Sapiens, uma breve história de mistificações (Parte 2)

Leia a Parte 1 deste artigo

De Hegel a Marx, do Espírito ao Materialismo Histórico

Marx e Engels escreveram no Manifesto Comunista que a história é a história da luta de classes. Os historiadores e filósofos capitalistas, assim como os revisionistas do marxismo, pretendem traduzir isso como se a história fosse a luta pelo domínio econômico. Nada mais longe da realidade.

As classes sociais nasceram de uma realidade histórica e social materialmente determinada. O que têm em comum os faraós e os sacerdotes egípcios com os democratas atenienses, os aristocratas espartanos, os republicanos romanos e a burocracia chinesa antiga? Eles eram senhores de escravos, sua economia dependia da escravidão de uma maioria que só trabalhava e nada tinha a esperar. Quando um homem se tornava escravo em uma mina ou plantação, o seu tempo de sobrevivência média era de 7 anos. E isso também valia para os escravos que depois o capitalismo usou em suas minas e fazendas na América. Os escravos, por sua vez, só podiam ser obtidos, nos tempos antigos, pelas guerras. Então, as nações e países viviam do comércio, mas viviam principalmente da guerra para obter escravos e “tocar” a sua vida cotidiana – plantar, colher, viver. Essa economia é que construiu a Grande Muralha Chinesa, as pirâmides do Egito, os Jardins da Babilônia, as maravilhosas estátuas e edifícios gregos, os aquedutos e estradas romanas.

Harari acha que a escravidão se baseia em “ordens imaginadas” e que os escravos aceitavam a sua escravidão porque aceitavam essa “ordem” das coisas. Cuidadosamente, Harari em todo o seu livro que fala em revoltas, revoluções, guerras e episódios edificantes e não tão edificantes, não fala da revolta dos negros do Haiti que libertou os escravos ou da revolta de Spartacus.  Afinal, é difícil explicar como os escravos que aceitam a tal ordem se revoltaram contra tal ordem.

Por outro lado, Harari tem a pretensão de que uma ordem maior pode se sobrepor a outra, sem explicar o que deu origem a uma ou a outra ou porquê em termos materiais os gregos conseguiram conquistar a Grécia (que tinha outros povos que foram escravizados). O desenvolvimento humano, inclusive científico, ainda que para nós hoje pareça algo muito “devagar”, tem a ver com isso. Os povos Helenos que conquistaram a Grécia sabiam produzir e manejar o ferro. Isso lhes dava uma vantagem que não poderia ser suplantada por nenhuma outra “ordem” que os antigos habitantes tivessem. Da mesma forma, quando os mongóis invadiram a China eles tinham algo que nenhum outro povo tinha – cavalos, arreios e controle sob eles, além de um novo tipo de arco que não foi suplantado por nenhum outro. E com isso conquistaram a maior parte do mundo conhecido – Ásia, Rússia e chegaram até a Europa. O que eles não tinham? Uma organização social que lhes permitisse dirigir e ampliar esse império. Além disso, um povo pequeno querer dirigir e escravizar milhões de homens tem como resultado uma “luta de classes” em que os dominados se revoltam e as milhares de revoltas, pequenas ou grandes, varreram os mongóis como os grandes dominadores e os homens que imaginavam conquistar o mundo foram empurrados de volta às suas terras de origem e sobrevivem muitos deles, até hoje, em condições iguais às dos seus antepassados.

Em outras palavras, não é um “espírito” que se aperfeiçoa, nem uma cultura, nem um “meme” que se reproduz. O que existe é a luta de classes que leva a evolução da humanidade.

Repisando novamente – a evolução não tem uma “seta” na direção do mais “evoluído”, do melhor, de mais justiça. Tanto podemos ir para uma situação de maior produção, de maior satisfação das necessidades humanas, como podemos retroagir.

O Império Mongol poderia ter levado a uma melhoria geral, mas levou a um retrocesso e a sua derrubada, a instalação do feudalismo na China. O sistema feudal japonês já tinha derrotado a tentativa mongol de invasão do Japão, mostrando a sua superioridade em termos de guerra. E no Ocidente, a destruição do império romano levou a uma era de devastação que ficou conhecida como a Idade das Trevas, mas que levou ao feudalismo e, com o seu desenvolvimento, ao capitalismo.

E ao nosso sapiens arrogante, que não consegue explicar a contento a derrota dos impérios da América, da China e do Japão para a pequenina Europa, é preciso lembrar que outros já estudaram isso e não basta ler Adam Smith para entender o capitalismo.

