Entregadores em ação pelo fim da terceirização e por carteira assinada

Os entregadores por aplicativo estão experimentando um dilema importante sobre os rumos do movimento independente por suas reivindicações e a pressão pelo “diálogo” que o movimento está sofrendo.

Não é segredo para ninguém que as condições de trabalho dos entregadores são péssimas e, na verdade, remontam a condições do século 19. Isso é muito sério. São trabalhadores que sequer têm direito ao salário e estão à margem de todos os direitos conquistados ao longo de séculos de luta pelo movimento operário internacional e nacional.

Terceirização e carteira assinada

Uma das reivindicações do movimento é o fim das entregas múltiplas e o reajuste do preço da entrega. O óbvio precisa ser dito: entregadores ganham por entrega. É nisso que reside sua brutal exploração, é um dos pilares que leva as condições de trabalho desse setor de volta ao século 19. O ganho salarial vinculado à produtividade, nesse caso ao número de entregas ou viagens, é uma das formas do capital de aumentar a exploração do trabalho e, portanto, de seus lucros. As entregas múltiplas elevam o grau dessa brutal exploração, uma vez que parte das entregas é feita de graça pelo entregador! Ambas as pautas são justíssimas e colocam esses trabalhadores em choque de interesses com os patrões.

É importante notar o seguinte. Essas empresas estão tendo quedas nos lucros, em relação ao negócio de entregas de restaurantes[1], por conta do retorno das atividades presenciais. Estão desesperados e essa é uma das pautas que os fazem gelar a espinha.

Trata-se aqui de uma disputa direta entre trabalhadores e patrões por uma fatia maior da mais-valia, isto é, dos lucros. E o que definirá quem ficará com essa fatia é a correlação de forças dos trabalhadores e de suas organizações frente os interesses dos patrões.

Outra pauta das reivindicações é o fim das Operadoras Logísticas, empresas que terceirizam o serviço de logística de outra empresa, na prática, são elas que terceirizam os entregadores por aplicativos. No iFood existem dois modelos de cadastro de entregadores. Um deles é direto com a plataforma: são chamados de Nuvem. Estes definem seu próprio horário de trabalho e representam 80% dos trabalhadores ativo, segundo a plataforma. A outra modalidade é a intermediada pelo Operador Logístico.

Estes têm jornada fixa agendada previamente, e sua relação com o iFood é intermediada por uma empresa. Os entregadores respondem hierarquicamente a um supervisor, chamado de “líder de praça” ou “operador logístico” também.  Se, por um lado, o entregador cumpre escalas pré-determinadas ao estilo de um trabalhador formal, por outro, ele não tem férias, folga remunerada e salário fixo. A remuneração se dá de acordo com as corridas que faz. (…) as empresas operadoras logísticas controlam os cadastros e as senhas da sua frota na plataforma, tendo o poder, inclusive, de desativar suas contas. [2]  

Na prática, é a terceirização da terceirização, a chamada quarteirização do trabalho. Essa situação é a expressão mais bem acabada das consequências da Lei da Terceirização (Lei 4.330/04) que foi sancionada pelo ex-presidente Michel Temer em 31 de março de 2017. Essa lei permite a terceirização, inclusive das atividades-fim da empresa. 

Para exemplificar, uma empresa que já é terceirizada, terá autorização legal para subcontratar outras empresas para realizar serviços de direção do trabalho, contratação e de remuneração (atividades-fim), que se caracteriza pela chamada “quarteirização” do trabalho. (COSTA, H. A.; COSTA, E.S. Trabalho em call centers em Portugal e no Brasil. Tempo Social, São Paulo, v. 30, n. 1, p. 105-127, 2018.)

A pauta de fim do Operador Logístico se conecta diretamente com a luta contra a terceirização, portanto, pela revogação da lei de terceirização.

Um dos impactos fundamentais da flexibilização do trabalho (terceirização e precarização) presente nesse modal é sem dúvida o adoecimento dos trabalhadores, seja mental como físico.

Parte dos efeitos desse processo se materializa, conforme indicam diferentes pesquisas, na relação direta entre trabalho terceirizado e alta incidência de acidentes de trabalho, inclusive aqueles que resultam no óbito do trabalho. Outra manifestação, bastante significativa, diz respeito aos adoecimentos com nexo laboral, sobretudo aqueles relacionados a lesões osteomusculares e transtornos mentais. (Ricardo Antunes, O privilégio da Servidão. Boitempo Editorial, 2018.)

A CPI dos Aplicativos, realizada pela Câmara Municipal de São Paulo no ano passado, mostrou que entre 60% e 70% do número de atendimentos no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo relacionados a sinistros com motos vieram de pessoas que trabalham com aplicativos. O relatório final também mostrou que antes dos aplicativos esses atendimentos eram de 20% passando a 80% depois deles.[3]

É por tamanho risco que correm que esses trabalhadores exigem, de maneira confusa, as apólices de seguro. E para quem não sabe o que é uma apólice de seguro, ela é um documento firmado entre a empresa e o “prestador de serviço” ou “cliente” com a empresa seguradora, onde todos os detalhes de um acordo entre as partes estão descritos. É um tipo de contrato, nos casos das apólices de seguro de vida, que prevê o cumprimento, por parte das empresas, de políticas de saúde e segurança do trabalho, principalmente para atividades de risco. Nele estão presentes os tipos de risco que o segurado está sujeito e os valores que ele ou seus familiares recebem se caso algum dos cenários previstos venham a acontecer.

