Espontaneidade revolucionária e liderança na Revolução Egípcia – Lições para a Indonésia

A Revolução Egípcia capturou a atenção das massas em todo o mundo. Na Indonésia, os ativistas estão discutindo vividamente o papel da Irmandade Muçulmana na revolução, a intervenção dos militares, a natureza da revolução e suas perspectivas futuras.

A Revolução Egípcia capturou a atenção das massas em todo o mundo. Na Indonésia, os ativistas estão discutindo vividamente o papel da Irmandade Muçulmana na revolução, a intervenção dos militares, a natureza da revolução e suas perspectivas futuras. Abaixo, em resposta a Muhammad Ridha, ativista do Partido do Povo Trabalhador (Partai Rakyat Pekerja, PRP) na Indonésia Ted Sprague descreve o processo dialético da Revolução Egípcia.

A Revolução não é um drama de um só ato com um script banal que apenas necessita ser lido em voz alta. Os que esperam uma revolução ideal e pura somente se decepcionarão no final. A Revolução Egípcia é um dos muitos exemplos que mostram o processo dialético da revolução, que não ocorre em linha reta e de acordo com um esquema rígido na mente. É um processo vivo e carregado de contradições.

Ela está cheia de contradições – e, portanto, de vida – porque uma revolução atira milhões de pessoas que estavam anteriormente marginalizadas diretamente na arena política. Esses milhões de pessoas comuns não aportam somente sua energia e instintos revolucionários, também aportam uma grande quantidade de ingenuidade, confusão e preconceitos. Estes últimos elementos continuamente se chocam com os fatos reais da revolução que incessantemente empurram, puxam e destroem todas as velhas crenças. Isto porque a revolução alcança todas as dimensões da vida e não quebra somente os vasos de flores, também são destruídas as velhas concepções.

Para entender o que está acontecendo no Egito, e, como se esperava do companheiro Ridha, “esclarecer o significado real do papel dos militares nesta [egípcia] revolução” [1], temos de retornar aos fatos e somente aos fatos. Somente nos baseando nos fatos – além disso, vivendo e historicamente fluindo os fatos – podemos então começar nossa análise política por caminhos corretos.

O primeiro erro do amigo Ridha está em sua compreensão do papel da Irmandade Muçulmana (IM) e de Morsi na primeira Revolução Egípcia, e, a partir daí, flui sua incapacidade de entender a relação entre Morsi e os militares. Morsi não é “filho legítimo da revolução de 2011”, como alegou Ridha. A revolução que derrubou Mubarak não foi organizada nem conduzida pela IM. Os que participaram ativamente na Revolução Egípcia sabiam muito bem que os líderes da IM ficaram arrastando os pés nos momentos decisivos da revolução, e, como verdadeiros oportunistas, só pediram a demissão de Mubarak, depois que se tornou claro que Mubarak já não poderia se manter no poder. Mesmo a própria IM não pode – e nunca pôde – reivindicar a liderança e organizar a insurreição de 2011, e muito menos intitular-se como “a filha legítima da revolução de 2011”. A Irmandade Muçulmana foi empurrada à frente somente por causa da debilidade da insurreição popular de 2011, que explodiu espontaneamente e sem qualquer organização ou qualquer liderança que pudesse conduzi-la à próxima etapa da revolução. Vimos o mesmo com a espontaneidade do movimento Ocupa, dos Indignados e do restante da Revolução Árabe.

No fundo, este erro é a incapacidade de Ridha e muitas outras pessoas de entender o desenvolvimento dialético de uma revolução, as contradições dentro dela que deram espaço à IM para desempenhar um papel no Egito. Portanto, antes de prosseguirmos teremos de retornar ao ABC da dialética da revolução, que é a questão da espontaneidade e da liderança na revolução. Aqui, retornaremos à Rosa Luxemburgo. Pedimos desculpas aos leitores por trazê-los de volta quase cem anos atrás, mas o conflito entre a ação espontânea de massa e o trabalho de organização intencional (liderança) mostra-se mais de uma vez em cada episódio e etapa de um movimento. Sem uma compreensão adequada da relação dialética entre essas duas coisas, seremos jogados de um lado para outro, tornando-nos vítimas do impressionismo e reduzidos à paralisia política.