Da religião inventada ao materialismo vulgar

Antes de chegar à ciência e a sua fusão com o capitalismo, Harari discute as “religiões”. Ele traça um breve apanhado dos traços históricos que construíram as grandes religiões atuais – budismo, religiões cristãs e muçulmana – para chegar às três grandes e novas religiões que gerem o mundo atual – humanismo liberal, humanismo socialista e humanismo evolutivo. O nosso “Sapiens” tem realmente que inventar algo. Ao contrário da maioria dos críticos do marxismo que dizem ser o socialismo e o comunismo uma “espécie” de religião, ele chega à conclusão que toda a ideologia é religião. Assim, o conceito de religião é deturpado e destruído e qualquer conjunto de ideias passa a ser uma seita de uma das três grandes “religiões”. Infelizmente, para todos nós, ele não consegue explicar o que diferencia a maior parte das ciências sociais dessas religiões, o que diferencia economia de religião e o que diferencia as assim chamadas três grandes religiões.

O que existe por trás disso é algo simples – para defender o capitalismo em sua versão atual (o imperialismo), Harari tem que transformá-lo em uma religião que coloca o individual acima do social. E que é contrabalanceado pela “religião” socialista que coloca o social acima do individual. E como a contradição entre os dois é que constrói o progresso, é necessário colocar um diabo, o nazismo, que seria o tal humanismo evolutivo.

O que Harari faz, na realidade, é reescrever a história da 2ª Guerra (que ele passa por cima) em termos religiosos, aonde as duas grandes religiões boas (capitalismo e socialismo, neste caso, o estalinismo e a socialdemocracia) suplantam o nazismo. E conclui que de suas contradições (exemplificadas pela contradição entre democratas e republicanos nos EUA) alimenta-se o desenvolvimento da humanidade.

Ah, sim, é bom esquecer aqueles loucos como Lenin e Trotsky (apenas uma seita socialista) que fizeram a revolução e queriam construir uma sociedade diferente do capitalismo. No final, deu tudo na mesma e voltamos à boa e velha trilha, até derrotamos o nazismo juntos.

Mas, afinal, porque o capitalismo venceu? Depois de ter escrito mais da metade do seu livro explicando a história em termos da “ordem imaginada”, de ter reintroduzido uma dialética empobrecida que faria Hegel revirar-se no seu túmulo entre individual e social, Harari descobre na página 245 do seu livro o que Freud já tinha descoberto muito tempo antes – que a alma não existe e que os departamentos de ciência biológica e humanas não estão tão separados assim. Claro que a ele não ocorre perguntar porque apesar das descobertas científicas as religiões (reais, e não as imaginadas por ele) persistem, já que o futuro – segundo ele – é tão radioso e a miséria já não existe. Depois de tal salto que, em termos filosóficos, joga no lixo a primeira parte do seu livro, ele volta no capítulo 13 a sua nova teoria de história. E não nos preocupemos que ela é apenas uma velha teoria requentada. Afinal, como explicamos no início, o nosso Sapiens sofre da doença atual que acomete a ciência e a filosofia – o ecletismo, onde vale qualquer coisa.

Nas páginas 248/249, Harari escreve:

Forças geográficas, biológicas e econômicas criam restrições. Mas, ainda assim, essas restrições deixam muito espaço para desdobramentos inesperados, que não parecem ter ligação com qualquer lei determinista… reconhecer que a história não é determinista é reconhecer que não passa de uma coincidência o fato de que a maioria das pessoas, hoje em dia, acredita em nacionalismo, capitalismo e direitos humanos.

Assim nosso construtor de uma teoria nova da história chega à conclusão que o que move a história, no final de contas, são os “fatos históricos”, com uma pitada de aleatoriedade. Mas Harari comete um erro clássico – pensar que aleatoriedade, a sorte, vai determinar o destino histórico final. Sim, em muitos casos, podemos ver a sorte decidindo o destino de uma batalha. Ou uma decisão individual ou coletiva modificando, atrasando ou adiantando, uma determinada inclinação histórica. Plekanov discutiu isso muito em seu ensaio O papel do indivíduo na história.

