Tropas da Brigada Erhardt em março de 1920 sobre Berlim, antes de serem derrotadas por uma greve geral, expressão da unidade do proletariado sistematizada pela tática da frente única proletária e pela Carta Aberta de Paul Levi

A chave para a revolução: Paul Levi e a Frente Única Proletária

“Vocês estão dispostos a uma luta pelo cumprimento destas demandas?”
(Paul Levi, “Carta Aberta”, 1921)[1]

Na atual conjuntura, quando as direções de esquerda cedem ao programa de colaboração de classes e à agenda da burguesia liberal, é fundamental um sério estudo, debate e ação quanto à questão da frente única proletária. Trata-se de um tema central para o movimento das massas trabalhadoras e para os marxistas em particular. Esse é o sentido que nos  debruçar nas experiências de Paul Levi, dirigente comunista alemão, especialmente da “Carta Aberta”, lançada por ele e seu partido em janeiro de 1921.

Apesar da sistematização da ideia da frente única proletária ser corretamente creditada a esse herdeiro político de Rosa Luxemburgo, sua origem não está nas discussões do Partido Comunista da Alemanha (KPD) e do VKPD (Partido Comunista Unificado da Alemanha). Podemos rastrear a gênese da frente única na obra de fevereiro de 1848 escrita por Karl Marx e Friedrich Engels, o Manifesto do Partido Comunista. Os fundadores do socialismo científico expressaram com irrefutável clareza que a tarefa dos comunistas dentro do movimento de massas era superar a fragmentação do proletariado em diferentes organizações, seitas e bandeiras.

Entretanto, inegavelmente, é no século 20 que os comunistas reorganizados na 3ª Internacional vão formular a frente única como a chave para a revolução socialista. Essa tática política elaborada no segundo e no terceiro congressos dessa organização foi a síntese da experiência anterior do movimento revolucionário. A experiência do Partido Bolchevique em 1917 já havia mostrado que uma política voltada a unificar a classe e clarificar suas tarefas poderia abrir o caminho para os revolucionários e levar o conjunto do proletariado a tomar o poder da burguesia. Essa orientação havia sido apresentada por Lênin em suas Teses de Abril, que mudaram a linha política aplicada pelo partido e permitiram ao proletariado aproveitar as oportunidades que se abriram. Foi, porém, a partir das experiências do proletariado alemão nos anos de 1919 a 1921 que essa perspectiva foi mais bem sistematizada como tática.

Processo de formulação da tática da frente única

Quando dos assassinatos de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht em 1919, a direção do Partido Comunista Alemão foi disputada e conquistada em 1921 por Paul Levi, que contribuiu para o surgimento de um partido operário revolucionário com mais de 350 mil militantes. Esse extraordinário avanço realizou-se em um contexto absolutamente instável da história alemã. O Estado havia acabado de ser derrotado na Primeira Guerra Mundial e tinha recém assinando o humilhante Tratado de Versalhes. Iniciava-se também a escalada nazista, que utilizava do acirramento da luta de classes, com o financiamento da burguesia, para aniquilar sindicatos e partidos proletários, visando assegurar a propriedade privada dos meios de produção.

Porém, se nos atentarmos, a tática política da frente única já estava expressa na fundação do KPD em dezembro de 1918 e janeiro de 1919, quando Levi, orientado por Rosa, defendeu a participação do partido nas eleições para a Assembleia Nacional Constituinte. Compreendiam eles nesse momento que era preciso fazer com que o programa marxista chegasse às massas trabalhadoras alemãs atentas à produção da Constituição de Weimar. Era preciso explicar não ao parlamento, mas sim ao povo, que uma república democrático-burguesa não bastaria para retirar o proletariado da crise. Tratava-se de explicar para as massas que a saída passaria pela organização independente dos trabalhadores e por conselhos operários, sob um governo proletário, capazes de sacudir a Alemanha, tal qual os russos haviam acabado de fazer.