Rosa Luxemburgo e a Espontaneidade na Revolução

Na fase inicial de uma revolução, a espontaneidade é uma força que dá ao movimento uma enorme vantagem. A espontaneidade dá a uma insurreição um caráter imprevisível, tornando mais difícil à classe dominante reprimi-la diretamente. A espontaneidade também oferece espaço à criatividade política de milhões de pessoas que nunca tinham se expressado anteriormente. A espontaneidade destrói todas as velhas rotinas que foram encadeando o povo em sua vida diária nas ações rotineiras e também na maneira de pensar. Ela escancara as janelas das mentes das massas que tinham sido fechadas no passado e, portanto, abre o caminho para as ideias revolucionárias – que, anteriormente, eram escorraçadas, evitadas e rejeitadas – penetrarem e prenderem sua atenção e agitá-la energicamente.

A espontaneidade desempenha o maior papel positivo, especialmente no período atual onde as organizações de massa dos trabalhadores afundaram profundamente no pântano do reformismo e do burocratismo que se transformaram em grandes obstáculos ao movimento. Os líderes dessas organizações de massa – sindicatos e partidos operários – tornaram-se uma trava da roda da história. Portanto, a espontaneidade se transforma em poderosa arma contra o aparato reformista engessado. Os trabalhadores se movem através de seu instinto e criatividade, sem esperar pelo comando do aparato ou sem prestar atenção aos obstáculos levantados por seus próprios líderes.

Contudo, aprendemos dialeticamente que o que está em primeiro pode se tornar o último, e o que está em último, primeiro. A espontaneidade, que na fase inicial de uma revolução é uma fonte de força, no final se transforma em seu contrário. Torna-se o ponto mais frágil da revolução quando esta se movimenta para a próxima etapa, quando a questão do poder é colocada. É nesta etapa que uma organização, com um programa claro e constituída pelos mais avançados elementos da classe trabalhadora que foram organizados e temperados cuidadosamente muito antes da revolução explodir, se torna uma necessidade. Necessitamos de uma organização que possa reunir e concentrar a energia dessas explosões espontâneas.

Em uma de suas obras-primas, Greve de Massas, que Rosa Luxemburgo escreveu após a Revolução na Rússia, ela disse:

“Se, portanto, a Revolução Russa nos ensina algo, ensina-nos, sobretudo, que a greve de massas não é artificialmente ‘feita’, não é ‘decidida’ aleatoriamente, não é ‘propagada’, mas é um fenômeno histórico que, em dado momento, resulta das condições sociais com inevitabilidade histórica… Se alguém se comprometer a fazer a greve de massas em geral, como uma forma de ação proletária, como objeto de agitação metodológica, e ir de casa em casa angariando apoio para esta ‘ideia’, com o fim de ganhar gradualmente a classe trabalhadora para ela, seria uma tarefa tão ociosa, inútil e absurda quanto seria a de procurar fazer da ideia de revolução ou da luta nas barricadas o objeto de uma agitação especial” [2].

A Revolução não é a criação de um grupo de revolucionários. Não pode ser planejada como uma festa de aniversário. Qualquer tentativa para acelerar ou para desencadear uma revolução é “ocioso, inútil e absurdo”. O capitalismo cria a revolução como cria seus próprios coveiros. Contudo, esta é apenas a primeira metade de uma equação revolucionária. A segunda metade é a tarefa dos revolucionários de ganhar a revolução que se apresentou diante deles. É aqui que o papel de uma organização e da liderança torna-se crucial.

No entanto, depois de sua morte, muitas das obras de Rosa Luxemburgo têm sido equivocadamente citadas pelos muitos inimigos de Lênin e do Bolchevismo. Para essas pessoas, o maior pecado cometido por Lênin e pelos Bolcheviques foi que Lênin e seus camaradas tinham incansavelmente preparado uma organização marxista ideologicamente cerrada, disciplinada e férrea muito antes de a revolução russa se desenrolar, e que por causa disto eles poderiam tomar o poder quando a questão do poder se apresentasse diante deles. Para essas pessoas este pecado de “vanguardismo” deve ser exorcizado do marxismo. Assim, após sua morte, Rosa Luxemburgo foi ungida como o profeta da “espontaneidade revolucionária” que foi contraposta ao “vanguardismo” de Lênin. Os mortos não podem se defender. Mas podemos dizer que dentro das tradições do velho marxismo alemão, Rosa é a única figura cujas credenciais revolucionárias permanecem imaculadas, ao contrário do traidor Karl Kautsky.

