Imagem: Jacques Tardi

A Comuna de Paris e a educação

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Há 150 anos, no dia 18 de março, os trabalhadores de Paris estabeleceram a Comuna de Paris, a primeira experiência na história do poder dos trabalhadores. Os aprendizados desta experiência são muitos, mas neste texto se tentará abordar as questões relacionadas à educação.

Antes disso, é preciso contextualizar brevemente o surgimento da Comuna de Paris. Em 1870, França e Prússia iniciaram uma guerra imperialista pelo controle de mercados e territórios. O resultado do conflito foi a derrota da França, que propôs ao governo prussiano uma trégua para negociações em 28 de janeiro de 1871. A Assembleia Nacional Francesa reuniu-se em Bordeaux, em 13 de fevereiro, nomeando Thiers o primeiro presidente da Terceira República Francesa. O acordo, negociado por Thiers, foi assinado em 26 de fevereiro e ratificado em 1º de março.

Mas os trabalhadores de Paris, que haviam sido armados para a defesa da capital francesa, e que passavam por uma série de privações, não acataram o comando de Thiers, forçando o governo a mudar a capital para Versalhes. Em uma tentativa de retomar o poder de Paris, Thiers fez uma investida militar sobre a cidade em 18 de março de 1871, com 20 mil soldados do exército regular francês. A população e a Guarda Nacional, sob o comando dos trabalhadores, conseguem a rendição das tropas de Thiers e declaram a Comuna de Paris.

A experiência da Comuna de Paris foi um avanço na luta dos trabalhadores de todo mundo, serviu de inspiração e exemplo de organização e de conquistas para a época. Algumas conquistas são notórias ainda hoje, e a educação concentra parte delas. Para entender melhor como houve uma mudança substancial na concepção de educação na Comuna de Paris, é necessário entender a relação entre o modelo de educação e o modelo de sociedade de cada época.

A educação como produto de uma sociedade de classes, a emergente burguesia e o ensino para todos

Para a concepção marxista, as ideias de uma sociedade são produto das ideias da classe dominante dessa sociedade. Karl Marx e Friedrich Engels, na obra A ideologia alemã, definem essa premissa:

“As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção espiritual. As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação. Os indivíduos que compõem a classe dominante possuem, entre outras coisas, também consciência e, por isso, pensam; na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que eles o fazem em toda a sua extensão, portanto, entre outras coisas, que eles dominam também como pensadores, como produtores de ideias, que regulam a produção e a distribuição de ideias de seu tempo; e, por conseguinte, que suas ideias são as ideias dominantes da época”.

Desta forma, é preciso entender que a produção e compartilhamento do conhecimento em uma sociedade também estão atrelados à organização social, isto é, à configuração das classes sociais de sua época. Assim, a escola caminha paralelamente ao desenvolvimento das classes sociais e da luta entre elas, ficando condicionada ao seu contexto histórico.

No caso francês, na época anterior à Revolução Francesa, a educação era atrelada à igreja e os conhecimentos mais amplos estavam restritos à uma camada privilegiada da população, enquanto para a maioria era destinada um ensino voltado à instrução de ofícios artesanais. Um dos grandes pensadores da educação no período revolucionário francês foi o filósofo iluminista Marquês de Condorcet (1743-1794), pioneiro na defesa da educação pública, gratuita, laica e para todos.

Condorcet propôs diversas mudanças, como o ensino laico (independente da Igreja) e igual para homens e mulheres e a instituição de níveis básicos de educação para toda a população. Estas proposições advinham de uma concepção mais ampla e progressista da sociedade, entendendo a educação não como uma simples instrução ou refinamento intelectual das classes altas, mas como um projeto de sociedade, em que os “novos” cidadãos da República Francesa tivessem nos conhecimentos a base para a prática de seus direitos civis, políticos e sociais. Além disso, Condorcet demonstrou uma visão mais igualitária ao defender o voto feminino, o fim da discriminação a protestantes e judeus e da escravidão e o direito de cidadania dos negros.

