Sexta-feira Sangrenta (21/6/1968) Foto: Evandro Teixeira

Bolsonaro e o fantasma do golpe de 1964

Artigo publicado no jornal Foice&Martelo Especial nº 08, de 11 de junho de 2020. Confira a edição completa.
O tensionamento provocado pelo avanço da crise do governo Bolsonaro colocou novamente no debate político a ideia de um possível golpe. Bolsonaro, cada vez mais acuado pelas fissuras em seu governo e pelas tensões com o Judiciário e mesmo com o Legislativo, estaria colocando no horizonte a possibilidade de um golpe. Um de seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro, parece ter animado ainda mais essa possibilidade ao declarar que teria chegado o momento de uma “ruptura institucional”. Além disso, não é incomum que os apoiadores de Bolsonaro defendam a ideia de uma “intervenção militar”.

O medo de um golpe é algo bastante vivo entre os brasileiros, o que parece ter ajudado a esquerda reformista a construir a narrativa de que teria ocorrido uma ruptura institucional com a manobra parlamentar que levou ao impeachment de Dilma Rousseff. Como em 2016, no atual contexto não se coloca a possibilidade de um golpe, afinal, Bolsonaro nem conta com o apoio dos militares para essa ação, nem a burguesia demonstra interesse na empreitada. Por outro lado, não há por parte do imperialismo nenhuma indicação de que apoiaria uma aventura como essa no Brasil.

O contexto contemporâneo é muito diferente daquele do começo da década de 1960. Não se vive mais a chamada “Guerra Fria”, ou seja, a ameaça comunista deixou de ser algo concreto depois do fim da União Soviética e de seus satélites e do enfraquecimento do governo de economia planificada cubano. 

O que foi a “Guerra Fria”? Depois da Segunda Guerra, em 1945, houve uma falsa polarização política internacional entre Estados Unidos e União Soviética, buscando angariar apoio para suas políticas. Essa disputa parecia ganhar mais força à medida em que a União Soviética, ainda que burocratizada, conseguia, por meio da economia planificada, desenvolver-se como potência econômica e militar. Nas décadas de 1950/1960, apesar de todas as distorções do regime stalinista, a experiência soviética mostrava aos trabalhadores de todo o mundo que era possível superar o capitalismo por meio de uma revolução.

De onde saía essa “guerra”? Ela era, em ultima análise, um reflexo distorcido da luta de classes a nível mundial. Após a Segunda Guerra, as revoluções começaram a explodir em todo o mundo. Se os acordos de Yalta e Postdam, que traçaram a “divisão” do mundo depois do fim da guerra, procuravam ser respeitados por Stalin (que já havia “respeitado” o pacto com Hitler na década de 1930 e nada aprendeu com a invasão da URSS pelos nazistas), o mesmo não se pode dizer do imperialismo. Este aumentava a pressão sobre a URSS, convencido que esta era a fonte das revoluções, apesar de que Stalin comportava-se exatamente como o bombeiro. Mas, como já foi explicado, a roda da história é mais forte que os aparelhos burocráticos.

A classe operária, por meio do seu próprio movimento, impôs a expropriação do capital nos países que tinham sido invadidos pelas tropas soviéticas no final da guerra. Na China, uma facção do Partido Comunista (a facção de Mao) cresceu e, na esteira da revolução que destruía o poder do Kuomitang (o partido nacionalista chinês, anticomunista), tomou o poder. Revoluções acontecem no Vietnã e na Coreia, que levam a guerras de libertação em que o Partido Comunista ocupa um papel central. A Índia se torna independente e as revoluções nacionalistas árabes varrem os regimes feudais que eram sustentados pelos velhos imperialismos francês e inglês. E debaixo da “cortina de ferro”, no lado “soviético”, as revoluções em Berlim Oriental e Hungria mostravam que nem tudo eram flores do “lado socialista”. A guerra fria, um novo “inimigo externo”, era a desculpa ideal para a repressão doméstica, com altos e baixos na opressão que se abatia sobre toda a sociedade.

Os Estados Unidos, além de buscarem enfraquecer seu adversário, precisavam controlar as revoltas e revoluções que ocorriam em regiões que deveriam ser de sua influência. Esse fantasma que percorria o mundo chegou à América Latina por meio da Revolução Cubana, em 1959. Para o imperialismo, essas lutas nacionais continham o risco de movimentos que poderiam, além de buscar apoio político e militar no bloco soviético, também ser a antessala para uma revolução socialista, como ocorreu em Cuba e na China. 