Contudo, ao contrário do que defendeu Levi, os membros do KPD votaram pelo isolamento político do partido, eximindo-se da responsabilidade histórica de dirigir as massas, principalmente neste contexto já mencionado do pós-Primeira Guerra. Esse recuo nos processos aqui estudados é importante para compreendermos a difícil tarefa de Paul Levi e dos demais comunistas para pôr em prática a frente única proletária, tanto dentro do KPD, quanto para todo o movimento de massas na Alemanha, hegemonicamente dirigido pela social-democracia.

Isso nos leva a relembrar os acontecimentos de março 1920, uma espécie de prévia do Putsch da Cervejaria de 1923, quando o jornalista e funcionário público Wolfgang Kapp e o general Walther von Luttwitz lideraram uma tentativa de golpe à república governada pelo socialdemocrata Friedrich Ebert. Assim como Hitler, esses fracassados reacionários buscaram manejar as imposições do Tratado de Versalhes para obter apoio popular. Porém, foram derrotados por uma gigantesca greve geral mobilizada pelos sindicatos operários. Todavia, o comitê central do KPD fora mais uma vez omisso, enquanto Paul Levi estava na prisão de Moabit, em Berlim, encaminhando cartas ao partido exigindo a mobilização dos comunistas ao lado dos sindicalistas.

A direção do KPD em 1920 reunia essas duas traições em sua política. Eles repetiam que não moveriam um dedo para combater os reacionários em defesa de um governo da social-democracia e afirmavam que o proletariado alemão – o mais desenvolvido e formado da história ocidental – era inapto e ainda não teria condições de realizar tal empreendimento. A resposta de Paul Levi ao saber dessa posição foi clara: “Sabem o que isso significa? Isto é uma punhalada nas costas da maior ação do proletariado alemão!” (LEVI apud GAIDO, 2015, p. 25).

Como dito, mesmo sem a contribuição do Partido Comunista, os operários dirigidos por Carl Legien derrotaram o golpe e, na prática, propuseram um pilar da frente única proletária, um governo dos trabalhadores. Isto é, um governo composto pelos partidos operários. Essa proposta, naturalmente, fora apoiada por Levi, que entendia como os acontecimentos da luta de classes transformaram o caráter daqueles membros da social-democracia, dirigidos por Legien, após a vitória contra os reacionários. Temos aqui um exemplo de como a história é viva e dialética, transformando quantidade em qualidade a todo tempo.

Porém, a direção do KPD decidiu recusar a participação no governo do SPD (Partido Socialdemocrata Alemão), em 1921. Ainda assim, Levi conquistou um avanço nestas disputas contra os sectários de seu partido, a partir do que ficou conhecido como Oposição Leal. O KPD estabeleceu um compromisso de combate a qualquer agitação reacionária contra o governo, justamente porque esse governo do SPD excluía a presença de partidos burgueses.

Nos meses seguintes à vitória sindicalista contra os reacionários, Paul Levi, por meio dessas suas posições, ganhou musculatura em seu corpo dirigente, processo iniciado ainda em outubro de 1919 com suas Teses de Heidelberg. Os fundamentos destas teses eram: os comunistas devem participar das eleições, conformar seções nos sindicatos e combater o federalismo anarcossindicalista, em defesa do centralismo democrático. Essas ações expurgaram os esquerdistas do KPD. Além disso, promoveram a fusão da ala à esquerda do USPD (Partido Socialdemocrata Independente da Alemanha), a qual estava alinhando-se aos bolcheviques, em dezembro de 1920. Neste mês foi realizado o Congresso de Halle, na Alta Saxônia, no coração da Alemanha, resultando, além da fusão, na eleição de Paul Levi e Ernst Daumig (USPD) como presidentes do novo KPD, o VKPD (Partido Comunista Unificado da Alemanha).

Esses foram vários exemplos importantes de aplicação da tática da frente única proletária no contexto alemão. Além disso, Levi também contribuiu com as teses discutidas no âmbito da Internacional Comunista. Suas posições foram sintetizadas e aprofundadas nos congressos de 1921 e 1922, os quais orientaram a atuação dos comunistas de todo o mundo capitalista em um governo operário-camponês e sobre as condições de participação em governos operários.