À juventude atual, que está se voltando para o marxismo, são oferecidas citações de Rosa que foram extraídas de seu verdadeiro contexto e significado – um ato não diferente do que os estalinistas cometeram com as obras de Lênin – para contrapor seu marxismo ao de Lênin. Uma obra em particular que é muitas vezes usada por essa gente é a obra de Rosa, cujo título original é “As questões organizacionais da Socialdemocracia Russa” e que, mais tarde se transformou – naturalmente bem depois que a própria autora tinha morrido – em “Leninismo ou Marxismo”. Na realidade, este polêmico escrito de Rosa em 1904 nunca mais foi usado como argumento por ela. As obras de Rosa são tratadas como monumentos eternos, à margem do desenvolvimento intelectual e político da própria escritora. Na realidade, Rosa dedicou muito de seu tempo ao trabalho disciplinado de fortalecer uma fração revolucionária dentro da Socialdemocracia alemã e polonesa. Ela não ficava simplesmente esperando pelo milagre da espontaneidade de massa para lograr o socialismo. Particularmente depois da Revolução Alemã em novembro de 1918, ela agressivamente reuniu os quadros comunistas que tinham rompido com a traição da Socialdemocracia para formar o Partido Comunista Alemã (KPD, em suas siglas em alemão), que ela esperava ser capaz de levar o proletariado alemão à vitória do socialismo.

Depois de sua saída da prisão, Rosa e seus camaradas imediatamente organizaram o Congresso Fundacional do Partido Comunista Alemão. No “Programa do Partido e Situação Política”, sessão conduzida por Rosa, com o máximo de clareza ela descreveu o caráter espontâneo da Revolução Alemã de 1918:

“É característico das contradições dialéticas em que a revolução, como todas as outras, se move que, em Nove de Novembro, no primeiro grito da revolução, instintivo como um grito de uma criança recém-nascida, foi encontrada a palavra de ordem que vai nos levar ao socialismo: os conselhos de trabalhadores e soldados. Foi este o apelo que reuniu a todos – e no qual a revolução instrutivamente encontrou a palavra, embora em Nove de Novembro fosse tão inadequada, tão fraca, tão desprovida de iniciativa, tão carente de clareza quanto aos seus próprios objetivos, que no segundo dia da revolução quase metade dos instrumentos do poder, que haviam sido apreendidos em Nove de Novembro havia escorregado das garras da revolução…

“O primeiro ato, entre o Nove de Novembro e hoje, esteve preenchido com ilusões por todos os lados… O que poderia ser mais característico da fraqueza interna da Revolução de Nove de Novembro do que o fato de que à cabeça do movimento apareceram pessoas que poucas horas antes da revolução irromper tinham considerado como seu principal dever se mobilizar contra ela – para tentar tornar impossível a revolução: os Eberts, Scheidemanns e Hasses…

“Há um método revolucionário definitivo pelo qual o povo pode se curar das ilusões, mas infelizmente a cura deve ser paga com o sangue do povo” [3].

A Revolução Alemã de 1918 explodiu espontaneamente, sem ser previamente organizada por Rosa e seus camaradas, e muito menos pelos socialdemocratas “que, poucas horas antes da revolução irromper tinham considerado como seu principal dever se mobilizar contra ela – para tentar tornar impossível a revolução”. Ela explodiu com o “instintivo grito de uma criança recém-nascida”, e espontaneamente encontrou a palavra de ordem “conselhos de trabalhadores e soldados”. Contudo, mesmo esta palavra de ordem avançada – se comparada a palavras de ordem dos atuais Ocupa, Indignados e outras explosões espontâneas – era ainda “tão inadequada, tão fraca, tão desprovida de iniciativa, tão carente de clareza quanto aos seus próprios objetivos” que dentro de curto espaço de tempo a revolução perdeu quase a metade de seus ganhos.

