Imagem: Sintrajufe

O SUS é realmente público?

Um argumento muito utilizado pelo partido Novo e figurões do MBL e PSDB é apontar a insuficiência do Sistema Único de Saúde (SUS) para justificar a privatização. Curiosamente, a premissa é verdadeira. A prestação do serviço público realmente tem severos limites que o torna insuficiente às demandas da população. Porém, a conclusão desse pensamento é pateticamente contraditória, pois é justamente a iniciativa privada um dos fatores determinantes dessa situação.

Conceitualmente público, o SUS é infestado de parasitas da iniciativa privada em diversos setores, algo semelhante ao que acontece na Petrobras que, embora estatal, tem a maioria de seu capital em mãos privadas e inclusive estrangeiras, bem como em outros direitos, como à educação, ao transporte etc. É a burguesia cinicamente denunciando os problemas que ela mesmo causa (no papel de prestadora de serviço ou no papel de poder público) e se apresentando como solução.

Na Constituição Federal, há vários fundamentos pra que isso aconteça. Um deles é o princípio que rege a disponibilidade orçamentária de cada pasta, o chamado Princípio da Reserva do Possível, que considera o direito à saúde como uma norma programática. Isso pode ser traduzido como um enorme “se der, eu faço”, mas uma olhada mais atenta nas entrelinhas permite enxergar um “se der lucro, eu faço” e isso é facilmente confirmado na prática. Disso decorrem duas questões principais.

Uma é a disponibilidade orçamentária de fato, fazendo com que os recursos destinados aos serviços públicos não supram a demanda de toda a população brasileira. A outra questão é a possibilidade da iniciativa privada atuar de forma “complementar” (entre grandes aspas) quando o serviço público não dá conta, o que é muito comum já que faltam recursos e a forma como se oferta o serviço sobrecarrega secretarias municipais e estaduais de saúde às próprias custas.

Essas leis, no entanto, não têm essas brechas por um acaso ou descuido dos legisladores. Já ouviu alguém falando que “a Constituição é linda, mas infelizmente não é cumprida”? Na verdade, não tem nada de bonito em nenhum dos estatutos da burguesia. As mais enfeitadas leis burguesas não passam de um cinismo cretino, pois quaisquer direitos sociais podem ser legalmente atropelados por decisões do Judiciário, pela aplicação obscura do Executivo e até relativizadas por outros dispositivos do próprio ordenamento, como veremos alguns exemplos a seguir. O artigo 170 da Constituição Federal, por exemplo, já prevê escancaradamente que

“Art. 170 – A ordem econômica, fundada (…) na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(…)
II – propriedade privada;
III – função social da propriedade;
IV – livre concorrência;
V – defesa do consumidor;”

e, mais adiante no art. 190.

            “Art. 190 – A assistência à saúde é livre à iniciativa privada”,

Isso é a ressalva legal da burguesia que diz que o lucro particular é uma das coisas a serem preservadas na ordem econômica brasileira, inclusive em detrimento da função social se necessário, coisa que a prática deixa bem claro qual lado prevalece nas decisões, na repressão de movimentos de ocupação etc. Ao campo da saúde, a Lei do SUS de 1990 também trouxe, desde sua publicação, a possibilidade da iniciativa privada prestar serviços de saúde “em caráter complementar”, como merece ser mencionado nos arts 4º §2º e 24:

“Art. 4º O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS).
(…)
§ 2º A iniciativa privada poderá participar do Sistema Único de Saúde (SUS), em caráter complementar.”
(…)Art. 24. Quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde (SUS) poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada.

Essa parafernália jurídica existe por um motivo que deve ficar claro. É através dessa dissimulação, dessa falácia asquerosa que o poder público, ao comando da burguesia, consegue manusear os recursos públicos e os inserir na iniciativa privada alegando (pasme) falta de recursos (!) para a prestação pública do serviço. Prestação inclusive prioritária, de controle e gestão, que de “complementar” não tem nada. Esse é o aval jurídico para que a lógica do mercado capitalista contamine a prestação de serviços públicos com todos os seus vícios fundamentais.

A Constituição Federal, no mesmo sentido,  legitima a burguesia como mandatária da linha de produção repressiva, que coloca o Exército, a Polícia Federal, Militar, a Guarda Civil Municipal, as delegacias, o Poder Judiciário e as Secretarias de Administração Penitenciárias em prontidão, à espera de qualquer manifestação política que ameace subverter essa “ordem econômica” com grandes manifestações e greves em defesa da saúde pública, por exemplo.

Esse parasitismo, no entanto, segue alguns protocolos que devem ser compreendidos. Um deles é através das chamadas licitações: basta o poder público alegar a incapacidade de recursos para que sejam abertos processos seletivos em que entidades filantrópicas ou Organizações Sociais (OSs) se candidatam para prestar serviços, gerir unidades de saúde e, por conseguinte, manusear os recursos federais, estaduais e/ou municipais. Um tipo de terceirização do serviço.