Ora, mas isso não seria uma pauta sobre seguridade social? O direito dos entregadores de serem segurados pela previdência social em caso de acidentes e adoecimento. A luta pela previdência social forjou a classe trabalhadora em classe para si, isto é, que se organiza em sua defesa, formando laços de solidariedade e de apoio mútuo. Aqui não se trata apenas dos acidentes ou adoecimentos, mas é uma luta em defesa de uma aposentadoria também, em defesa de um futuro que seja minimamente digno.

Nós apoiamos a luta dos entregadores e sua greve e explicamos a necessidade de unificar as pautas em torno da luta pela carteira assinada para todos os entregadores de aplicativo e pelo fim da lei de terceirização. É esse o caminho para unificar todos os entregadores, de diferentes plataformas, sejam Nuvem ou vinculados a Operador Logístico. São essas as reivindicações para conectar os entregadores aos demais trabalhadores terceirizados e para removê-los das margens das leis trabalhistas e da previdência social.

Sobre os rumos do movimento

Uma paralisação nacional havia sido convocada no início de janeiro para acontecer no feriado de aniversário da cidade de São Paulo, dia 25 de janeiro, na sede nacional do iFood em Osasco. Essa paralisação foi desarticulada durante a reunião do Ministro do Trabalho, Luiz Marinho, e Lula junto aos representantes de 10 centrais sindicais que ocorreu no último dia 18 de janeiro.

Paulo Galo, representando a Aliança dos Entregadores de Aplicativo, participou dessa reunião e em sua fala levantou pontos importantes, como por exemplo, a defesa da carteira assinada, da CLT e de todos os direitos conquistados pelos trabalhadores: seguro-desemprego, salário, férias, descanso remunerado, seguridade. E alertou que as diferentes iniciativas de alianças de entregadores e mesmo sindicatos que estão sendo organizados por lideranças dos entregadores acontecem pela falta de disputa das centrais sindicais. Temos total acordo com essa posição apresentada por Paulo Galo, o Galo de Luta, e saudamos essa perspectiva apontada.[4]

Contudo, o mesmo Galo renunciou à greve convocada e a colocar na mesa a reivindicação da carteira assinada ou mesmo as pautas que estavam na pauta da greve, em favor do “diálogo”.[5] Isso não pegou bem na base da categoria. Diversas associações e entregadores independentes continuam convocando a greve e a reunião com o ministro Marinho e Lula serviram mesmo para dividir e enfraquecer o movimento de greve.

Entre as pautas da greve, estava a participação na regulamentação federal do modal de aplicativos. Essa pauta foi o fio condutor para que a greve fosse desmobilizada, uma vez que agora os entregadores por aplicativo foram integrados nas comissões de trabalho que vão discutir a regulamentação da profissão. Os entregadores saíram da reunião com um saldo de uma greve desmobilizada e uma promessa de diálogo, sem mais.

Para muitos, isso foi pouco. E eles tem razão. Para quem continua fazendo as entregas múltiplas e sentido o ódio de classe crescer cada vez mais não há razão para desmobilizar a greve e seguem mesmo que sem uma de suas principais lideranças. Esse foi o tamanho da pressão que essa reunião jogou sobre a independência do movimento.

E esta é a questão central, a independência de classe do movimento operário. O governo Lula-Alckmin será obrigado a promover ataques contra nossos direitos. Ele sequer colocou em seu programa a revogação da lei de terceirização e da reforma trabalhista, dada a pressão do capital. Os interesses dos trabalhadores, como vimos, são interesses que os colocam em choque contra os patrões e Lula não está interessado em choques de classe. Ele quer o “diálogo”, leia-se, que controlar o movimento dos trabalhadores para aceitar o regime de exploração capitalista.

E contra isso, teremos que lutar. Por isso, apoiamos o chamado independente para a continuidade da greve dos entregadores e apontamos como bandeiras de unidade a luta pelo fim da terceirização e pela carteira assinada para todos os entregadores de aplicativo.


[1] Disponível em: https://www.tecmundo.com.br/mercado/241022-ifood-registra-queda-66-lucro-entregas-refeicoes.htm

[2] Disponível em: https://www.dmtemdebate.com.br/sistema-jagunco-por-que-o-ifood-tenta-esconder-sua-relacao-com-empresas-intermediarias-ol/

[3] Disponível em: https://jc.ne10.uol.com.br/colunas/mobilidade/2022/12/15140594-entregadores-de-aplicativos-respondem-por-70-das-internacoes-de-transito-diz-cpi-dos-apps.html

[4] Disponível em: https://www.instagram.com/p/Cnm3qKoKu7w/

[5] Disponível em: https://twitter.com/galodeluta/status/1616137075518230528