor do STF como instituição, apoiando os métodos do sistema judiciário burguês. Pelo contrário, a votação do habeas corpus de Lula, por exemplo, deixou mais uma vez claro que o STF está atolado na mesma lama em que se encontram os representantes do executivo e do congresso nacional. Não nutrimos nenhuma ilusão na “justiça” burguesa.

Mas devemos reconhecer e defender as conquistas contidas na constituição, que foram fruto de lutas históricas dos trabalhadores. Entre elas está o livre exercício profissional, cuja regulamentação deve ter como regra a liberdade, sendo ela restringida apenas quando a atividade puder causar dano ao interesse público, em suma, quando oferecer risco à sociedade, como no caso das áreas da medicina, enfermagem, engenharia, arquitetura, etc.

A luta por direitos trabalhistas, melhores salários e cachês, luta pela previdência social, por moradia, sistema de saúde, transporte e educação público, gratuito e para todos e a luta pela valorização da profissão devem ser as principais reivindicações da categoria. Mas até hoje esses direitos não foram assegurados aos trabalhadores da cultura e a exigência de diploma ou de um “Atestado de Capacitação” do sindicato estão longe de ser uma garantia de direitos aos artistas e técnicos. Na verdade, estas exigências apenas perpetuam uma situação excludente e meritocrática.

O corporativismo de diversas profissões liberais, por exemplo, sempre buscou utilizar-se da permissão dada pela Constituição para a regulamentação das profissões para criar dificuldades de acesso aos seus mercados, agindo como uma espécie de Corporação de Ofício contemporânea. É o caso da OAB, que para além do diploma – que já não é pouco – cria um exame de ordem, uma excrecência de nossa sociedade.

A OMB (Ordem dos Músicos do Brasil) é exatamente isso. Um descendente deformado das Corporações de Ofício. Mas isso explicaremos mais à frente. Basta dizer que o SATED tem sido há muitos anos a mesma coisa.

Outra das conquistas essenciais é o Direito à Liberdade de Expressão e Manifestação Artística. Este tema é delicado. Os defensores da atual legislação dizem que ao tratar-se da profissão e das relações trabalhistas, não tratamos da liberdade de expressão.

Ora, se acreditamos que a arte é importante o suficiente ao ponto de defendê-la como profissão (aqui incluímos plenamente os técnicos), é preciso defender que aquele que a produz possa dedicar a vida a isso. Portanto, para garantir as condições de exercer o ofício de expressar-se artisticamente, é preciso sobreviver, trabalhar. Impossível separar uma coisa da outra.

Se a legislação cria dificuldades para o livre exercício da profissão de artista, se impede determinado artista que não se encaixe nos critérios estipulados pelo sindicato impedindo-o de sustentar seu trabalho profissional, ela cerceia o direito à livre expressão.

A extinção da exigência da OMB – uma conquista dos músicos

Quando músicos lutavam, de forma extremamente atomizada e desorganizada pela extinção da exigência da carteira emitida pela OMB, os defensores desta instituição reacionária afirmavam que era a carteira da OMB que garantia os direitos e a dignidade da profissão do músico. A direção majoritária do SATED parece fazer um discurso muito parecido, ainda que maquiado de uma forma mais “à esquerda”.

A questão é que de forma alguma pode-se dizer que, desde que as grandes instituições culturais e produtoras de eventos não mais cobraram a carteira da Ordem dos Músicos do Brasil, os músicos tenham perdido direitos. Muito menos se pode afirmar que musicistas, por causa disso, tenham passado a ser tratadas como prostitutas ou os músicos, em geral, como delinquentes. Se é verdade que as elites nutrem cada vez mais ódio pelos artistas e somos, muitas vezes, tratados como marginais, a queda da exigência da carteira da OMB em nada determinou isso.

A luta dos músicos sempre teve um agravante. Para a contratação formal era solicitada a emissão de uma Nota Contratual – por parte da OMB – que demandava, por sua vez, que os músicos não só tivessem pago sua inscrição e passado na prova (diplomados estavam dispensados da prova, como no SATED), mas também que estivessem em dia com uma anuidade. O peso da taxa para a inscrição era muito menor do que o cobrado pelo SATED para a banca do Atestado de Capacitação. Mas com a cobrança da anuidade, se somados os primeiros anos, já equivaleria ao custo da DRT.