A ilusão era tão densa na fase inicial dessa revolução que as mesmas pessoas que poucas horas antes da revolução tinham se oposto a ela, e moveram céus e terras para abortá-la, foram empurradas para frente como líderes dessa revolução. Os reformistas e socialdemocratas tornaram-se os líderes de uma revolução que eles não queriam. As classes dominantes da alemanha também manobraram para elevá-los à cabeça da revolução para que pudessem atrapalhá-la e, em seguida, esmagá-la. Na mesma obra, Rosa disse que a burguesia acreditava que “por meios da combinação Ebert-Haase, por meio do chamado governo socialista, ela seria realmente capaz de refrear as massas proletárias e estrangular a revolução socialista”.

É nessa situação que o Partido Comunista Alemão foi fundado com a tarefa de liderar a Revolução que já se desenrolava em direção a sua vitória. “A Liga Spartacus é somente a mais consciente e voluntariosa parcela do proletariado, que aponta as tarefas históricas a cada passo para toda a classe trabalhadora”, declarou Rosa [4]. Em seguida, no dia 11 de janeiro de 1919, no momento mais decisivo da Revolução Alemã, quatro dias antes que ela fosse presa e brutalmente assassinada, mais uma vez ela enfatizou a necessidade de se ter um partido: “A ausência de liderança, a não existência de um centro para organizar a classe trabalhadora berlinense, não pode continuar. Se a causa da revolução é para avançar, se a vitória do proletariado, do socialismo, é para qualquer coisa além de um sonho, os trabalhadores revolucionários devem estabelecer organizações líderes capazes de orientar a energia combativa das massas” [5]. O “vanguardismo” de Rosa tornou-se muito concreto na prática porque ele não iria se confinar dentro de uma teoria rígida e não dialética de “espontaneidade revolucionária”.

Leon Trotsky via Rosa da seguinte maneira:

“A teoria de Rosa da espontaneidade era uma arma saudável contra o aparelho engessado do reformismo… Ela era muito realista no sentido revolucionário para desenvolver os elementos da teoria da espontaneidade em uma metafísica consumada. Na prática, ela própria, como já foi dito, minou esta teoria a cada passo” [6].

No entanto, a tentativa de Rosa de construir este partido comunista veio um pouco tarde demais. Enquanto Lênin tinha montado quadros marxistas desde o início, como uma fração Bolchevique dentro da Socialdemocracia russa, e que lutou incansavelmente contra o reformismo (os Mencheviques), Rosa somente fez isto depois que a revolução tinha eclodido. Apesar de Rosa ter conduzido durante anos uma polêmica e amarga luta contra as tendências reformistas dentro da Socialdemocracia Alemã, ela nunca deu o passo lógico de estabelecer uma facção disciplinada e dura como os Bolcheviques. O amadorismo do Partido Comunista Alemão foi exibido de forma flagrante em sua incapacidade de proteger seus próprios líderes. Não conseguiu esconder em segurança Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht dos Freikorps [milícias paramilitares de direita, formadas por soldados egressos do front no final da I Guerra Mundial – Nota do Tradutor]. A Revolução Alemã foi finalmente derrotada e afogada em sangue.

O caso egípcio

Sem entender o desenvolvimento dialético de uma revolução, que é movida pelas contradições dentro dela, muitas pessoas chegaram à conclusão errada sobre o papel de Morsi e da Irmandade Muçulmana na revolução de 2011 e, em seguida, sobre o papel dos militares na recente revolução. Assim, Morsi se tornou “o filho legítimo da revolução de 2011”, o que é tão absurdo quanto dizer que o governo Ebert-Scheidemann – os socialdemocratas que poucas horas antes da revolução estavam agitando contra a revolução – era filho legítimo da Revolução Alemã de 1918.