Carta Aberta

A partir deste itinerário chegamos ao florescer da sistematização da frente única proletária por Paul Levi. A organização operária na Alemanha enfrentava tanto a burguesia quanto o controle do SPD sobre os sindicatos. Logo, a atuação dos comunistas do VKPD dava-se em busca da vanguarda, realizando propaganda revolucionária às camadas mais avançadas das massas trabalhadoras, buscando preencher os possíveis vácuos deixados pelas debilidades reformistas da social-democracia.

Neste sentido, surge a célebre Carta Aberta do Partido Comunista Unificado da Alemanha, em janeiro de 1921, encaminhada para os demais partidos de esquerda. Obviamente ao principal, o SPD, e para todo o movimento da classe trabalhadora. Os elementos dessa carta agrupam o complexo fundamental para um governo dos trabalhadores, expressam essa tal de frente única proletária que tanto buscamos até nossos dias, combatendo as conciliações e o esquerdismo, doença infantil do comunismo no dizer de Lênin.  

Nominalmente, Levi, em nome do VKPD, lançou a pergunta “vocês estão dispostos a uma luta pelo cumprimento destas demandas?”. Os destinatários da Carta Aberta foram: Federação Geral de Sindicatos Alemães; Associação das Ligas de Servidores Social-Democratas; União Geral de Trabalhadores; Sindicato de Trabalhadores Livres; Partido Social-Democrata da Alemanha; Partido Social-Democrata Independente da Alemanha e Partido Comunista Operário da Alemanha.

Mas quais eram as demandas diante da “progressiva decomposição do capitalismo, as repercussões da incipiente crise mundial […], a crescente desvalorização da moeda e o aumento progressivo no preço de todos os alimentos e bens de consumo, o aumento do desemprego e o empobrecimento das massas” (LEVI apud GAIDO, 2015, p. 46)? Eram as seguintes:

  • Lutas salariais.
  • Combinação entre as lutas de cada categoria (públicas e privadas).
  • Aumento de todas as pensões das vítimas da guerra.
  • Regularização e aumento do seguro desemprego.
  • Entrega de alimentos subsidiados aos assalariados e aos de baixa remuneração sob supervisão sindical.
  • Confisco imediato de todos os quartos habitáveis vazios para a ocupação obrigatória dos sem-teto.
  • Expulsão forçada de pequenas famílias em grandes apartamentos e casas.
  • Controle de todas as matérias-primas existentes e do cultivo, colheita e comercialização de produtos agrícolas, a partir dos conselhos operários.
  • Desarmamento e dissolução das milícias burguesas.
  • Criação de organizações proletárias de autodefesa.
  • Anistia aos presos políticos e aos presos por roubos devido à pobreza.
  • Total liberdade democrática de expressão e ação.
  • Estabelecimento de relações comerciais e diplomáticas com a URSS.  

Ora, o que seriam essas demandas se não um autêntico programa de transição e um documento sistemático para a efetivação da frente única proletária? Logo abaixo das exigências, o comitê central do VKPD acrescentou que compreendia essas propostas não como componentes do socialismo, mas sim do processo de conquistas das necessidades mais básicas da classe trabalhadora e que, portanto, estava disposto a realizá-las ombro a ombro do governo socialdemocrata e das demais organizações acima citadas. Também afirmava que:

