Em memória de Valery Sablin: a verdadeira história do Outubro Vermelho

Na quinta-feira, 7 de setembro*, o Channel Four transmitiu um programa fascinante como parte de sua série Secret History, intitulado Mutiny – a verdadeira história do Outubro Vermelho. Esse notável documentário nos deu, pela primeira vez, a verdadeira história por trás do filme de Hollywood de 1990, A Caçada ao Outubro Vermelho, uma versão cinematográfica de um romance de 1984 de Tom Clancy.

“Confie no fato de que a história julgará os eventos com honestidade e você nunca terá que se envergonhar do que fez o seu pai. Sob nenhuma circunstância serás uma daquelas pessoas que criticam, mas que não seguem suas ações. Essas pessoas são hipócritas – são pessoas fracas, sem valor, que não têm o poder de reconciliar suas crenças com suas ações. Desejo-lhe coragem, meu querido filho. Seja forte na crença de que a vida é maravilhosa. Seja positivo e acredite que a Revolução sempre vencerá”. (Última carta de Valery Sablin a seu filho antes de sua execução)

Contada por Clancy, a história de Marko Ramius, um capitão de submarino desertor, que levou a sua embarcação em uma viagem épica pelo Atlântico, se inspirou em fatos reais.

O autor tomou como ponto de partida um motim liderado por Valery Sablin no navio de guerra soviético Sentry (Storozhevoy, em russo), em novembro de 1975. Como ele explica em seu livro, “Existe um precedente para isso, sim senhor. Em 8 de novembro de 1975, o Storozhevoy, uma fragata soviética armada com mísseis, da classe Krivak, tentou fugir de Riga, na Letônia, para a ilha sueca de Gotland. O oficial político a bordo, Valery Sablin, liderou um motim da tripulação. Sablin e outros 26 foram levados à corte marcial e fuzilados. No entanto, a verdadeira história do Outubro Vermelho foi escondida na época pelo governo soviético e só agora foi revelada“.

Até o final da Guerra Fria, a inteligência ocidental acreditava que a tripulação iria desertar, e era essa a base do livro e do filme de Clancy. No entanto, novas evidências surgidas durante os últimos dias da própria União Soviética e reveladas no programa do canal quatro mostram que a narrativa de Clancy é imprecisa. O objetivo do Sentry não era desertar para o Ocidente, nem poderia ser, porque o líder do motim, Valery Sablin, era um comunista comprometido. Sua intenção não era fugir para o Ocidente, mas provocar uma revolução política na URSS com o objetivo de derrubar o domínio da privilegiada burocracia stalinista e restaurar um regime genuíno da democracia soviética leninista. Como as notas do programa colocam: “Um fervoroso crente no comunismo, Sablin estava indo para Leningrado (agora São Petersburgo). Inspirado pela memória do navio de guerra Potemkin, que se amotinou durante o levante de 1905, e pelo cruzador Aurora, que havia acendido a revolução de 1917, ele esperava que seu motim desencadeasse uma nova rebelião em Leningrado e completasse o que via como a Revolução Russa inacabada“.

Essa é uma história da vida real, muito mais rica, extraordinária e comovente do que as melhores obras de ficção. Sem dúvida, inspirará os trabalhadores e a juventude da Rússia e do mundo inteiro. Esse maravilhoso documentário merece o maior público possível.

Quem foi Valery Sablin?

Valery Mikhailovich Sablin era filho e neto de oficiais da Marinha e seguiu seus passos, alistando-se na Academia Naval de Frunze aos 16 anos. Toda a sua formação incutiu nele, desde tenra idade, um profundo amor pelo mar e pela marinha, um profundo senso de dever, disciplina militar e patriotismo soviético. Mas Sablin não era apenas um militar, ele era, antes de tudo, comunista e filho da Revolução de Outubro. Foi isso que deu sentido interno à sua vida e a todas as suas ações.