A espontaneidade, e, portanto, a ausência de organização e liderança, é a razão pela qual o poder, que já estava nas ruas, pôde ser agarrado pela IM, assim como os trabalhadores alemães em Novembro de 1918 se viram presas das ilusões democráticas que tinham em seus líderes socialdemocratas. Depois do êxito em derrubar Mubarak com energia explosiva – situação que emergiu espontaneamente sem estar vinculada a qualquer partido ou organização – a mesma espontaneidade perdeu sua força na próxima etapa: a conquista do poder político e econômico. Assim como as classes dominantes alemãs manobraram – e não sem suas próprias contradições – para entregar o poder aos líderes reformistas em que confiavam, também no Egito as classes dominantes e os militares estavam engajados em todo tipo de manobras com elementos da oposição burguesa liberal e da IM, principalmente com a última, visto que constituía uma força organizada que poderia ser invocada para “refrear as massas proletárias e para estrangular a revolução socialista”.

Os militares, de forma Bonapartista e com as bênçãos da burguesia como um todo – que nem sempre são dadas necessariamente de forma voluntária – e do imperialismo EUA, intervieram para salvar a situação que estava ficando fora de controle. Quanto mais tempo Mubarak insistiu em ficar no poder, mais radicais as massas se tornavam nas ruas. Se Mubarak não fosse forçado a sair do poder, camadas inteiras das classes dominantes poderiam ser arrastadas com ele. Isto foi bem entendido pelo imperialismo EUA. O embaixador estadunidense naquele momento, Frank Wisner, transmitiu a mensagem de Obama a Mubarak de que já era hora dele deixar o cargo. O SCAF (Conselho Supremo das Forças Armadas, em suas siglas em inglês), em seguida, assumiu o governo provisório.

No processo que se seguiu, as massas egípcias estavam cheias de ilusões por todos os lados. Alguns tiveram a ilusão de que o SCAF lhes proporcionaria um período de transição à democracia; algumas se iludiram com o campo liberal; algumas nos islâmicos; algumas ansiavam por um retorno de Nasser ou Sadat, na esperança de que surgissem oficiais progressistas jovens que iriam salvar o Egito; algumas, uma minoria, mantiveram confiança apenas em seu próprio poder. São estes os processos contraditórios na Revolução Egípcia.

Desde o início, a Irmandade Muçulmana preferiu negociar escondida das massas, em vez de mobilizar a ação de massa. Logo depois de o SCAF tomar o poder, a IM esteve manobrando com o exército enquanto a camada mais avançada das massas, particularmente a juventude, continuava a lutar contra o SCAF com manifestações que custaram centenas de vidas. O SCAF entendeu que poderia confiar na Irmandade Muçulmana mais do que na juventude revolucionária, que tinha desempenhado um papel ativo e central na Revolução de 2011, e vice-versa, a IM confiou no SCAF mais do que nas massas nas ruas. A IM era uma oposição leal e respeitada, que, em última análise, tinha os mesmos interesses de Mubarak e do SCAF, a preservação do capitalismo e de seus próprios lucros. Uma revolução que vem de baixo não está na agenda da IM.

Sameh Elbagqy, ex-membro da Irmandade Muçulmana, disse: “O núcleo da visão econômica da Irmandade, se vamos classificá-lo de forma clássica, é o capitalismo extremo” [7]. A base de classe da IM é a burguesia. Isto é o que está fora da atenção e da análise de Ridha: qual é a base de classe da IM? É por isso que os americanos não estavam tão preocupados com a eleição de Morsi, porque o objetivo dele e de seu partido é preservar o capitalismo no Egito. Os imperialistas acreditavam que Morsi e seu partido poderiam restaurar a ordem no Egito e suprimir a revolução. Sob o regime de Mubarak, os capitalistas da Irmandade Muçulmana foram politicamente discriminados e algumas vezes até mesmo economicamente. A classe capitalista não é um bloco homogêneo. Pode haver concorrência e divisões entre eles. Eles só estão unidos por sua posição nas relações de produção, enquanto proprietários de capital, e estão, portanto, unidos em sua luta contra os trabalhadores.

