O Socialismo dos Capitalistas

Bush, Gordon, Merkel et caterva ressuscitam Malthus, Keynes e todos os santos padroeiros do capitalismo burocrático de Estado. Trocam uma crise de crédito privado por outra muito mais letal de crédito público. O inferno é o limite.

O poder político do Estado moderno (e de qualquer governo) não passa de um comitê para administrar os negócios comuns de toda a classe burguesa.

Esta nova semana de crise que se encerrou dia 17 de outubro de 2008 foi para nenhum economista crítico botar defeito. Vejam a ação desesperada dos governos das principais economias imperialistas. Não se tem notícia na história econômica mundial desde que inventaram a moeda e os bancos, pelo menos, de nada parecido com os surrealistas volumes de dinheiro que esses governos estão canalizando aos seus banqueiros privados para estancar o derretimento do sistema financeiro.

O famoso pacote de US$ 700 bilhões de Bush virou café pequeno perto do que os malucos (e decadentes) capitalistas europeus andaram anunciando. A Inglaterra? Cerca de 1,3 trilhões de dólares. Com isso Gordon Brown, seu primeiro-ministro, transformou-se no grande herói dos capitalistas em todo o mundo. O pavor com o precipício explica esses tipos de novos heróis do capitalismo senil. A Alemanha de Frau Merkel? Mais 850 bilhões. A França? Quase 500 bilhões. Holanda? Mais de 270 bilhões. No fim da fila dos desesperados capitalistas europeus se encontra o ridículo Estado português que não conseguiu liberar mais do que 20 bilhões de Euros (27 bilhões de dólares) para os banqueiros lusitanos.

GORDON “KEYNES” BROWN

A grande novidade filosófica da conjuntura: os capitalistas, seus governos e seus economistas já não confiam na receita de injetar apenas crédito ou meios de pagamento no mercado. Não funciona mais. Agora grande parte dos recursos dos mega-pacotes será desviada diretamente dos Tesouros nacionais para estatização de fatias enormes de bancos e financeiras. Os EUA de Bush seguindo o originalíssimo modelo de Gordon Brown anunciaram a liberação de US$ 250 bilhões para a estatização de boa parte dos grandes bancos de Wall Street.

Não se trata de nenhuma imoralidade. Trata-se de negócios. É assim que funciona na prática a endeusada competência dos empresários capitalistas, grandes empreendedores, exemplos de dinamismo e capacidade inovadora. Depois de produzirem uma das maiores crises econômicas da história agora usam seus governos nacionais para saquear os cofres públicos e salvar os seus capitais privados.

Viraram todos keynesianos. E “socialistas”. Vejam este remédio para a crise financeira receitado por um convicto economista neoclássico, ex-presidente do Partido Liberal, autor do “projeto do imposto único”, etc. subitamente convertido ao socialismo keynesiano: “A única opção é a compra de participação acionária dos bancos pelos Tesouros dos países envolvidos” (Marcos Cintra – “No olho do furacão”, Folha de São Paulo, 13/outubro/2008).

Na mesma edição deste jornal outro expoente da reforma neoliberal e da modernização do Estado no governo FHC justifica o socialismo dos capitalistas mais filosoficamente que o grosseiro autor do projeto do imposto único: “O Estado é muito maior do que o mercado; é o sistema constitucional legal e a organização que o garante; é o instrumento por excelência da ação coletiva da nação. Cabe ao Estado regular e garantir o mercado, e como vemos agora, servir de emprestador de última instância.” (Bresser Pereira, “Crise no mercado financeiro e recuperação da confiança” – Folha de S.Paulo, idem).

FRAU MERKEL COMANDA A EUROZONA

Nada dessas movimentações do Estado apresenta alguma surpresa. Marx e Engels não diziam com toda clareza, e com toda razão, que o poder político do Estado moderno nada mais é do que um comitê para administrar os negócios comuns de toda a classe burguesa? Não é exatamente isso que estão dizendo Marcos Cintra e Bresser Pereira? Só os ingênuos (e geralmente mal intencionados) reformadores sociais duvidam disso.

É por isso que Frau Merkel, chanceler da Alemanha, não demonstra nenhum remorso com essa farra do boi que os capitalistas das principais economias estão fazendo com as contas públicas dos seus governos. Diz apenas que apesar do alívio que ela espera que aconteça no mercado a “caixa de ferramentas” adotada só funcionará se forem implantados mecanismos de regulação internacionais que ponham “fim aos excessos do mercado”.

Frau Merkel se preocupa unicamente com os “excessos do mercado”, não parece nem um pouco preocupada com os “excessos do governo”. Mesmo tendo nascido e crescido na antiga Alemanha Oriental ela não vê nenhuma contradição no fato do capital ser enjaulado por muito tempo na forma estatal. Acha que a história pode repetir ininterruptamente, impunemente. Para a ideologia burguesa não existe história, o que existe é a monótona reprodução de um eterno presente.