De qualquer forma, eram o dinheiro (ou a falta dele) e a burocracia um impedimento para muitos jovens artistas participarem de editais, festivais, eventos diversos, ou serem contratados por instituições como o SESC, SESI, Centros Culturais públicos e outros.

Isso levou, durante anos, a um movimento muito atomizado, heterogêneo, mas amplo, pela obtenção de liminares que isentavam os músicos de apresentarem a carteira da OMB ou qualquer outro documento congênere para trabalharem em seu ofício. Baseados numa primeira sentença do próprio STF, que criou a jurisprudência, de forma geral, todos passaram a conseguir liminares individuais ou coletivas concedendo esta isenção.

A bandeira de luta pelo fim da OMB era quase unânime entre os músicos! E praticamente a ninguém com reais conexões com as lutas por direitos dos trabalhadores ocorria dizer que isso acabaria com a profissão!

Após um decreto do ex-governador José Serra, no Estado de SP, convertido em Lei pela Assembleia Legislativa em 2007, a maior parte das instituições deixou de cobrar este documento. Outras decisões parecidas ocorreram em diversas partes do Brasil. Recentemente até mesmo o SESC, que resistiu muito a esta mudança, deixou de cobrar a carteira da OMB. Multiplicaram-se decisões judiciais em diversos níveis sobre isso, quase sempre em favor dos músicos. A OMB, instituição herdeira das piores tradições da ditadura militar, vem sendo extinta na prática, embora ainda continue vegetando e se contorcendo.

A ADPF 183 parece apenas colocar de uma vez por todas a questão do mérito da existência da OMB e da carteira da OMB. Torcemos e trabalhamos por sua extinção!

Aos músicos que nos lêem, perguntamos: quais os direitos que foram perdidos, neste caso, depois que deixou de ser exigida a carteira da OMB? Respondemos, de nossa parte, sem medo algum: nenhum. Mas muitos músicos puderam ser incluídos no mercado formal sem terem que pagar por isso, como pagaram os mais velhos. Ou seja, tivemos um avanço!

Um dos autores deste texto, por exemplo, obteve a liminar em 2014, com o apoio e orientação jurídica do gabinete do Deputado Carlos Gianazzi (PSOL), que estava de portas abertas aos músicos que estavam nesta mesma luta. Nunca escutei de nenhum dos principais atuais combatentes da ADPF 183 uma crítica à nossa reivindicação naqueles anos. Pelo contrário, alguns tantos eram favoráveis aos músicos contra a OMB.

A proposição da ADPF 183, que segundo a própria OMB foi movida pelo Deputado Carlos Gianazzi através da Procuradoria, argumenta justamente tendo em vista a defesa do direito do músico a trabalhar sem ser cerceado ou cobrado por instituição qualquer. Temos agora uma campanha do SATED e “outras entidades representativas” – não nomeadas na carta que circula entre os artistas – que considera que este processo é um ataque e não um avanço. Que grande equívoco!

Os “parâmetros estéticos” da emissão do Atestado de Capacitação Técnica para emissão da DRT

A atual legislação designa ao sindicato a tarefa de estabelecer critérios para selecionar quem pode ser considerado artista profissional e quem não pode. A dificuldade de encontrar esses parâmetros estéticos – ou técnicos, como o SATED costuma chamar – podem ser evidenciadas no discurso do atual presidente do SATED-SP, Dorberto Carvalho, em sua postagem no facebook no dia 27 de outubro de 2017:

“São inúmeras a críticas da categoria sobre os critérios para obtenção do chamado DRT via SATED-SP e por isso é necessário um amplo debate entre artistas, técnicos e escolas para se estabelecer critérios objetivos. Em primeiro lugar, penso que não pode haver grande discrepância de formação entre os que obtêm o registro profissional via sindicato e os que obtém através dos cursos técnicos e graduação. Precisamos responder honestamente para nós mesmos algumas perguntas do tipo: Alguém que tenha adquirido sua formação encenando Brecht e Meyerhold tem a mesma formação de quem gastou o mesmo tempo gravando publicidade ou televisão? É justo tratar com igualdade na suas desigualdades quem está na região central de São Paulo e quem está na periferia ou no interior? É possível obter o registro profissional sem nunca ter ouvido falar em Augusto Boal? Alguém que trabalha a cerca de dez anos como técnico e sustenta sua família com seu trabalho, mesmo que tenha debilidade de formação, pode ter o registro profissional negado? Enfim, é preciso chamar um amplo debate e estabelecer critérios bem explicitados que restrinja ao máximo a influência de alguma subjetividade e não mude ao sabor das circunstâncias.”