Como era frágil o apoio que a IM – ou quaisquer outros candidatos – tinha entre as massas pode ser visto nos números da eleição presidencial em maio de 2012. Primeiramente, 54% das pessoas não foram votar. Seu instinto lhes dizia que esta eleição era uma farsa, que não havia candidatos que realmente representassem a revolução. Nem mesmo se pode comparar com a eleição de 1999, na Indonésia, depois da queda de Suharto, quando 90% das pessoas votaram. Em segundo lugar, dos 46% que votaram, Morsi recebeu somente 25% dos votos, o que significa somente 11,5% dos que estavam aptos a votar e que deram seu apoio a Morsi. Durante a eleição legislativa de novembro 2011 a janeiro 2012 – a IM recebeu 37,5% dos votos dos 54% que realmente votaram, o que significa somente 20% da população como um todo. Dentro de poucos meses, de janeiro de 2012 a maio de 2012, a IM perdeu quase metade de seu apoio. Quanto mais próxima a IM estava do poder, mais exposta ficava aos olhos das massas. Isto não é diferente do Partido da Prosperidade e da Justiça na Indonésia (a contrapartida da Irmandade Muçulmana na Indonésia) – mas a um ritmo mais lento, visto que não há nenhum processo revolucionário agora na Indonésia – onde, depois de ganhar cargos no governo, ficaram expostos como um grupo de ladrões corruptos e servos dos capitalistas.

No segundo turno da eleição presidencial, quando a escolha era entre Morsi, o candidato islâmico, e Shafik, o candidato dos militares, as massas distribuíram o seu apoio quase igualmente entre os dois candidatos. Metade (51,7%) escolheu Morsi porque temiam o retorno de Mubarak e do exército, enquanto a outra metade (48,3%) apoiaram Shafik porque temia a lei da Sharia islâmica. O que estava na mente da maioria das pessoas era que mal era o menor. Mesmo alguns da esquerda ficaram presos na lógica do mal menor.

A Irmandade Muçulmana governou, mas com um acordo com o SCAF de que o regime de Morsi não tocaria seu império comercial e iria protegê-los dos tribunais civis por todos os crimes que cometeram contra o povo. Até agora nem um só oficial do exército foi levado à justiça pelos assassinatos cometidos contra os manifestantes. Enquanto isso, Washington entendia muito bem que a IM era uma parceira em que eles podiam confiar para manter a estabilidade do investimento e do clima político. O Egito é um país importante. Uma revolução ali poderia desestabilizar toda a região. Quando John Kerry visitou o Egito e se encontrou com Morsi, em março, 250 milhões de dólares foram imediatamente liberados para o Egito, o que era um sinal da confiança de Washington na Irmandade Muçulmana, a mesma organização que considerava como “organização terrorista” até há pouco tempo.

Os militares, o Estado e o Bonapartismo

No entanto, estaríamos errados em pensar que a relação entre a IM e os militares é de harmonia. Mas seria ainda mais incorreto pensar que a IM e os militares são inimigos nos princípios. A IM e os militares estão unidos em seu medo das massas trabalhadoras e da revolução, e juntos manobraram – enquanto mantinham, tanto quanto possível, os seus próprios interesses – para que a ordem pudesse ser restaurada no Egito.

Rhida errou, pois, em sua avaliação sobre a relação entre Morsi e o exército, que ele apresenta com a chamada “lógica da equivalência”:

“O envolvimento militar na derrubada de Morsi… foi mais por causa do relacionamento que foi criado entre os militares e Morsi depois da eleição… Desde que chegou ao poder, Morsi removeu sistematicamente o poder dos militares… Esta situação logo colocou os militares em posição marginalizada, assim como os outros poderes políticos que tinham sido marginalizados pela presidência de Morsi e da Irmandade Muçulmana, como os liberais, os campos seculares, e também a Esquerda revolucionária. Esta conjuntura e constelação política então fez o que chamei como uma forma de lógica de equivalência, citando Laclau-Mouffe, entre aqueles que foram marginalizados por Morsi”.

Primeiro, os militares não podem ser comparados com a outra força política, “os liberais, os campos seculares e também a Esquerda revolucionária”. O militar é parte essencial do Estado, como Marx e Engels explicaram que o Estado, em última análise, depois de ser despojado de todos os seus véus, consiste principalmente de corpos especiais de homens e mulheres armados que servem aos interesses das classes proprietárias. Foi o exército que permitiu à Irmandade Muçulmana governar, e assim eles também poderiam removê-la quando necessário, como aconteceu com Mubarak. As elites militares não são muito afeiçoadas à Irmandade Muçulmana e, na verdade, não confiam nela. Mas a Irmandade Muçulmana é o menor mal aos seus olhos, como também para o imperialismo EUA, para quem o pior mal é a conquista do poder pelas massas trabalhadoras.