As ideias de Condorcet ganharam terreno no contexto de transformação da sociedade implementado pela Revolução Francesa de 1789. Porém, esta revolução, iniciada com o apoio popular, foi ganhando um caráter de revolução burguesa, isto é, de implementação e consolidação da burguesia como classe dominante. Sendo assim, os interesses da burguesia perpassaram pela proposta de educação, não levando até o fim as propostas de uma educação pública, gratuita e para todos.

Algumas propostas, como a laicidade da educação e a instrução mais ampla da população, eram estratégicas para quebrar o poder da Igreja sob a sociedade e consolidar os novos valores da sociedade burguesa. No período entre a Revolução Francesa (1789) e a Comuna de Paris (1871), as disputas pelo controle da sociedade entre monarquistas, liberais e socialistas culminou em uma série de eventos de revolução e contrarrevolução. Com a queda de Napoleão, em 1814, houve o período de restauração na França, em que a monarquia retornou ao poder, assumindo o rei Carlos X.

Em 1830, Carlos X decreta medidas para restringir o poder do legislativo e suspender a liberdade de imprensa, resultando em sua queda, com a substituição pelo rei Luís Filipe I, considerado o “rei burguês”, pelo alinhamento liberal. Em 1848, com a França passando por uma crise econômica e a represada insatisfação pelo conservadorismo após a Revolução Francesa, os trabalhadores franceses fizeram um levante contra o governo, conhecido como a Revolução de 1848 e parte de uma série de levantes ocorridos no mesmo ano em diversos países. É neste período que se instituiu o sufrágio universal masculino e a redução da jornada de trabalho de 12 para 10 horas diárias na França.

Portanto, o processo revolucionário na França não se limitou aos eventos do final do século XVIII, mas adentrou no século seguinte, marcado por avanços e retrocessos, com disputas pelo poder envolvendo burguesia, monarquia e clero. O período da Restauração deixou nítido a maleabilidade da burguesia perante os poderes da sociedade feudal, acatando uma monarquia constitucional.

A Comuna de Paris: educação pública, gratuita, para todos e laica

Com a mudança no controle da sociedade, destituindo (mesmo que por um breve período) a burguesia e estabelecendo o poder dos trabalhadores, a Comuna de Paris conseguiu ir além das reformas educacionais até então instituídas, e implementando de fato uma educação pública, gratuita e para todos. Além disso, a burguesia, durante o século XIX, não conseguiu se desvencilhar e enterrar por completo a submissão do Estado aos interesses religiosos.

Em Guerra Civil na França, Marx relata a iniciativa da Comuna de enterrar, definitivamente, a interferência da Igreja no Estado e ampliação da educação para toda a população:

“Uma vez desembaraçada do exército permanente e da polícia, elementos da força física do antigo governo, a Comuna estava desejosa de quebrar a força espiritual de repressão, o “poder dos curas”, pelo desmantelamento e expropriação de todas as igrejas enquanto corpos dominantes. Os padres foram devolvidos aos retiros da vida privada, para terem aí o sustento das esmolas dos fiéis, à imitação dos seus predecessores, os apóstolos. Todas as instituições de educação foram abertas ao povo gratuitamente e ao mesmo tempo desembaraçadas de toda a interferência de Igreja e Estado. Assim, não apenas a educação foi tornada acessível a todos, mas a própria ciência liberta das grilhetas que os preconceitos de classe e a força governamental lhe tinham imposto”.

Durante a existência da Comuna de Paris, a educação se tornou gratuita, laica e obrigatória, foram criadas escolas noturnas, todas as escolas passaram a ser de frequência mista, considerou-se instituir uma Escola Nacional de Serviço Público (da qual a atual Escola Nacional de Administração francesa, criada em 1945, é uma cópia), e o salário dos professores foi duplicado.