Não como curiosidade, o artigo 23 da Lei do SUS que antes, como regra, vedava a participação direta ou indireta de empresas ou de capitais estrangeiros na assistência à saúde, foi modificado em 2015 para não só permitir, como também ampliar para “inclusive controle, de empresas ou de capital estrangeiro na assistência à saúde”. Essa emenda foi aprovada e sancionada pela então presidenta Dilma Rousseff.

Art. 23.  É permitida a participação direta ou indireta, inclusive controle, de empresas ou de capital estrangeiro na assistência à saúde nos seguintes casos: (Redação dada pela Lei nº 13.097, de 2015)
I – doações de organismos internacionais vinculados à Organização das Nações Unidas, de entidades de cooperação técnica e de financiamento e empréstimos; (Incluído pela Lei nº 13.097, de 2015)
II – pessoas jurídicas destinadas a instalar, operacionalizar ou explorar:         (Incluído pela Lei nº 13.097, de 2015)
a) hospital geral, inclusive filantrópico, hospital especializado, policlínica, clínica geral e clínica especializada; e (Incluído pela Lei nº 13.097, de 2015)
b) ações e pesquisas de planejamento familiar; (Incluído pela Lei nº 13.097, de 2015)
III – serviços de saúde mantidos, sem finalidade lucrativa, por empresas, para atendimento de seus empregados e dependentes, sem qualquer ônus para a seguridade social; e  (Incluído pela Lei nº 13.097, de 2015)
IV – demais casos previstos em legislação específica. 

Uma outra prática comum nesses processos de licitação: Essas OSs, que juridicamente são “entidades sem fins lucrativos” (mas que enriquecem com dinheiro público do mesmo jeito), muitas vezes fazem parte de grandes conglomerados que lançam suas empresas de fachada para concorrerem entre si, no mesmo processo licitatório e em conluio com as prefeituras municipais, uma fraude que já saiu em noticiários com cifras estarrecedoras, por exemplo, em um enorme esquema de corrupção no interior de São Paulo em 2017.

Toda essa nojeira dá alguns elementos sobre o que de fato é público no capitalismo. As entidades filantrópicas das Santas Casas, por exemplo, as maiores parceiras privadas do SUS, chegam a atender 54% das demandas do SUS e até 70% dos casos de alta complexidade, neurologia, transplantes e outros.[1]

Esse quadro mostra não o tamanho da generosidade dessas entidades, mas o quão lucrativo pode ser um cartel que se aproveita da falácia da “reserva do possível” para se apoderar de recursos que deveriam ser investidos em infraestrutura e serviços de fato públicos, não condicionados à filantropia mercenária e seus abatimentos fiscais viabilizados por metas de atendimentos pelo SUS que a Santa Casa encena junto ao poder público.

E isso não acontece apenas nas atividades-fim, mas em qualquer serviço de exame, manutenção, diagnóstico, tratamento secundário, serviços técnicos, segurança… uma verdadeira metástase que despeja seus dutos de drenagem e transforma qualquer organismo vivo em tecido necrótico convertido em finanças.

Em 2020, houve um levantamento de que 60,5% dos serviços do SUS foram prestados pela iniciativa privada (134 mil das 222,3 mil unidades). Um recorte ainda mais assustador é quando analisamos os consultórios, clínicas ou ambulatórios especializados e unidades de apoio a serviços de diagnóstico e terapia, serviços que estão na margem de surreais 86% nas mãos da iniciativa privada, de acordo com o DATASUS publicado pelo Ministério da Saúde no mesmo ano.

Isso tudo gera uma penumbra que encobre uma diferenciação fundamental na luta de classes: uma coisa é defender o direito à saúde através de um serviço único e centralizado, o que deve ser explicado para os trabalhadores e agitado durante as manifestações de massas.

Mas outra coisa muito distinta (e diretamente oposta) é defender o Estado burguês e seu ordenamento como instrumentos adequados para assegurá-los. A consigna “Defenda o SUS!”, por exemplo, pode ser um fator reacionário se for colocada em um contexto de defender essa estrutura podre das leis burguesas, se não propor extirpar a presença da iniciativa privada na lei que o gere, vício que também carrega a defesa indiscriminada da Constituição Federal e das instituições de controle e repressão como se fossem algo democrático.

Esses elementos são suficientes para responder à pergunta: o Sistema Único de Saúde não é exatamente público e isso não é uma novidade. Nenhum direito social será de fato público nas leis que existem exatamente para garantir o lucro da burguesia, pouco importando o nome, a roupagem e o roteiro que prefiram usar. Oportuno pontuar que a gratuidade do serviço não é o fator que o determina algo como público. Algo parecido se observa com os financiamentos do ProUni: mesmo com a gratuidade ao estudante, o lucro da iniciativa privada é garantido por injeção bruta de orçamento público. Trata-se, portanto, de algo profundamente contaminado com a lógica da iniciativa privada, totalmente adaptado às demandas da burguesia.


[1] Luíza Tiné, com informações da Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas – CMB, disponível em https://web.archive.org/web/20210410213202/http://www.blog.saude.gov.br/index.php/53909-sem-fins-lucrativos-santas-casas-sao-grandes-parceiras-no-atendimento-a-saude