Espanha: a questão nacional e a Catalunha

A questão nacional permanece como uma úlcera sangrenta na história política espanhola e assim permanecerá até que a classe trabalhadora não se proponha abertamente a lutar por sua emancipação como classe, resolvendo os problemas democráticos pendentes pelo caminho, tais como a mencionada questão nacional catalã, basca e galega e a formação de uma república democrática.

Romper o fetichismo da “unidade da Espanha”

Enquanto a maioria da classe trabalhadora espanhola não for capaz de varrer para o lado o fetichismo reacionário da “unidade da Espanha” e, mais exatamente, de sua “unidade forçada”, fazendo seu o direito democrático de autodeterminação da Catalunha, Euskadi[1] e Galícia, permanecerá como um fantoche nas mãos da burguesia espanhola e de seu aparato de Estado clerical-franquista. Estes sempre poderão usar os antagonismos e as suspeitas nacionais e o espantalho do “separatismo” para ligar a exploração do trabalho assalariado e a indigência de suas condições asfixiantes de vida com a estória de que existem interesses superiores: a “unidade da pátria”, diante das “miseráveis” preocupações que a classe trabalhadora teve como sorte viver.

A classe trabalhadora espanhola deve rechaçar a vaporosa ilusão – comparável ao “além” religioso – de que pertence à Espanha de alguma maneira, pois esta permanece solidamente nas mãos das 200 famílias oligárquicas que decidem o destino de todos e de cada um dos habitantes do solo espanhol. Da mesma maneira que só mortos crentes poderão acessar o “além”, só morrendo os trabalhadores poderão reclamar realmente como seu um palmo de terra espanhola, o que guarde seus restos ou cinzas.

Enquanto a classe trabalhadora não se reconciliar com o fato de que a única unidade viável na península ibérica deve se basear na unidade voluntária e em pé de igualdade, expressada democraticamente pelos diversos povos e nações que a compõem, nunca poderá haver unidade verdadeira na classe trabalhadora. Sem isso, a porta sempre estará aberta às suspeitas, desconfianças e conflitos nacionais. E esta situação sempre será usada pelas classes privilegiadas para manter a classe trabalhadora dividida e confrontada entre si.

Mas não culpamos os trabalhadores por tudo isso, mas aos dirigentes da esquerda espanhola, que cederam covardemente ao nacionalismo espanholista do regime de 1978[2] e que colocam, com isso, obstáculos no processo de tomada de consciência da classe trabalhadora.

Inevitavelmente, será necessária, então, uma experiência mais ou menos prolongada, por meio da qual as amplas massas trabalhadoras associem a bandeira rojigualda[3] e seu nacionalismo opressor, ao inimigo de classe e a sua própria situação de opressão. Esta experiência pode ser mais curta do que parece – e já começa a dar seus primeiros frutos – agora que o cachorros de caça do franquismo, na direita e no aparato do Estado, ainda com toda sua insignificância social, mas inebriados de arrogância, desataram-se a mostra sua verdadeira face como a bota suja do grande capital.

O caráter progressista do movimento de autodeterminação catalã

O movimento atual pela independência catalã não é uma invenção de intelectualidades nem uma expressão do “egoísmo nacional” catalão. Encontrou combustível na crise do regime, social e econômica, iniciada com a crise de 2008, e se sustenta em uma opressão nacional real, às vezes aberta, às vezes relativa, da bota do aparato de Estado e do sentimento de superioridade espanholista da classe dominante que fere e humilha a maioria do povo catalão. Este movimento evoluiu, abandonando seus aspectos identitários e nacionalistas, para emergir como um movimento de massas amplo, democrático, republicano que ameaça as mesmas bases do regime capitalista espanhol. Esta gestação de um enorme potencial revolucionário, não só para o povo catalão, mas para as mesmas classes trabalhadoras catalã e espanhola. As inspiradoras jornadas revolucionárias de 1º e 3 de outubro de 2017 foram uma mostra disso.