Também foi estabelecida a Delegação do Ensino da Comuna, responsável por estabelecer a proposta de ensino da Comuna de Paris. Esta delegação proclamou, em 17 de maio de 1871, o que ficou conhecida como a Circular Vaillant, sob a assinatura de Edouard Vaillant:

“Considerando que é importante que a Revolução Comunal afirme seu caráter essencialmente socialista por uma reforma do ensino, assegurando a todos a verdadeira base da igualdade social, a instrução integral a que cada um tem direito e facilitando-lhe a aprendizagem e o exercício da profissão para a qual o dirigem seus gostos e aptidões.

Considerando, por outro lado, que enquanto se espera que um plano completo de ensino integral possa ser formulado e executado, é preciso decretar as reformas imediatas que garantam, num futuro próximo, essa transformação radical do ensino.

A Delegação do Ensino convida as municipalidades distritais a enviar, no mais breve prazo possível, para o doravante Ministério da Instrução Pública, Rua de Grenelle Gerpain, 110, as indicações e as informações sobre os locais e estabelecimentos melhor apropriados à pronta instituição de escolas profissionais, onde os alunos, ao mesmo tempo que farão a aprendizagem de uma profissão, completarão sua instrução científica e literária”.

Na Circular Vaillant, nota-se a concepção de um ensino voltado à instrução laboral, bem como à instrução mais ampla, como a científica e a literária, dissipando a suposta dicotomia entre o ensino propedêutico e o ensino técnico. Infelizmente, a circular foi proclamada onze dias antes da derrotada da Comuna de Paris. Por outro lado, mostra a urgência da transformação da educação, fazendo com que a defesa de um ensino amplo para a classe trabalhadora deixasse de ser apenas uma retórica.

O fracasso intencional da burguesia em promover a educação púbica, gratuita e para todos

Atualmente, a palavra de ordem pela educação pública, gratuita e para todos se apresenta como uma reivindicação de transição, pois não pode ser completamente implementada no capitalismo e, assim, estabelece a possibilidade de transformação da sociedade a partir de uma demanda concreta.

A burguesia, que outrora abraçou a ideia de um ensino amplo a toda a população, implementou sob o capitalismo a diferenciação entre o ensino voltado à classe dominante e os trabalhadores. Evidentemente, esta diferenciação já havia no feudalismo. Porém, no capitalismo, com o progresso científico e tecnológico, a instrução dos trabalhadores não pode ser feita apenas com a instrução de técnicas artesanais, necessitando conhecimento mais amplos dos diferentes campos da ciência. Cabe ressaltar que, em determinados países cuja economia não acompanhou os desenvolvimentos científicos, a burguesia local conviveu tranquilamente com absurdas taxas de analfabetismo.

Com a necessidade de uma maior instrução da classe trabalhadora, tendo como objetivo qualificar a força de trabalho e aumentar a produtividade, o ensino mais amplo passou, a contragosto, a ser necessário.

É a partir dessa prerrogativa que vemos, por exemplo, as reformas no ensino propostas em diversos países na década de 90, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a implementação de sistemas de avaliação nacionais, e até iniciativas reacionárias, como o “Escola sem Partido”.

Além disso, também há a uma ofensiva pelo controle direto das instituições públicas de ensino, isto é, a privatização, por meio de iniciativas público-privadas. Nesta miríade de “salvadores da educação”, temos a Fundação Lemann, a Fundação Roberto Marinho, o Instituto Ayrton Senna, o Instituto Natura, o Instituto Unibanco e o movimento Todos Pela Educação.

O desafio educacional da Revolução Francesa permanece até hoje: livrar a educação dos interesses da classe dominante. A Comuna de Paris demonstra que o caminho para tal tarefa passa, necessariamente, pela disputa do controle da sociedade. Não há atalhos, não há reformas que possam levar a dissipar a contradição de classe. Há muito tempo que a burguesia deixou seu caráter revolucionário para trás, e hoje nos resta, na educação e na totalidade da sociedade, um sistema que faz todos os esforços para manter a dominação, utilizado inclusive de meios reacionários. É a defesa da educação pública, gratuita e para todos, abandonada pela Revolução Francesa e retomada pela Comuna de Paris, que podemos avançar nas conquistas concretas na educação e avançar na construção de uma sociedade socialista.