Foto: Paulo Rios, Agência Alagoas

Bolsonaro e sua velha mentira sobre armar a população

Artigo publicado no jornal Foice&Martelo Especial nº 07, de 28 de maio de 2020. Confira a edição completa

O objetivo deste artigo é trazer dados e análises sobre a realidade brasileira a partir dos discursos e atitudes supostamente pró-armamentistas do presidente Jair Bolsonaro. Concluímos que as ações do presidente dialogam apenas com um pequeno número de apoiadores que se organizam em torno do “mito”. Na prática, como veremos a seguir, o armamento geral da população, caso ocorresse, seria um fator de ameaça e desestabilização contra o próprio governo Bolsonaro.

Na reunião ministerial do dia 22 de abril, amplamente divulgada nos meios de comunicação, Bolsonaro trouxe novamente à tona a questão do armamento geral. Nessa reunião, que mais parecia o encontro de uma gangue de adolescentes enfurecidos, com discursos atravessados por frustrações individuais e até incompreensíveis em suas intenções, o presidente disse o seguinte:

“Olha, eu tô, como é fácil impor uma ditadura no Brasil. Como é fácil. O povo tá dentro de casa. Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer para impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo!”

Esta fala dá a entender que há real interesse de Bolsonaro em armar toda a população para garantir a “democracia” contra a “ditadura”. Ele argumenta também que “um filho da puta” qualquer poderia impor uma ditadura no Brasil, obviamente porque este estaria armado e todo o povo desarmado. Perdoem-me repetir o termo “filho da puta” ao longo dos próximos parágrafos, mas tenho convicção que Bolsonaro tenha se referido a lideranças com tendências autoritárias ou grupos e indivíduos que tentem impor, pela força, suas vontades, com exceção dele próprio. Quanto à caracterização do que seria “democracia”, convido o leitor a acessar o texto de Lenin “Democracia Burguesa e Democracia Proletária”, que fornecerá descrição detalhada de todos os fantasmas que se escondem por trás do termo “democracia”.

Vamos ao ponto mais importante. Quais as condições objetivas para que um trabalhador brasileiro possa obter uma arma de fogo? Segundo o IBGE (Pnad, 2019), em 2018, a renda média mensal de 60% dos trabalhadores brasileiros, ou 54 milhões pessoas, foi menor que um salário mínimo. Levando em conta que esses dados dizem respeito à situação anterior à crise econômica deslanchada pelo novo coronavirus, já naquela época, para ao menos ¼ da população, as condições econômicas de acesso a armamentos e treinamento eram dificílimas. Se a classe assalariada brasileira faz parte dos “cidadãos de bem” – classificação muito usada por Bolsonaro para aqueles que trabalham e não cometem crimes –, ela estaria, definitivamente, em apuros.

A Agência Brasil (2019)[1], canal oficial de notícias do Governo Federal, fez um levantamento e constatou que o gasto mínimo do brasileiro para ter uma arma em casa é de R$ 3,7 mil reais. Cada um dos 54 milhões de brasileiros “de bem” teria que trabalhar em torno de 4 meses para comprar sua arma e ter a posse registrada! Dentro deste gasto mínimo, a pesquisa contabilizou a arma mais barata encontrada hoje no mercado: um revólver calibre 38, de cinco tiros, da empresa Taurus, fábrica brasileira famosa internacionalmente por fabricar armamentos defeituosos, que ferem ou matam seus próprios operadores.

Entretanto, para se defender, não basta ter uma arma, é preciso saber usá-la. Um simples curso de tiro para iniciantes, onde são utilizadas de 100 a 150 munições, sob vigilância de um instrutor credenciado pela Polícia Federal e em um ambiente controlado, podem ter custos superiores a um mês de trabalho para ao menos 60% da população brasileira, variando entre R$ 800 e R$ 1.500 para algumas horas de treinamento – dependendo da região do país e do estande de tiro escolhido. Ninguém sai de um curso como esse preparado para combate. Um jovem habilidoso sairá sabendo manusear uma arma e algumas posições de tiro, talvez acertar um alvo amplo e estático com razoável precisão. Nada mais. Com o curso para iniciantes, o gasto mínimo irá para R$ 4,5 mil .