Dorberto Carvalho elabora perguntas como se quisesse se abster da responsabilidade de dar uma saída a categoria, deixando aos técnicos e artistas a própria responsabilidade de estabelecer critérios para a banca julgadora. Ou seja, tira-lhe dos ombros a responsabilidade de possíveis injustiças – que, por consequência desta política excludente, serão inevitáveis – ao mesmo tempo em que chama a todos para um “amplo debate” para que se estabeleça “critérios objetivos” que restrinjam ao máximo a “influência de alguma subjetividade e não mude ao sabor das circunstâncias.” Em outras palavras, defende a imposição sindical sobre os parâmetros artísticos.

A restrição da subjetividade como política imposta pelo aparelho estatal não é novidade no campo político e artístico. Para ficarmos apenas nos exemplos citados por Dorberto: Meyerhold foi executado pelo governo stalinista, acusado, dentre outras coisas, de “formalismo”; Brecht, com sua posição comunista e sua intensa oposição ao regime Nazista, foi levado ao exílio diversas vezes; E Boal, após o decreto do AI-5, foi preso e torturado. Não é possível afirmar o que esses artistas diriam hoje sobre esta questão em específico, mas parece haver um hiato entre aquilo que defendiam politicamente e aquilo que alguns fazem com seus nomes posteriormente.

O único critério possível, no que tange à arte, para estabelecer quem tem formação adequada ou não para exercer a profissão de artista, é não haver qualquer crivo. Não deve haver nenhuma “objetividade” imposta pelo Estado ou sindicato. Todos as discussões estéticas e seus parâmetros de análise devem se manter, livremente, no campo da própria arte, sem determinismos políticos que levem a imposições de forma e conteúdo aos artistas.

Sugerimos aos interessados retomar o importante Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente, escrito por Trotsky e André Breton e publicado com a assinatura conjunta de Diego Rivera, em 1938. Se muita coisa no mundo mudou, o centro de suas reflexões ainda cabem totalmente para ajudar a fomentar este debate.

A atual Legislação

No Artigo 7° da Lei 6.533/78 exige-se ao artista ou técnico em espetáculo de diversão a apresentação do:

“I – diploma de curso superior de Diretor de Teatro, Coreógrafo, Professor de Arte Dramática, ou outros cursos semelhantes, reconhecidos na forma da Lei; ou
II – diploma ou certificado correspondentes às habilitações profissionais de 2º Grau de Ator, Contra-regra, Cenotécnico, Sonoplasta, ou outras semelhantes, reconhecidas na forma da Lei; ou
III – atestado de capacitação profissional fornecido pelo Sindicato representativo das categorias  profissionais e, subsidiariamente, pela Federação respectiva.”

Esta é a Lei que pretendem defender os dirigentes do SATED!

A lei, ao invés de garantir os direitos dos trabalhadores da cultura, permite dificultar ainda mais o reconhecimento de artistas e técnicos, assim como de seus trabalhos. Impor diploma ou atestado a uma categoria em grande parte precarizada é, consequentemente, defender uma minoria em detrimento de uma maioria, pressupondo de forma idealista o livre acesso ao sistema de ensino de qualidade, a existência de uma grande oferta de trabalho na área cultural e a favorável condição financeira que permita o pagamento da taxa da banca para obtenção da DRT. Nem de longe esta é a realidade em que vive a maioria de artistas e técnicos.

E sobre os técnicos, em específico, é sabido que há, em certos casos, funções que podem oferecer riscos ao interesse público se não forem devidamente executadas por profissional preparado. Mas isso ocorre em diversos ramos da economia e esta fórmula da exigência de diploma ou do Atestado Sindical não tem qualquer conexão com a realidade. Basta buscar aplicá-la a maior parte dos ramos da indústria ou da construção civil, onde há riscos de toda a ordem, e veremos que a solução em nada passa por um Atestado do Sindicato!