Contudo, a IM não é uma organização cheia de tolos. Aproveitando a onda revolucionária onde as massas abrigam profundo ódio contra o regime ditatorial dos militares, a IM deu várias estocadas no exército, com várias tentativas de mudar o pessoal do exército para fortalecer sua própria posição. No entanto, esses conflitos entre Morsi e o exército não mudam o fundamental: que ambos estão na base do capitalismo, e que o exército é um corpo especial de homens e mulheres armados do Estado.

Em uma situação de crise na sociedade, em que a luta de classe chega a determinada altura, onde a burguesia não pode mais restaurar a ordem, mas a classe trabalhadora é incapaz de tomar o poder, o Estado pode ganhar certa independência e pode agir com o objetivo de salvar toda a situação. A sociedade não pode estar continuamente sob o calor escaldante da luta de classes. O Estado, neste caso o exército, teve que intervir em algum momento. No primeiro ato da revolução, através da remoção de Mubarak, uma vez que este e seu partido, o NDP, não mais conseguiam segurar a situação e haviam se convertido em uma carga; no segundo ato, chutando Morsi e a IM para fora, pelas mesmas razões.

Este fenômeno se chama Bonapartismo, em que, de acordo com Ted Grant, “os antagonismos dentro da sociedade se tornam tão grandes que a máquina estatal, ‘regulando’ e ‘ordenando’ esses antagonismos, enquanto se mantém como instrumento dos donos da propriedade, assume certa independência de todas as classes. Um ‘juiz nacional’ concentrando o poder em suas mãos ‘arbitra’ pessoalmente os conflitos dentro da nação, lançando uma classe contra a outra, permanecendo, no entanto, como uma ferramenta dos donos da propriedade” [8]. O Bonapartismo é um fenômeno que vimos muitas vezes nos países subdesenvolvidos, porque, por um lado, a burguesia é fraca, e, por outro, por termos uma crise aguda que continuamente pressiona a nação devido às insuportáveis condições de pobreza e exploração sofridas pelas massas.

Para o companheiro Rhida, os militares se envolveram na derrubada de Morsi por causa da chamada “lógica da equivalência”, porque também foram marginalizados por Morsi; portanto, junto com os liberais, os secularistas e a Esquerda revolucionária, removeram Morsi. Este erro é fatal. Os militares egípcios não intervieram na qualidade de um “aliado” ou “parceiro” das massas, que estão igualmente marginalizadas, mas como um Estado com caráter Bonapartista, como acima explicado.

Em meu artigo anterior (Houve um golpe militar no Egito?), foi explicado que:

“Hoje, as massas ganharam uma batalha, mas a luta ainda não acabou. A ausência de um partido revolucionário permite que os militares manobrem e salvem a situação através da instalação de Mansour, como chefe do governo provisório. Esta é a fragilidade do movimento egípcio atual, e não há nenhum outro caminho senão manter a construção das forças do socialismo revolucionário neste movimento” [9].

Nada terminou ou tende a terminar, como Rhida afirma que “os militares estiveram subordinados à liderança política revolucionária”. Não há sequer uma “liderança política revolucionária”, por falar nisto. É somente a debilidade do movimento, decorrente da ausência de organização e de uma liderança preparada, que permite aos militares manobrar. Deve-se salientar mais uma vez que a intervenção militar não veio de uma posição de força, mas de uma posição de fraqueza. Isto fica provado pelo fato de que o general Sisi, depois de declarar a dissolução do governo Morsi, não pôde instalar o SCAF como governo provisório, como o fez quando Mubarak caiu. Eles agora estão contando com elementos da burguesia liberal em torno de Al Baradei para canalizar esta revolução de volta aos seguros canais democráticos.

