A Nota de R$ 200 e a inflação (parte 1)

Artigo publicado no jornal Foice&Martelo Especial nº 13, de 20 de agosto de 2020. CONFIRA A EDIÇÃO COMPLETA.

O anúncio da nova nota de R$200 causou bastante comoção nas redes sociais e entre os economistas. De um lado, memes com um vira-lata para ser o símbolo da nova nota animaram as redes e, por outro, as velhas memórias inflacionárias foram ressuscitadas. Para os marxistas, é preciso compreender as causas além das aparências e utilizar a oportunidade para aprofundar nossos conhecimentos sobre o papel da moeda na sociedade capitalista desde um ponto de vista marxista e algumas das principais teorias da economia monetária.

O que levou o Banco Central a lançar uma nova nota?

A última nota lançada pelo Banco Central foi a de R$20 em 2002 e, um ano antes, a de R$2. Em 2005, a velha nota verdinha de R$1 deixou de circular no Brasil. Como sabemos, o papel-moeda (dinheiro) também é uma mercadoria e, portanto, também possui custos de produção. O fato é que ao ter uma mesma nota que corresponde a um valor maior, reduz-se o custo de produção do dinheiro. Mas isso não explica a história inteira.

Conjunturalmente falando, a crise econômica, aprofundada pela pandemia do coronavírus, aumentou os níveis de endividamento da população. Em julho de 2020, o número de endividados no Brasil bateu um recorde e o total de endividados chegou a 67,4%. Essa porcentagem é 3,3% maior que no mesmo período do ano passado, quando o total de endividados era de 64,1%.

Em situações como essa, as pessoas tendem a utilizar mais papel-moeda para suas transações, com medo de que o banco subtraia automaticamente seu dinheiro, o que leva a um aumento da demanda por liquidez no sistema monetário, isto é, aumenta a necessidade por papel-moeda em circulação na economia. Isso já havia sido constatado anteriormente pelo Banco Central. Em maio, o BC decidiu reduzir a alíquota exigida para os depósitos compulsórios (recursos que os bancos são obrigados a deixar depositados no BC). Essa alíquota foi reduzida de 25% para 17% até 14 de dezembro, para liberar cerca de R$68 bilhões na economia, com o objetivo de amenizar os impactos causados pela pandemia. E essa não é uma jabuticaba brasileira, mas uma tendência mundial. Vemos isso (a demanda por liquidez) não só por meio desse tipo de instrumento de política monetária, mas também pelos empréstimos aos bancos comerciais, o socorro às grandes empresas via BNDES, aqui no Brasil, com novas linhas de crédito e liberações trilionárias, como o coronabonds da comunidade europeia, com previsão de € 1,5 trilhão na economia, e a quantitative easing ou flexibilização quantitativa da moeda, que efetivamente cria dinheiro novo no formato virtual.

Agora, do ponto de vista estrutural, o Brasil é um país com uma gigantesca desigualdade social e concentração de renda. Em outubro de 2019, o IBGE constatava que a renda do 1% mais rico é 34 vezes maior que da metade dos mais pobres. Enquanto a parcela mais rica ganhava em média R$27.744 por mês, os 50% mais pobres ganhavam cerca de R$820. Com a pandemia, o patrimônio dos 42 bilionários do Brasil passou de US$123,1 bilhões para US$157,1 bilhões – e não se esqueça de considerar que o dólar está na casa dos R$5,40. Isso significa, entre outras questões, que uma boa parte da população sequer acessa o sistema de crédito e as maneiras virtuais de realizar transações (aplicativos para transferências e pagamentos, por exemplo).

Para se ter uma ideia do impacto disso, são cerca de 45 milhões de brasileiros acima dos 16 anos que são “desbancarizados”, isto é, não movimentam conta bancária há mais de seis meses ou que optam por não ter conta em banco, segundo dados do Instituto Locomotiva. Daí que, para ser beneficiário do auxílio emergencial, por exemplo, uma conta digital teve de ser criada, e essas pessoas agora podem utilizar o sistema bancário, mas somente na ponta do processo, para receber. As demais operações são feitas com o dinheiro vivo, e por isso há as filas que temos acompanhado na frente dos bancos e das casas lotéricas. Mesmo com a alternativa criada pela Caixa com o aplicativo Caixa Tem, que permite pagamentos e transferências, é preciso lembrar que um a cada quatro brasileiros sequer têm acesso à internet.

Esses são os principais motivos para o lançamento da nova nota, mas eles ainda não explicam o porquê de uma nota de R$200 e não de um valor ainda maior, ou a impressão de notas de valores menores (R$ 100, R$ 50, R$ 20), por exemplo.