É preciso salientar que uma enorme parcela da categoria trabalha sem ter diploma de um curso ou faculdade reconhecido pelo MEC. Aliás, grande parte dos maiores nomes de nossa arte e grande parte dos técnicos que são referência em suas áreas de atuação não possuem diploma qualquer do ensino formal. Neste sentido, a exigência do diploma leva este debate ao campo da meritocracia e não a luta por direitos.

Diante, portanto, da grande escassez de cursos técnicos ou superiores públicos em comparação com a demanda existente; diante da enorme dificuldade de passar em seus processos seletivos para a maior parte dos jovens oriundos da educação pública sucateada; diante da escassez, inclusive, de cursos privados (quando existem), da dificuldade para um jovem pagar pelos estudos, podemos concluir que toda a questão repousa sobre o que fazer com os que não possuem diploma. Impedi-los de trabalhar? É isso o que, nas entrelinhas, defende a atual direção do SATED-SP.

E são exatamente aqueles que não possuem diploma os que dependem, pela legislação atual, da “autorização” do sindicato para serem considerados “profissionais”, para terem a DRT e serem considerados no direito de acessar o mercado formal.

Mas, com a alteração da lei, tais artistas e técnicos não precisariam mais da autorização sindical. Por consequência, o sindicato deixa de ter o monopólio da decisão sobre quem pode ou não trabalhar formalmente. E, o que é mais importante, deixa de manter seu direito de cobrar pela capacitação!

Isso explica porque só agora, após a posse da nova diretoria, é que parece que tais dirigentes se deram conta do “problema” que representam estes processos que já correm desde 2009 e 2013, respectivamente.

Trata-se de uma manobra da maioria da direção atual do sindicato para manter parte essencial de sua receita. Isso faz com que, independente da política defendida pela direção, a base da categoria continue, mesmo que não queira, financiando e fazendo funcionar a máquina sindical. Em outras palavras, a DRT configura-se como uma taxa compulsória.

Contra o atrelamento do sindicato à estrutura do Estado

Os capitalistas têm diversas diferentes formas de cooptar os dirigentes sindicais e afastá-los das lutas verdadeiramente importantes para a classe trabalhadora. No Brasil, particularmente, a estrutura sindical ajuda muito nesta tarefa. A Consolidação das Leis Trabalhistas, onde foram inscritas grande parte das conquistas das lutas da classe trabalhadora brasileira, é também uma legislação perversa, pois traz consigo toda uma concepção de sindicato oficial, atrelado ao Estado. Criada no governo de Getúlio Vargas, tal legislação tinha o objetivo de “domesticar” o movimento sindical, que vinha há tempos mostrando suas garras e lutando por direitos.

Em nosso país, de acordo com a lei, quem decide quem é o sindicato que representa uma categoria é o Ministro do Trabalho e do Emprego, a quem cabe a prerrogativa de conceder a Carta Sindical. Apenas o sindicato que detém este documento tem o direito de assinar, por exemplo, acordo coletivo em nome dos trabalhadores. Ou seja, quem decide, em última instância, quem negocia em nome dos trabalhadores, é o Estado e não os próprios trabalhadores.

Esta estrutura sindical dependente e submissa ao Estado da CLT tem raízes no modelo sindical fascista da Itália. A contribuição ou taxa compulsória é uma das heranças da CLT varguista, cujo objetivo é aumentar o controle do Estado sobre os trabalhadores.

A Carta del Lavoro ou Código do Trabalho, editada em 21 de abril de 1927 pelo Gran Consiglio del Fascismo, é o documento oficial apresentado por Benito Mussolini em favor do controle estatal sobre o sindicato, em favor da imposição, dentre outras coisas, de cobranças compulsórias.

Abaixo, trechos da Carta del Lavoro:

“II- O trabalho, sob todas as formas organizativas e executivas, intelectuais, técnicas, manuais é um dever social. A este título, é tutelado pelo Estado. O complexo da produção é unitário do ponto de vista nacional; os seus objetivos são unitários e se reassumem no benefício dos particulares e no desenvolvimento da potência nacional”.
E continua:
“III- A organização sindical ou profissional é livre. Mas somente o sindicato legalmente reconhecido e submisso ao controle do Estado tem o direito de representar legalmente a categoria dos empregadores ou de trabalhadores para a qual é constituído; de tutelar-lhes, face ao Estado e outras organizações profissionais, os interesses; de estipular contratos coletivos de trabalho obrigatórios para todos os pertencentes da categoria, de impor-lhes contribuições e de exercitar, por conta disto, funções delegadas de interesse público”. (grifos nossos)