Mas, além desse voluntarismo tipicamente capitalista (agir antes e pensar depois) que se presencia mais uma vez neste momento, o problema mais importante é que o desdobramento da crise atual passa doravante para a esfera do Estado, quer dizer, para as “novas regulamentações do mercado” a serem tomadas pelas instituições burocráticas e militarizadas das diversas burguesias nacionais.

IRREVERSIBILIDADE DO PROCESSO

Algumas rapidíssimas reflexões a respeito das conseqüências dessa empreitada cheia de perigos adotada pelos principais governos capitalistas. Imaginemos (apenas imaginemos) que esse pesadíssimo processo de centralização do capital comandado pelo Estado possa – como espera Frau Merkel e todos os capitalistas do mundo – trazer um alívio para os diferentes sistemas financeiros nacionais. Imaginemos, portanto, as condições mais favoráveis para os capitalistas, quer dizer, abafamento temporário (muito temporário) da atual fase cíclica de crise.

Primeira conseqüência: com o grau de globalização alcançado pelo capital nas três últimas décadas mudando decisivamente a crosta geoeconômica terrestre não se pode mais contar com um mercado mundial recortado por regulamentações, protecionismos nacionais, etc. O capital só pode existir doravante enquanto valor que se multiplica e que se globaliza na forma popularmente conhecida de neoliberalismo e com velocidade crescente de acumulação.

Essas novas condições materiais não podem ser menosprezadas. Não se pode imaginar a possibilidade de um Estado estacionário que já para David Ricardo, o maior dos economistas, era um pesadelo a ser evitado a qualquer custo. O descontrole social seria muito mais difícil de ser administrado pelas classes dominantes em um regime malthusiano de Estado que agora se anuncia do que no regime ricardiano de livre-mercado que se procura abafar.

Os filhos de Malthus (e, portanto, de Keynes e tutti quanti) que ainda acreditam que se pode retroceder o capital a circunstâncias parecidas com aquelas da segunda metade do século passado logo sofrerão, no mínimo, uma grande desilusão.

Se eles olharem para sua volta e raciocinarem por um segundo que seja (que eles podem acreditar que são capazes) verão imediatamente que o capital não pode mais viver nem um segundo sem a liberalização dos ciclos econômicos mais recentes e os correspondentes “excessos do mercado”. Assim eles deixarão de lado essa idéia absurda que se pode acumular capital sem capital.

Segunda conseqüência: essa empreitada de inaudita centralização do capital financeiro no Estado levará rapidamente para uma onda de protecionismos nacionais e isolacionismos geopolíticos que aumentarão a temperatura das relações internacionais a graus insuportáveis. O isolacionismo dos EUA seria o mais determinante nesta perspectiva. Não há necessidade de maiores detalhamentos dessa escalada; todo mundo é capaz de antever o tipo de descontrole bélico que ocorreria na indissolúvel unidade entre economia do imperialismo e guerra mundial em um quadro de aumento do protecionismo econômico entre as nações.

Terceira conseqüência: mas não menos importante do que as duas primeiras, exatamente porque é a que se apresentará mais imediatamente à luz do dia. O abafamento da crise do crédito privado logo se manifestará na forma muito mais corrosiva de crise do crédito público. Os economistas do sistema acham que podem restaurar a paz no mercado de crédito privado destruindo o crédito público. Aliás, eles nem consideram atualmente essa destruição fatal que eles mesmos estão gerando. Querem apenas aliviar o sufoco imediato. Pagarão caro por isso.

O voluntarismo desses malucos que acreditam que se pode inundar o mercado com papel moeda sem nenhuma conseqüência posterior na economia logo encontrará seu limite fiscal, na forma de um incontrolável déficit público. Para a explosão desse déficit nos próximos meses agirá não apenas o aumento descomunal das despesas fiscais com os atuais mega-pacotes de salvamento dos bancos e outras empresas privadas, mas simultaneamente agirá a não menos descomunal redução das receitas fiscais motivada por uma abrupta queda do nível de atividade econômica em todo o mundo.

Os capitalistas das economias dominantes logo receberão a fatura da farra keynesiana que fazem atualmente. Como dissemos acima, o desdobramento da crise atual passa doravante para a esfera do Estado. E os capitalistas aprenderão da forma mais didática possível que a crise do crédito público é absolutamente necessária para que em um determinado momento do ciclo econômico a crise financeira possa se fundir com a crise industrial e com a crise agrícola, conformando finalmente o quadro de uma verdadeira catástrofe econômica. Marx Seja Louvado!

* Este texto foi publicado no boletim Crítica Semanal da Economia.

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