No Rio de Janeiro, estado onde Bolsonaro e sua família têm residência, 25% da população está sob controle de grupos parapoliciais criminosos, conhecidos como “milícias”[2]. Esses grupos, em posse de armamentos de guerra como fuzis, granadas, veículos blindados, drones, e até foguetes, são impulsionados por agentes da ativa da polícia, do corpo de bombeiros e das forças armadas, ou por agentes que se descolaram desses aparelhos e agora são exclusivamente profissionais do crime. Poderíamos chamar as lideranças destes grupos ou quem com eles compactua de “filhos da puta” que querem “impor uma ditadura”? Melhor perguntar a Bolsonaro.

Mesmo que ele não responda, os moradores dessas áreas vivem uma “democracia” muito peculiar, parecida com a que existia na Grécia antiga, quando uma pequena parcela da população podia açoitar e matar mulheres e escravos ao seu bel prazer. Os grupos milicianos, para se sustentarem economicamente e expandirem suas operações, extorquem moradores cobrando taxas de “segurança” e impostos aplicados em mercadorias essenciais. Se o poder executivo não se faz presente nesses lugares para garantir a “democracia”, tampouco o judiciário. As milícias criaram seus próprios tribunais. Nos tribunais, a tortura é um dos métodos para interrogar suspeitos, e a pena de morte é um recurso importante para dissuadir e eliminar opositores e dissidentes.

O próprio ex-ministro da justiça do governo Temer afirmou que os comandantes dos batalhões da Polícia Militar são sócios do crime organizado, isto é, o crime organizado não é independente do aparelho do Estado, mas impulsionado e protegido por ele[3]. Em São Paulo, há evidências de que o governo do estado negociou em 2006 com o Primeiro Comando da Capital (PCC)[4] a entrega dos territórios periféricos em troca da “paz” nos bairros centrais. Este acordo informal persiste e se atualiza por trás das cortinas da “transparência pública” e da mídia burguesa.

E quanto aos trabalhadores, que não moram nesses territórios dominados pelo crime, ou aos camponeses pobres fora das cidades? No Brasil, é comum que qualquer protesto, greve, ou reunião com grande participação popular, mesmo que estejam estritamente dentro da lei, precisem enfrentar “filhos da puta” de todos os tipos, que ilegalmente ameaçam, perseguem, emboscam, dão golpes de porrete, lançam bombas de gás em grupos pacíficos e ordeiros, ou utilizam armas letais.

Será que “democracia” guardada pela Constituição de 1988 deixará o povo usar armas para lidar com as milícias, os narcotraficantes e a truculência policial? Vejamos o seguinte trecho do Artigo 5º:

“XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas (grifo nosso), em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;”

Se o próprio Estado faz parte do crime, e se a Constituição impede que o “cidadão de bem” se reúna com armas para fazer reuniões, como seria organizado qualquer empreendimento sério contra grupos que querem “impor uma ditadura”? Os decretos presidenciais podem até estabelecer regulamentação ou ampliar a posse e o porte de armas de fogo e munições. Na vida cotidiana, a maioria da população continuará excluída da possibilidade de obter equipamento e treinamento.

Mesmo nas forças armadas, apenas uma minoria ínfima dos praças (soldados, cabos e sargentos) – e até de suboficiais – obtém autorização para ter a posse ou portar armas. Se as forças armadas são para o presidente e seus apoiadores o orgulho do Brasil, por que os generais têm tanto medo de praças armados? Dentro da instituição o treinamento com armas de fogo é raramente oferecido para os praças. A maior parte dos conscritos já sabem desde o início que provavelmente dedicarão a maior parte do seu tempo a atividades administrativas ou de perfumaria das instalações e equipamentos, como capinar, limpar, pintar e repintar paredes, árvores, postes e tudo que possa ser coberto por dezenas de camadas de tinta várias vezes ao ano. Salvo para um pequeno grupo de praças que ingressam em treinamentos e tropas especiais, esta é a realidade: as armas de fogo são praticamente inacessíveis. Quando muito, alguns sargentos conseguem este direito após processo burocrático e lento. Bolsonaro nunca emitiu nenhuma declaração ou projeto de lei que contrarie esse fato.