Agora, um breve trecho do extrato do título V, da CLT brasileira promulgada em 1° de maio de 1943:

“Art. 513. São prerrogativas dos sindicatos:

  1. a) representar, perante as autoridades administrativas e judiciárias os interesses gerais da respectiva categoria ou profissão liberal ou interesses individuais dos associados relativos à atividade ou profissão exercida;

  2. b) celebrar contratos coletivos de trabalho;

  3. c) eleger ou designar os representantes da respectiva categoria ou profissão liberal;

  4. d) colaborar com o Estado, como órgãos técnicos e consultivos, no estudo e solução dos problemas que se relacionam com a respectiva categoria ou profissão liberal; (grifos nossos)

  5. e) impor contribuições a todos aqueles que participam das categorias econômicas ou profissionais ou das profissões liberais representadas”. (grifos nossos)

Entre os assalariados, em nosso país, a legislação garante aos sindicatos a cobrança do Imposto Sindical, uma cobrança compulsória que recai sobre toda a categoria representada oficialmente – de acordo com a Carta Sindical – pelo sindicato. Ou seja, a contribuição ao sindicato não é um ato político e voluntário, baseado na filiação e na consciência política, mas mediada pelo Estado através do desconto em folha de todos os “representados”.

Antes que alguém diga que é normal, que pesquise a história e tradição do melhor do sindicalismo combativo na Europa e no mundo e entenderá que a defesa de tal absurdo nada tem a ver com a tradição do movimento sindical revolucionário.

No entanto, este tipo de vinculação é defendido por toda uma gama de reformistas, stalinistas e sindicalistas pelegos que, tendo abandonado há muito a tradição de lutar ombro a ombro com a classe, convencendo-os no cotidiano da necessidade de sustentação financeira dos sindicatos, usam do alarde sobre o perigo de falência do sindicato como argumento para justificar sua concessão. Apregoam que sem dinheiro não conseguem lutar contra os ataques dos patrões e governos e, para conseguir o dinheiro, se atrelam aos patrões e governos.

Parecem, ou fingem não saber, que direitos básicos – mas extremamente importantes – como a jornada de 8 horas, foram conquistas de sindicatos que muitas vezes não tinham sequer sedes, carros ou diretores liberados.

Quanto ao SATED, é preciso dizer claramente que não foi outra coisa senão esta política de financiamento do sindicato atrelada ao Estado que criou o monstro contra o qual esta nova chapa se confrontou no processo eleitoral. Para ser, de fato, diferente dela, é preciso romper com seus vícios, com seu atrelamento ao próprio sistema que explora técnicos e artistas.

O SATED não tem uma grande base de assalariados, portanto não goza de grandes benefícios para seu caixa com o imposto sindical. A maior parte da categoria não é celetista (ou seja, contratada por regime previsto na CLT). Por isso, a taxa compulsória aqui teve que encontrar outros caminhos e aparece de forma maquiada.

Além da DRT, há a taxa negocial ou assistencial, recentemente defendidas pela maioria da diretoria sem qualquer crítica de fundo, que incide diretamente sobre todos os “oficialmente” representados, filiados ou não-filiados.

É preciso imediatamente desenvolver uma política de independência financeira, fazendo com que o sindicato se sustente com a contribuição voluntária de seus filiados, sem cobranças compulsórias, sem pedágios para poder trabalhar, sem imposto sindical. Mas isso implica mudar muito mais coisas. A diretoria do SATED precisa enfrentar este desafio ou está fadada a ser uma continuidade da antiga gestão, apenas com uma falsa tendência mais “à esquerda”.

A Esquerda Marxista faz coro com os militantes do movimento sindical que rejeitam qualquer tipo de atrelamento à estrutura do Estado. Defendemos que o sindicato deva ser independente financeiramente para ser independente politicamente!