Esse era o cenário temido pela burguesia brasileira e por seu aparato estatal, destacando-se ali os militares, reforçando a defesa do alinhamento econômico e político com os Estados Unidos. Para os militares, colocava-se no horizonte a defesa da segurança nacional, que, no âmbito interno, identificavam com a atuação de partidos de esquerda e de outras organizações dos trabalhadores e que se concretizava na disputa de dois projetos burgueses para o desenvolvimento do país. Um deles, cujo representante mais conhecido era o presidente João Goulart, apontava para um projeto de desenvolvimento da indústria nacional e centrado em medidas de melhoria das condições de vida da população por meio de um conjunto de reformas como a agrária, a urbana e a bancária. João Goulart afirmou no Comício da Central, em março de 1964, que seu lema era “progresso com justiça e desenvolvimento com igualdade”. Esse projeto tinha o apoio da maior parte dos setores da esquerda e das organizações dos trabalhadores, que colocavam sua ação e programa a reboque desse campo burguês.

O outro campo burguês defendia um projeto de nação atrelado aos interesses do imperialismo, no qual a economia brasileira estaria dominada por países estrangeiros e empresas multinacionais. Em novembro de 1961, a FIESP declarava “que a taxa de formação de capitais nacionais é reduzida e, portanto, devemos incrementá-la com recurso de fora”.

O Exército, como em todos os países latino-americanos e na maioria dos países atrasados, cumpria nisso um papel central. A maioria dos seus altos oficiais tinha se formado por meio de uma luta política ferrenha em seu interior contra a influência do Partido Comunista e de Prestes, que carregava uma aura de militar com larga experiência de batalha na “coluna Prestes”, que era admirada e estudada. Essa influência era combatida por oficiais que se passaram à direita e tinham combatido na coluna, assim como por um programa de formação militar, política e ideológica conduzida pelo imperialismo dos EUA. 

Um manifesto assinado por membros da cúpula militar em janeiro de 1963 afirmava que “o governo está violando a constituição permitindo que o comunismo ilegal desenvolva livremente sua atividade revolucionária e nitidamente contrária à carta magna do País”. Nesse período, havia mobilizações de trabalhadores em diferentes categorias, influenciadas por trabalhistas e comunistas e, mesmo no interior das forças armadas, um setor apoiava o projeto nacionalista.

O setor majoritário entre os militares, municiado pelo imperialismo dos EUA, acreditava que o projeto nacionalista poderia significar um primeiro passo para uma transição ao socialismo. O apoio do partido comunista ao governo João Goulart e o fantasma do comunismo colocavam os militares diante da necessidade de garantir a defesa da ordem burguesa e do alinhamento com os Estados Unidos. Em sua posse como presidente, em abril de 1964, Humberto Castelo Branco se referia ao golpe como um “remédio para os malefícios da extrema-esquerda”.

O cenário político atual é bastante diferente, a começar pelo fim da Guerra Fria. Mesmo que existam fissuras e disputas internacionais, não existe uma polarização semelhante à que marcou os embates entre Estados Unidos e União Soviética. A onda revolucionária que varreu o mundo em 2019 não tinha uma direção e um centro reconhecidos a nível internacional. Os movimentos que vão se construindo em meio à pandemia se dão por fora dos partidos e organizações tradicionais, que na prática defendem o mesmo aparato estatal que os militares e a burguesia.

Entre mobilizações dos trabalhadores que possam colocar em risco a frágil institucionalidade e a manutenção de Bolsonaro no poder, por agora a burguesia parece aceitar a segunda opção enquanto ele tiver a disposição de realizar o programa de destruição de direitos e conquistas dos trabalhadores. Nesse sentido, qualquer intenção golpista que passe pela cabeça de Bolsonaro ou a retórica de seus filhos e seguidores não tem nenhum impacto na realidade. Essas declarações podem, no máximo, servir para manter mobilizada sua base social e tentar consolidar um núcleo coeso de sua militância. Por isso, na atual conjuntural o combate dos comunistas (marxistas) organizados na Esquerda Marxista passa por entender e explicar pacientemente o processo histórico e político que se está passando e, por outro, combater Bolsonaro no que ele realmente é, ou seja, um demagogo com pretensões bonapartistas. É neste combate que estaremos construindo um verdadeiro Partido e uma Internacional Revolucionária.