Uma nota maior pode gerar inflação?

A inflação é um aumento generalizado nos preços da economia, e o anúncio de uma nova nota trouxe especulações sobre o efeito dela nos preços, pois quando a economia começa a entrar num processo inflacionário as notas de menor valor tendem a se tornar insuficientes e são necessárias notas cada vez maiores para não precisar ir com um carrinho de dinheiro ao supermercado. O Brasil passou por uma experiência desse tipo na década de 1980 e até meados da década de 1990, transitando por diferentes planos de estabilização até a implantação do Real. Daí que a criação de uma nota maior trouxe esse fantasma da hiperinflação novamente às cabeças. Há algumas visões dentro da economia que relacionam a moeda com a inflação.

Segundo a Teoria Quantitativa da Moeda (TQM) clássica, uma variação na quantidade de moeda de um país leva a variações nos preços da economia. Um aumento na quantidade de moeda gera um aumento nos preços, e vice-versa. Essa explicação é condizente com a versão de transações da TQM, que assume como postulados que há um volume constante de transações de bens e serviços na economia, que a moeda tem um papel neutro no longo prazo e que a velocidade de circulação da moeda é constante, isto é, os maiores volumes de pagamentos são feitos, por exemplo, mensalmente e quinzenalmente e não a cada semana. Essa versão aceita a Lei de Say[1], que afirma que as variações na demanda (inclui-se aqui variáveis monetárias) não interferem na economia real. Segundo essa visão, portanto, um aumento da quantidade de moeda não teria impacto na economia real e, portanto, não levaria a um aumento nos preços.

Keynes (1883 – 1946), por sua vez, rejeita os princípios da Lei de Say e, em sua Teoria Geral, explica que a moeda participa da determinação dos equilíbrios básicos da economia e que há quatro motivos para demandar moeda: o motivo transações, o motivo precaução, o motivo especulação e o motivo “finance”. A análise de Keynes sustenta que quando há uma situação de incerteza na economia, o rendimento dos bens de capital fica menos positivo, cai a vantagem de ter bens de capital e aumenta a vantagem da liquidez, mais moeda, menos investimento. Quando há inflação, ocorre uma apreciação positiva dos bens de capital e do investimento, mas quando há deflação acontece uma apreciação positiva dos ativos financeiros e da moeda. Para Keynes, portanto, só haverá inflação quando o aumento dos preços não for contraposto com o aumento da produção.

Os economistas burgueses afirmam que a emissão da nova nota não tem por objetivo injetar moeda na economia, mas aumentar a liquidez do sistema monetário, e, por isso, a nova nota não teria capacidade para gerar inflação. Eles afirmam que a tendência da economia brasileira, ao contrário de uma inflação, está num contexto de deflação, dado o forte caráter recessivo que estamos enfrentando na economia, com um tombo de 10,94% no PIB do segundo trimestre. Segundo essa visão clássica, que está em diversos jornais, a demanda não afeta a economia real, não haverá alterações nos níveis dos preços. Mas, como explicamos a questão do ponto de vista marxista? Na próxima edição do jornal Foice & Martelo vamos discutir mais sobre a teoria do valor-trabalho de Marx e as funções do dinheiro.

[1] Jean Batiste Say, economista burguês, 1767 – 1832

Fontes:

https://economia.ig.com.br/2020-07-29/nota-de-r-200-real-ganha-nova-cedula-apos-18-anos-veja-outras.html

https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/economia/endividamento-das-fam%C3%ADlias-bate-recorde-no-brasil-revela-pesquisa-1.456673

https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-03/bc-anuncia-reducao-de-compulsorio-e-emprestimo-instituicoes

https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/10/16/rendimento-brasileiros-ibge-estudo.htm

https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/07/27/patrimonio-dos-super-ricos-brasileiros-cresce-us-34-bilhoes-durante-a-pandemia-diz-oxfam.ghtml

https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-08/brasil-tem-45-milhoes-de-desbancarizados-diz-pesquisa

https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-04/um-em-cada-quatro-brasileiros-nao-tem-acesso-internet#:~:text=A%20Pesquisa%20Nacional%20por%20Amostra,n%C3%A3o%20tem%20acesso%20%C3%A0%20internet.

https://www.afp.com/pt/noticia/3958/futuro-fundo-de-recuperacao-da-ue-chegara-eu-15-bi-doc-1qw6tz1

https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/08/14/previa-do-pib-do-bc-indica-tombo-de-quase-11percent-no-2o-trimestre-e-inicio-de-recessao.ghtml

https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/07/nota-de-r-200-nao-e-sinal-de-que-a-inflacao-vai-voltar.shtml