Exemplos clássicos disso são o recoesionamento do império romano por Dioclesano ao adotar a religião cristã como religião oficial do império, mas que não impediu a destruição do império do Ocidente pouco tempo depois. Ou a descoberta do “fogo grego” que incendiava navios e exércitos pelo império romano do Oriente que manteve Constantinopla a salvo por quase mil anos. Sim, a história tem seus acasos, mas no final os dois impérios caíram e a história prosseguiu sua marcha, para o bem e para o mal.

Tendo jogado fora a sua explicação inicial da história e adotado outra, nosso Sapiens de uma maneira pouco sábia continua alegremente a descrever a história e tenta explicar porquê a ciência conseguiu se impor ao capitalismo, como ciência e capital se juntaram e porque o mundo moderno tem um futuro radioso. Se não chegamos ao fim da história, chegamos ao limiar do futuro, com várias perspectivas, e as previsões dos marxistas (socialismo ou barbárie), segundo o nosso “quase” Sapiens, não têm sentido algum, se é que algum dia ele leu algo a respeito disso.

Capitalismo, ciência e imperialismo ou como Prometeu acendeu o fogo e salvou o seu fígado

Harari glorifica a ciência moderna como se fosse algo novo, saído pronto para ser usado pelo capitalismo. Segundo ele, a ciência moderna é baseada em três questões que a diferenciam do que foi feito anteriormente – disposição para admitir ignorância, lugar central da observação e da matemática e uso do conhecimento para desenvolver novas tecnologias.

O que Harari não explica é porque tendo já essas questões sido descobertas e usadas antes pela humanidade, porque elas não produziram o que chamamos hoje de ciência moderna? Porque os gregos que tanto usavam as matemáticas e que tinham um filósofo que baseava seu método exatamente na ignorância (Sócrates), que criou todo um sistema filosófico baseado na dúvida, que usava a matemática para interrogar-se sobre o funcionamento da música e do restante do mundo (veja o exemplo de Aquiles e da tartaruga) não chegaram a desenvolver a ciência moderna? Aliás, podemos lembrar o famoso Eureka, que mostrou como a ciência pode descobrir a composição de uma joia (ouro ou prata) pelo seu peso e densidade, para ver que a ciência grega era muito bem aplicada.

Precisamos lembrar que os gregos já tinham medido a circunferência da Terra, que os chineses já tinham descoberto a pólvora ou que em uma colônia grega fosse descoberta uma máquina a vapor elementar? Então, porque isso não progrediu? Porque a humanidade não avançou e, pelo contrário, parece ter retroagido durante o período conhecido como “Idade Média”?

Essas perguntas o nosso pequeno Sapiens não responde ou, para ser mais preciso, nem formula. Perguntas incômodas porque podem desbancar a nossa teoria de que é a ciência que avança por si própria, sem entender a sua ligação vital com o capitalismo.

Mas o que Harari quer fazer com essa definição não é explicar a ciência moderna, mas demonizar o comunismo (o marxismo). Assim, ele explica que o “humanismo liberal” (lembrem-se, uma das três grandes religiões modernas) deixa a ciência fora do seu credo, para que ela possa fazer o que quiser enquanto os marxistas têm que defender que “Marx e Lenin haviam revelado verdades econômicas que jamais poderiam ser refutadas”.

Ao que parece Harari não leu O Capital ou faz questão de esquecer o que leu. Marx escreveu em O Capital com todas as letras que as suas conclusões baseavam-se em um sistema aonde o crédito não dominava ainda a maioria das transações. Hoje, no sistema, aonde o crédito domina a maioria das transações e aonde a maior parte da concorrência foi eliminada pelos grandes trusts econômicos, uma boa parte do que Marx escreveu precisa ser examinada a luz dos fatos. Quando Marx escreveu, e isto está com todas as letras em O Capital, a maioria das grandes crises econômicas tinham ocorrido de dez em dez anos. Hoje, essa marca não faz mais sentido (aliás, Marx não fez disso uma previsão, apenas fez uma constatação do que tinha ocorrido na época). E a grande crise de 2007/2008 perdura até hoje, ampliando-se como crise social e política. Marx não “previu” nada disso, como também Lenin, Rosa de Luxemburgo ou Paul Lefargue que estudaram o imperialismo tampouco previram. Reduzir o marxismo aos pretensos marxistas de academia ou aos revisionistas que defendem o capital é uma forma fácil de refutá-los. Afinal, é mais fácil criticar o que tem aparência de marxismo que o próprio marxismo em si. Para lembrar bem o método de Marx e que nós marxistas reivindicamos, lembramos da introdução de O Capital:

Por sua vez, o Sr. Maurice Block acha que o meu método é analítico, chegando a afirmar: “Por esta obra, o Sr. Marx coloca-se entre os espíritos analíticos mais eminentes”. Naturalmente, na Alemanha, os autores de recensões gritam por sofística hegeliana. O Mensageiro Europeu, revista russa, publicada em São Petersburgo, num artigo inteiramente consagrado ao método de O Capital, declara que o meu processo de investigação é rigorosamente realista, mas que o método, de exposição é, infelizmente, à maneira dialéctica alemã. “À primeira vista, – diz essa publicação -, se se julgar de acordo com a forma exterior de exposição, Marx é um perfeito idealista, e isso no sentido alemão, isto é, no mau sentido da palavra, Na realidade, porém, ele é infinitamente mais realista que qualquer daqueles que o precederam no campo da economia crítica… Não se pode, de modo algum, chamar-lhe idealista”.
Não poderia responder melhor ao escritor russo que por extractos da sua própria crítica, que podem, aliás, interessar o leitor. Após uma citação tirada do meu prefácio a Para a Crítica da Economia Política (Berlim, 1859, p. IV-VII), onde discuto a base materialista do meu método, o autor continua assim: “Uma só coisa preocupa Marx: encontrar a lei dos fenómenos que estuda; e não só a lei que os rege sob a sua forma acabada e na sua ligação observável durante um certo período de tempo. Não: o que lhe interessa, acima de tudo, é a lei da sua transformação, do seu desenvolvimento, isto é, a lei da sua passagem de uma forma a outra, de uma ordem de ligação a outra. Uma vez descoberta esta lei, examina detalhadamente os efeitos através dos quais ela se manifesta na vida social. Assim, pois, é apenas esta a preocupação de Marx: demonstrar por meio de uma investigação rigorosamente científica a necessidade de determinadas ordens de relações sociais, e, tanto quanto possível, verificar os factos que lhe serviram de ponto de partida e de ponto de apoio. Para isso, basta que demonstre, ao mesmo tempo que a necessidade da organização actual, a necessidade de uma outra organização à qual a primeira tem inevitavelmente de passar, creia nela ou não a humanidade, tenha dela ou não consciência. Ele considera o movimento social como um encadeamento natural de fenómenos históricos, encadeamento sujeito a leis que não só são independentes da vontade, da consciência e dos desígnios do homem, mas que, pelo contrário, determinam a sua vontade, a sua consciência e os seus desígnios (…) Se o elemento consciente desempenha um papel tão secundário na história da civilização, daí resulta naturalmente que a crítica, cujo objecto é a própria civilização, não pode ter como base nenhuma forma da consciência nem qualquer facto da consciência. Não é a ideia, mas apenas o fenómeno exterior que pode servir-lhe de ponto de partida. A crítica limita-se a comparar, a confrontar um facto, não com a ideia, mas com outro facto; só exige que os dois factos tenham sido observados tão exactamente quanto possível e que na realidade constituam um em relação ao outro duas fases de desenvolvimento diferentes; acima de tudo, exige que a série de fenómenos, a ordem na qual aparecem como fases de evolução sucessivas, sejam estudadas com não menos rigor. Mas, dir-se-á, as leis gerais da vida económica são só umas, sempre as mesmas, quer se apliquem ao presente ou ao passado. É precisamente isto que Marx contesta; para ele estas leis abstractas não existem (…) pelo contrário, segundo ele, cada período histórico tem as suas próprias leis (…) Desde que a vida saiu de um determinado período de desenvolvimento, desde que passa de uma fase a outra, começa também a ser regida por outras leis. Em suma, a vida económica apresenta, no seu desenvolvimento histórico, os mesmos fenómenos que se encontram noutros ramos da biologia (…) Os velhos economistas enganavam-se sobre a natureza das leis económicas quando as comparavam às leis da física e da química (…) Uma análise mais aprofundada dos fenómenos mostrou que os organismos sociais se distinguem tanto uns dos outros como os organismos animais e vegetais (…) Mais: um único e mesmo fenómeno obedece (…) a leis absolutamente diferentes logo que a estrutura global destes organismos se altere, logo que os seus órgãos particulares variem, logo que as condições em que funcionam mudem, etc. Marx nega, por exemplo, que a lei da população seja a mesma em todos os tempos e em todos os lugares. Afirma, pelo contrário, que cada época económica tem a sua lei de população própria (…) que o que se passa na vida económica depende do grau de produtividade das forças económicas (…). Com desenvolvimentos diferentes da força produtiva, mudam as relações sociais e as leis que as regem. Situando-se nesta perspectiva para examinar a ordem económica capitalista, Marx nada mais faz que formular, de uma maneira rigorosamente científica, a tarefa imposta a qualquer estudo exacto da vida económica… O valor científico de tal estudo está na explicação das leis específicas que regem o nascimento, a vida, o crescimento e a morte de um determinado organismo social e a sua substituição por outro superior; é esse valor que a obra de Marx possui”.[iii]