Concluindo

The Economist, a revista da classe dominante, definiu com maior rigor os riscos depois da queda de Morsi:

“O precedente que a destituição de Morsi representa para outras democracias instáveis é terrível. Vai encorajar os desafetos a tentar ejetar governos não votando contra eles, mas interrompendo seu domínio. Criará incentivos às oposições em todo o mundo árabe a perseguirem suas agendas nas ruas, e não no parlamento. E, dessa forma, irá reduzir a possibilidade de paz e prosperidade em toda a região” [10].

Em outras palavras, a ilusão democrática burguesa tem de ser restabelecida no Egito.

O que agora está nas mãos dos militares e de Al Beblawi hoje é apenas uma sombra de poder. O equilíbrio de forças de classe hoje é favorável às massas trabalhadoras. Mas, no momento em que as massas tiverem um partido e uma liderança que possa resolver a questão do poder, então esta sombra começará a adquirir substância. As massas não podem permanecer em situação de levantamento por tempo indefinido. Elas não podem estar nas ruas durante semanas sem a perspectiva de vitória à vista. Eventualmente o cansaço vai se manifestar e as forças contrarrevolucionárias podem ganhar vantagem com isto.

No entanto, a questão é: poderá o próximo governo resolver os problemas fundamentais no Egito, que é a questão do pão? Esta questão não é somente sobre democracia. “Para as massas, democracia não é uma palavra vazia. A prova de fogo da democracia é se pode encher estômagos vazios”, escreveu Alan Woods na declaração da CMI sobre a revolução [11]. No período de crise mundial que hoje vivemos, a democracia burguesa não pode encher esses estômagos vazios. O próximo governo no Egito será um governo de crise. A ausência de liderança revolucionária dará ao movimento no Egito um caráter prolongado, com revoluções e contrarrevoluções vindo uma depois da outra, com avanços e recuos que manterão a consciência do povo em agitação e movimento. Este é um processo de aprendizado para as mais amplas massas, um processo que infelizmente tem que ser pago com o sangue do povo. Mas não existe nenhum outro caminho.

Precisamos construir um partido, uma liderança revolucionária, que possam entender o equilíbrio de forças de classe e apresentem palavras de ordem e um programa, lembrando que, como disse Rosa, “é apenas a parcela mais consciente e resoluta do proletariado que aponta as tarefas históricas de toda a ampla massa da classe trabalhadora a cada passo”. Estamos interessados na questão da revolução egípcia não por causa de apenas um sentimento de solidariedade, mas porque a mesma questão será colocada na futura revolução na Indonésia. Portanto, esse partido deve estar preparado bem antes de a revolução bater em nossa porta. As massas proletárias indonésias não podem confiar apenas na espontaneidade revolucionária; elas também necessitam de um partido que esteja preparado para conquistar o poder. No final, como Trotsky corretamente disse, “a situação política mundial como um todo é caracterizada principalmente pela crise histórica da liderança do proletariado” [12].

Tradução de Fabiano Adalberto


[1] Muhammad Ridha, “Revolusi Mesir Sekarang dan Pertanyaan Rumitnya”, oito de julho de 2013.

[2] Rosa Luxemburg, “Mass Strike”, 1906

[3] Rosa Luxemburg, “Our Program and the Political Situation”, Dezembro de 1918.

[4] Rosa Luxemburg, “What Does the Spartacus League Want?” Dezembro de 1918

[5] Citado de Pierre Broué, “The German Revolution 1917-1923”. Rosa Luxemburg, Die Rote Fahne, 11 janeiro de 1919.

[6] Leon Trotsky, “Luxemburg and the Fourth International,” 1935.

[7] Suzy Hansen, “The Economic Vision of Egypt’s Muslim Brotherhood Millionaires”, Bloomberg Businessweek, 19 abril de 2012.http://www.businessweek.com/articles/2012-04-19/the-economic-vision-of-egypts-muslim-brotherhood-millionaires

[8] Ted Grant, “Democracy of Bonapartism in Europe – A Reply to Pierre Frank”, Agosto de 1946.

[9] Ted Sprague, “Was there a Military Coup in Egypt?”, quarto de julho de 2013.

[10] The Economist, “Egypt’s tragedy”, seis de julho de 2013.

[11] Alan Woods, “A Segunda Revolução Egípcia”, cinco de julho de 2013.

[12] Leon Trotsky, “Programa de Transição,” 1938.