É preciso combater os pontos da CLT que atrelam os sindicatos ao Estado. Entre eles, a luta pela revogação do título 5º da CLT; a luta pela independência total e incondicional dos sindicatos em relação ao Estado capitalista; a luta pela unidade dos trabalhadores; contra a necessidade de reconhecimento oficial dos sindicatos pelo Estado; contra a unicidade sindical; contra qualquer tipo de taxa compulsória aos nãos filiados, independente do nome dado; devolução das contribuições compulsórias impostas pela legislação; o combate permanente para que os sindicatos se livrem de qualquer forma de assistencialismo; contra o recebimento de qualquer tipo de gratificação ou favorecimento que a base não receba para os dirigentes sindicais; contra a participação ou ingerência do sindicato nos órgãos dirigentes das empresas privadas, assim como nos objetivos e funcionamento destas empresas ou do Estado; substituição do financiamento através do Estado pelo financiamento livre e voluntário dos filiados e trabalhadores que desejarem contribuir com a luta do sindicato; contra todo assistencialismo e utilização do sindicato como intermediário entre trabalhadores e empresas ou negócios privados; contra a modificação do padrão de vida do trabalhador eleito dirigente sindical.

Obviamente essa mudança tem consequências, obrigando os atuais diretores a abrirem mão das ajudas de custo fixas – que nem sequer demandam comprovação dos gastos – colocando-os a necessidade de radicalização das políticas e lutas do sindicato e a arrecadação direta entre os filiados. É preciso, portanto, que o SATED-SP se livre de todo imposto compulsório jogado sobre os ombros dos trabalhadores da cultura. Essa é a única via para a criação de um sindicato combativo e de luta!

Para quê deve servir um sindicato de artistas e técnicos?

Quando do processo eleitoral, do qual participamos, escrevemos sobre a caracterização deste sindicato as seguintes palavras:

“O SATED não é um sindicato como outro qualquer. Não é um sindicato típico das categorias da classe trabalhadora, não é uma associação de trabalhadores de uma mesma categoria assalariada. Pelo contrário, sua existência carrega uma série de contradições, decorrentes das contradições próprias das formas de negociação comercial dos serviços prestados pelos artistas e técnicos de espetáculos. O problema de uma categoria majoritariamente autônoma e informal, cuja relação de pagamento, para os mais bem sucedidos de forma geral, é via contrato por apresentação e raramente tem contratos estáveis de trabalho, necessita de uma associação sindical que ajude a intervir nas negociações entre tomador e prestador de serviços.
Precisamos trabalhar no sentido contrário e batalhar para a criação de condições para que a profissão de técnico ou artista possibilite estabilidade, direitos trabalhistas, carreira profissional. Precisamos trabalhar para que esses profissionais aproximem-se cada vez mais das lutas do conjunto da classe trabalhadora, entendam-se como parte dela e vejam o mundo de seu ponto de vista.
Juntem-se a nós neste combate!”

O SATED precisa abandonar imediatamente o corporativismo e adotar uma linha política que aproxime os artistas do conjunto da classe trabalhadora. Deve imediatamente, não só apoiar a extinção da exigência de diploma ou Atestado de Capacitação Técnica, como já deveria há muito tempo – mesmo sem decisão judicial – ter parado de cobrar e de impor avaliações aos artistas que demandam a emissão da DRT.

Desta forma, inclusive avançaria nos passos para uma política financeira independente, pois ampliaria o número de trabalhadores aptos a filiação e seria visto como um real parceiro dos jovens artistas e técnicos e não como um obstáculo ou uma empresa vendedora de documentos, como é visto hoje em muitos lugares.

No lugar disso, a maioria da atual direção do SATED parece preferir continuar a apostar nos métodos antigos, que deram sustentação aos 32 anos de um sindicato inoperante e chapa branca, nas mão da Lígia.

  • Somos pelo direito dos artistas e técnicos trabalharem sem o pagamento de taxas compulsórias!
  • Pelo mais absoluto direito à expressão artística! Nenhuma forma de controle estatal ou sindical sobre a produção artística!
  • Em defesa dos direitos dos artistas e técnicos, bem como de toda a classe trabalhadora!
  • Contra a reforma da previdência! Pela revogação da reforma trabalhista!
  • Em defesa de políticas públicas para a arte! Contra a renúncia fiscal e qualquer tipo de privatização da cultura!
  • Em defesa da educação pública, gratuita e de qualidade no campo das artes!
  • Fora Temer e o Congresso Nacional! Por um governo dos trabalhadores!

(Jacqueline Takara é atriz e suplente da Diretoria de Interior do SATED-SP; Vinícius Camargo é músico e ator; ambos são militantes da Célula de Artistas da Esquerda Marxista)