Assim, ao contrário do que prega Harari (por favor, não queremos com esta palavra dizer ou insinuar que o nosso Sapiens escreveu um livro religioso. Queremos apenas enfatizar que ele deixa de lado o rigor científico em nome do discurso ideológico em defesa do capital), o marxismo não é um conjunto de verdades reveladas, mas um método de estudo e combate. Aliás, o que nos diferencia de um Harari são duas coisas – prezamos o método científico ao invés do ecletismo e combatemos ao lado do proletariado contra o capitalismo e o imperialismo que Harari defende.

O capitalismo cresceu com a ciência moderna e a ciência cresceu com o capitalismo. Tal qual o capital, os primeiros cientistas eram pesquisadores, nascidos da nobreza ou da pequena burguesia, que investigavam a natureza com o pouco aparato tecnológico que possuíam. Assim trabalharam Copérnico (1473-1543), Kepler (1571-1630), Newton (1643-1727). Mesmo esses, para trabalhar, necessitaram da ajuda de outros, sendo Kepler o exemplo mais claro disso. Mas o conhecimento era pouco, as obras difundidas poucas, um homem podia ler e produzir sozinho algo que fazia muita diferença. Isso muda pouco a pouco quando a ciência não é somente uma construção de “conhecimento puro” mas quando se nota que os resultados de Newton podiam e deviam ser empregados nas máquinas que se desenvolviam.

Nasce a ciência aplicada, com os resultados de Carnot estudando os ciclos de transformação de energia, com Pasteur estudando o ciclo da vida dos bichos de seda, os queijos, os vinhos e produzindo a vacina antirrábica. Sim, a ciência se incorporava à produção moderna e se torna pouco a pouco uma das bases dessa produção e funcionando de modo plenamente capitalista, com grupos capitalistas investindo em ciência pura esperando que os resultados ali conseguidos sejam um dia aplicados de uma forma ou outra.

Assim, a ciência cresce e se desenvolve como necessidade econômica, como necessidade concorrencial entre empresas. O inventor da dinamite não queria inventar um meio melhor de matar, mas sim um meio melhor de explorar minas de destruir construções não mais utilizáveis. A própria mecânica quântica nasce da necessidade inicial de se medir a temperatura dos altos fornos que produziam aço e outros metais. Desse problema que começa a ser solucionado na Alemanha na segunda metade do século XIX, nasce o estudo da radiação, dos seus saltos e em consequência todo um novo ramo da física que vai encontrar desde aplicações como a bomba atômica (o novo fogo de Prometeu) até a base para toda uma nova ciência da vida – radiografia, tomografias, ressonância magnética, radioterapia etc.

O impressionismo de Harari faz com que ele “goste” da bomba atômica, que impediu as novas guerras e que glorifique a nova ciência médica que pode chegar a conquistar a vida eterna (projeto Gilgamesh). Claro está que isso é reservado a uma elite e que as massas (aquelas dos genes estúpidos) devem se contentar com as explicações do nosso Sapiens que nunca vivemos uma era de tanta paz. Mais de 100 milhões de refugiados, mais de 60 guerras em todo o mundo, territórios hoje da Ásia, da América Latina, da África e do Oriente Médio reduzidos à barbárie pura e simples são simples focos que não devem nos incomodar.

A explicação de que a ciência desenvolve-se porque “buscamos o desconhecido”, por simples curiosidade, não subsiste ao mínimo exame de como é produzida e o que é a ciência moderna. Computadores, disco laser, internet, vieram de onde mesmo? Da curiosidade? Do investimento de grandes empresas? Dos laboratórios de guerra?

Socialismo ou barbárie

Harari conclui o seu livro com três perspectivas que podem tomar a humanidade – viver mil anos (a elite, claro), converter-se em ciborgue ou construir uma nova forma de vida cibernética. Do ecletismo à pura especulação, o salto é feito de maneira suave de forma que possamos engolir essas especulações de revistas baratas e pseudo-científicas como se fossem a verdade.