Reconheço que as medidas do governo Bolsonaro facilitam a obtenção de armas de fogo e dá publicidade para centros de treinamento privados. Entretanto, podemos concluir, pelos dados expostos acima, que essas medidas atingem apenas uma minoria que pode pagar. Essa minoria é composta por três grupos sociais: trabalhadores especializados melhor remunerados, grupos abastados da pequena burguesia e o lumpemproletariado. Será este o povo brasileiro que garantirá a “democracia”? Bolsonaro não quer lutar contra a “ditadura” e pela “democracia”. Pelo contrário, seus atos e discursos ajudam a criar grupos de combate da pequena burguesia, muitos com aspirações totalitárias e abertamente anticomunistas. Esses grupos se reúnem livremente para conspirar em chácaras, clubes, stands de tiro e outros esportes de combate armado. Para o lumpemproletariado, as medidas de Bolsonaro facilitam a obtenção de equipamentos que serão utilizados em bairros pobres por milicianos e narcotraficantes para extorquir e oprimir a classe trabalhadora mais pobre.

Caso a luta de classes se transforme em guerra civil mais ou menos aberta, o capital financeiro internacional pode começar a financiar esses grupos de combate da pequena burguesia para que junto com lumpesinato ataquem a classe trabalhadora. A burguesia, nesse caso, decide eliminar fisicamente seus oponentes, e em grande escala, por fora do poder judiciário. Tal trabalho seria sujo e escandaloso demais para ser realizado diretamente pelo Estado. O fascismo e o nazismo foram a institucionalização desta prática de extermínio praticada contra o movimento operário.

Mas a utilização desses grupos de combate da pequena burguesia, que hoje estão preparando seus oficiais, é uma estratégia muito arriscada e cara para a burguesia. Por enquanto a estratégia fascista não está na mesa, pois a polícia, em aliança com o lumpemproletariado, está fazendo bem o trabalho de manter a classe trabalhadora reprimida. Portanto, Bolsonaro mente quando fala que quer armar toda a população. É um demagogo que tenta, sem sucesso, com a ajuda de alguns generais, aplicar um “autogolpe” para colocar todos os poderes da república sob seu controle.

Os únicos que compreendem o armamento geral da população como manifestação democrática, e lutam por isso, são os comunistas. Se a maioria da população é composta pela classe trabalhadora, armá-la é colocar sob ameaça a propriedade privada dos monopólios privados e o imperialismo, do qual Bolsonaro é fantoche. Como será uma greve geral ou o fechamento de uma empresa produtiva se os trabalhadores tiverem armas? O armamento ou o treinamento geral do povo brasileiro impulsionaria não só uma luta direta dos trabalhadores contra a repressão policial e contra grupos criminosos de milicianos e narcotraficantes, mas abriria o caminho da luta de massas por um governo realmente dos trabalhadores, sem patrões. Bolsonaro e os generais têm muito medo da população armada.

Referências:

[1] https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-01/para-ter-uma-arma-casa-o-gasto-minimo-e-de-r-37-mil

[2] https://www.conversaafiada.com.br/brasil/the-economist-milicias-controlam-1-4-do-rio

[3] https://oglobo.globo.com/rio/ministro-da-justica-diz-que-comandantes-de-batalhoes-da-pm-sao-socios-do-crime-organizado-no-rj-22013170

[4] http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/07/depoimento-mostra-que-governo-fez-acordo-com-faccao-em-2006-diz-jornal.html