A Catalunha constitui hoje a posição mais avançada de rejeição ao regime monárquico de 1978. Não é tanto a independência como o ambiente de rebelião contra a ordem estabelecida o que gera pânico na classe dominante espanhola e seu aparato de Estado.

Amedronta-os que as pessoas “tomem a justiça em suas próprias mãos”; ou seja, que pratique a desobediência civil em grande escala e exerça o direito de autodeterminação pela ação direta das massas, como em 1º de outubro de 2017, desobediência às leis estabelecidas; um aberto desacato popular que expressa um claro ambiente revolucionário, o mais radical em 40 anos de “democracia”. Por isso a burguesia catalã desertou do campo nacional catalão e se protegeu sob o campo espanholista, onde seus interesses permanecem mais bem resguardados.

O marxismo diante do “trabalhismo”

O trabalhismo vulgar daqueles que se situam em uma pretendida neutralidade de estilo: “isto não acontece conosco”, não tem nada de classista nem de marxista. O marxismo aproveita a crise revolucionária desatada por qualquer reivindicação democrática ou social para impulsionar o movimento adiante, enquanto coloca sobre a mesa suas demandas socialistas, pois só sob o fogo do ambiente de rebelião, não importa o que inicialmente alimente a chama, podem fazer uma revolução e as ideias socialistas crescerem e se desenvolverem. Se a classe trabalhadora catalã se propuser defender a luta pela república catalã com um programa socialista, arrastaria depois de si a maioria do povo catalão, sendo a classe mais consistente e poderosa e, ainda mais agora, depois de ficar a pequena burguesia – majoritariamente pró-independência – órfã de direção e guia, papel exercido sobre ela tradicionalmente pela grande burguesia.

Uma república catalã adquirindo imediatamente um conteúdo socialista – golpeando o grande capital e sem afetar a sua aliada, a pequena burguesia – teria um impacto poderosíssimo no restante da Espanha, que veria se desenrolar um movimento revolucionário de igual magnitude.

República catalã: a centelha da revolução ibérica

A república catalã, ainda mais se adquirir um conteúdo socialista, seria, assim, a centelha que levaria à revolução ibérica. Seria possível, então, emendar ambos movimentos de um lado a outro do rio Ebro. Descartado o “socialismo em um só país” – esse sonho utópico pequeno-burguês do nacionalismo de esquerda –, a formação de uma federação voluntária de repúblicas socialistas ibéricas, incluindo Portugal, seria só o toque de clarim para o início de uma processo mais vasto que deve detonar um movimento revolucionário internacional que estabeleça uma federação socialista europeia e culmine, posteriormente, em uma federação socialista mundial.

Veríamos assim se cumprir novamente o trajeto projetado pela teoria da revolução permanente formulada por León Trotsky: um movimento revolucionário iniciado em uma nação por reivindicações democráticas (a despeito das teses trabalhistas) que só pode triunfar sob a direção da classe trabalhadora incorporando suas demandas socialistas e que, inevitavelmente, deve adquirir para sobreviver um impacto e desenvolvimento internacional que, por sua vez, deve culminar na revolução socialista mundial.

“A necessidade só é cega quando não é compreendida. A liberdade é o conhecimento da necessidade”. A teoria, portanto, é o guia da ação revolucionária.

[1] País Basco, em seu nome na língua basca (Nota do Tradutor – N.T.).

[2] Forma política que o capitalismo adotou após o esgotamento do regime ditatorial de Franco, com o restabelecimento da monarquia espanhola e o pluralismo político (N.T.).

[3] Vermelha-amarela ou rubro-dourada, como é popularmente conhecida a bandeira da Espanha (N.T.).

Artigo publicado na página do Lucha de Clases, seção espanhola da Corrente Marxista Internacional, sob o título “La cuestión nacional y Catalunya”, em 11 de julho de 2019.

 Tradução de Nathan Belcavello de Oliveira