“Não escondemos as diferenças que nos separam de tais partidos. Pelo contrário, declaramos: exigimos das organizações a quem apelamos que não se comprometam apenas verbalmente com as bases de ação propostas, mas realizem as ações necessárias para alcançá-las. Perguntamos aos partidos a quem nos dirigimos: vocês consideram essas demandas corretas?  Presumimos que sim. Nós lhe perguntamos: vocês estão dispostos a empreender uma luta implacável conosco para alcançá-las? Para esta pergunta clara e inequívoca, esperamos uma resposta igualmente clara e inequívoca.  A situação requer uma resposta rápida.  Portanto, aguardamos uma resposta até 13 de janeiro de 1921. Caso os partidos e sindicatos aos quais nos dirigimos não estejam dispostos a lutar, o VKPD se considerará obrigado a travar esta batalha sozinho, e está convencido de que as massas trabalhadoras o seguirão.  Hoje o VKPD convida todas as organizações proletárias do país, e as massas trabalhadoras que as apoiam, a expressarem a sua vontade pela defesa comum contra o capitalismo e contra a reação, pela defesa comum dos seus interesses.” (LEVI apud GAIDO, 2015, p. 47).

O SPD se negou a subscrever esse programa de frente única proletária. Assim também fizeram os esquerdistas endereçados que o combateram. Cada um por seus motivos traidores. Entretanto, nas fileiras do movimento operário, nas bases dos sindicatos, dos metalúrgicos aos estivadores, a Carta Aberta do VKPD reverberou, tornou-se popular e de massas naqueles meses.

Entretanto, a destruição desta política de frente única pelos esquerdistas e burocratas na Alemanha foi operada ainda na década de 1920. Diante das consequências da “Ação de Março” de 1921, uma dura luta interna irrompeu no VKPD e na Internacional Comunista. Como resultado, Paul Levi foi afastado da direção do partido e esse comunista começa um trágico processo de desmoralização política. Já o partido passa a ser controlado pelo grupo de Thalheimer e Stoecker, altamente influenciados por Zinoviev e Bukharin. Sob essa influência, o partido irá abandonar a tática da frente única proletária. Em seu lugar, será implementada a tática do terceiro período, que com sua política de social-fascismo irá permitir a ascensão de Hitler ao poder e o esmagamento do proletariado alemão sobre a bota nazista.

Lições

As lições destes processos políticos na Alemanha e da formulação da tática da frente única proletária tal qual sintetizadas pela 3ª Internacional não se encerram em si. Elas são centrais para os marxistas na atualidade devido sua relevância e sua necessidade histórica, tanto para combater os ataques às condições de vida e de organização dos trabalhadores, quanto para a própria construção da revolução proletária internacional. Seus fundamentos teóricos são essenciais para a superação da divisão do proletariado e para colocar um fim à política de colaboração de classes das direções oportunistas que controlam o movimento operário.

Comentando sobre esses episódios ocorridos na Alemanha, Trotsky explicou em uma publicação de 1931[2] que a negação da frente única e a transformação da revolução proletária em “revolução popular” pelo stalinismo asfaltou o caminho para o nazi-fascismo. Em nosso tempo a aposta no fascismo para assegurar o regime do capital não está em pauta por parte da burguesia. Porém, as traições dos dirigentes da classe trabalhadora, negando novamente a frente única e a revolução proletária, são auxiliares da burguesia para continuar sua dominação e exploração sobre os trabalhadores.

As ideias cientificamente fundadas da revolução proletária são muito mais fortes que o aparelho, o dinheiro e os acordos que as direções podem realizar com nossos exploradores. Estas ideias, a efetiva prática da frente única proletária, com bases em documentos históricos como As Teses de Abril de 1917, a Carta Aberta de 1921 e o Programa de Transição de 1938, capacitam os marxistas a auxiliar o proletariado no cumprimento das demandas que levarão a humanidade do reino da necessidade ao reino da liberdade.


[1] LEVI, Paul. Carta abierta de la Zentrale del Partido Comunista Unificado de Alemanhia, 8 de enero de 1921. In.:______ GAIDO, Daniel. Paul Levi y los orígenes del comunismo alemán: el KPD y las raíces de la política de Frente Único (enero 1919-marzo 1921). Disponível em: <https://www.redalyc.org/pdf/3601/360133465002.pdf>. Acesso em: 4 jul 2022.

[2] TROTSKY, Leon. Revolução e Contrarrevolução na Alemanha, 1931.