Isaac Asimov escreveu uma série de livros (Fundação) onde a sua especulação tem bem mais solidez que a especulação de Harari. Afinal, Asimov, além de escritor de ficção científica, foi um bom cientista. Nessa série de livros Asimov propõe:

  • A galáxia viva, uma extensão do planeta Gaia, um planeta aonde se convive em harmonia todos os seres vivos e mortos, tudo é vida, tudo é consciência e a consciência individual se funde com a consciência geral e ao mesmo tempo se mantém separada desta.
  • A Fundação científica, aonde a ciência e a técnica, organizadas, possam desenvolver a vida e satisfazer as necessidades humanas.
  • A vida robótica, aonde os robôs substituem os homens.
  • A vida individualista levada ao extremo, aonde todos os homens vivem isolados, são hermafroditas que produzem seus próprios descendentes e dominam milhões de robôs (escravos).
  • A fusão de homens com robôs gerando um novo tipo de vida, eterna.

À diferença de Harari, Asimov vai mostrar em seus livros que é exatamente o individualismo que vai levar a uma barbárie sem motivos e sem finalidade. Asimov especulava que a ciência levaria à melhora geral e que o individualismo só levaria no final à morte. Harari, pelo contrário, acha que chegamos ao fim da história (pag. 216):

O império global que está sendo forjado diante de nossos olhos não é governado por nenhum Estado ou grupo étnico em particular. De maneira similar ao Império Romano tardio, é governado por uma elite multiétnica e se mantém unido por cultura e interesses em comum. Em todo o mundo, cada vez mais empresários, engenheiros, especialistas, acadêmicos, advogados e gerentes são chamados para fazer parte do império. Eles devem ponderar se responderão ao chamado imperial ou se permanecerão fiéis a seu Estado e a seu povo. É cada vez maior o número daqueles que escolhem o império.

Assim, para o nosso Sapiens a história se faz por decisões individuais dos que “escolhem o império”. Traduzindo isso em linguagem científica, o que nosso Sapiens quer esconder é que a exportação de capitais vai destruindo mais e mais o pouco de independência nacional que foi conquistada após a 2ª Grande Guerra. E que o capital obriga todos a se curvarem, a abandonar o “seu Estado”, o “seu povo” e a ceder às grandes empresas multinacionais. Mas o que Harari não explica é que essa “decisão” das elites de abrir guerra contra o seu povo em nome das multinacionais leva a revoltas e ocasionalmente a revoluções. E que, quando as revoluções não conseguem ser vitoriosas, uma das consequências possíveis (e hoje muito realizada) é a barbárie. Daí nascem fenômenos como as “guerras tribais” na África, financiadas por multinacionais em luta por território para poderem explorar as riquezas materiais – petróleo, diamante, terras raras etc. -, daí nascem fenômenos como o “Estado Islamico” e sua coleção particular de barbárie, a ideologia da Idade Média aplicada com os meios de destruição do estado moderno e financiada pela exploração do petróleo numa região rica desse mineral.

Aliás, Harari deveria explicar como os dirigentes do seu Estado (Israel) estão aderindo ao império, como os palestinos que são espoliados e vilipendiados todo dia pelo Estado teocrático sionista onde Harari vive estão também “aderindo” ao império, sendo expulsos para além do muro que esse Estado “em extinção” constrói com muito mais determinação que o muro que Trump alega defender entre México e EUA.

O marxismo nunca disse que só há uma saída para a humanidade – o socialismo. O que os marxistas explicam é que essa é a melhor saída. A barbárie também está à porta e, se não houver uma solução positiva, ela será uma “saída” do capitalismo. O que acontece hoje nos territórios ocupados da Palestina, no Oriente Médio, nos morros e favelas dominados pelo tráfico, na África, mostra muito bem que a regressão social convive com o capitalismo de forma “quase natural”. A luta dos marxistas, dos comunistas, é para ajudar o proletariado a tomar para si os meios de produção e dirigi-los para uma saída positiva para a humanidade. O futuro pode ser radioso ou pode ser enterrado sob os escombros de uma catástrofe nuclear ou ecológica. Cabe a nós escolher lutar e trabalhar por um mundo melhor.

[iii] Marx, Karl, O Capital, Prefácio a 2ª edição Alemã (1873)