Sablin como cadete da Marinha Soviética em setembro de 1956

Valery foi criado em uma base naval entre os filhos de oficiais da marinha. Sua perspectiva geral era severamente moral; como relatou Boris Sablin, um de seus irmãos, ele era “incapaz de mentir“. Ele detestava a hipocrisia em todas as suas formas. Também era incapaz de testemunhar qualquer ato de injustiça e permanecer calado. Desde a mais tenra infância, ele sonhava em ir para o mar. Em 1955, com apenas 16 anos, Valery foi aceito na elite da Academia Militar Frunze, em Leningrado, onde se tornou um aluno exemplar. Mesmo assim, ele era um comunista dedicado. Ele foi eleito chefe da organização da juventude comunista. Na escola, ele era conhecido, provavelmente por brincadeira, como “a consciência da classe“. De alguma forma, eles percebiam que ele era diferente. E chegaram mesmo perto de entender onde estava a diferença. Um de seus colegas de classe lembrou: “Todos nós nos educamos para acreditar na ética socialista e comunista. Todos nós acreditávamos nela. Mas Valery tinha tanta integridade que queria colocar em prática esses ideais“.

Essas linhas revelam uma verdade importante sobre a União Soviética. O regime burocrático que chegou ao poder após a morte de Lenin se caracterizava principalmente pela hipocrisia. As pessoas juravam lealdade ao comunismo e às ideias de Lenin, enquanto, na prática, todo o sistema era a negação dos ideais democráticos e igualitários da Revolução de Outubro. Dever-se-ia fechar os olhos para as desigualdades flagrantes e a corrupção universal, agir como se essas coisas não existissem. Mas essa contradição gritante entre teoria e prática, entre palavras e ações, era totalmente estranha à natureza de Valery Sablin. Desde o primeiro período de sua vida consciente, ele se revoltou contra ela com todas as fibras de seu ser. Essa honestidade sem medo o caracterizou ao longo de sua vida. Valery não queria apenas fazer discursos sobre o comunismo; ele queria viver sob o comunismo. Ele “queria colocar essas ideias em prática“.

A era de Khrushchev, que se seguiu à morte de Stalin em 1953, representou um ponto de virada para a URSS. A morte do tirano abriu as comportas do descontentamento na Rússia. A burocracia dominante, sob o novo líder, Nikita Khrushchev, avançou com cautela para reformar de cima para impedir a revolução de baixo. Mas nunca foi a intenção de Khrushchev abolir o poder e os privilégios da casta dominante – os milhões de funcionários parasitas no Estado, no Partido e nas forças armadas que governavam em nome da classe trabalhadora, mas que, na verdade, eram, como explicou Trotsky, um tumor parasitário no Estado dos trabalhadores.

Valery deu seu primeiro passo político aos 20 anos, escrevendo para o premier soviética Nikita Khrushchev uma carta denunciando as desigualdades sociais que desfiguravam o “socialismo” soviético. Foi uma ação ousada e corajosa, o que poderia significar, no mínimo, arruinar suas perspectivas de carreira, ou até pior. Sem surpresa, as autoridades não acharam divertido. A resposta deles foi uma severa repreensão, resultando na demora em sua formatura. É uma indicação da grande capacidade e tenacidade pessoal de Sablin que, apesar desse revés, ele conseguiu concluir seus estudos e se qualificar na academia militar com honras.

Em 1964, Khrushchev foi deposto, e uma das principais prioridades do novo regime era a expansão da marinha soviética para se igualar à dos Estados Unidos. A marinha era o orgulho e a alegria do novo líder Leonid Brezhnev, mas o sentimento estava longe de ser mútuo. O historiador naval Nikolai Cherkashin observou que: “A liderança geriátrica do Kremlin no Politburo, com Brezhnev à frente, nunca levaria o país à prosperidade, não importando o verdadeiro comunismo em que Sablin acreditava“.

Em cinco anos, foi oferecido a Sablin o comando de um destroier, um galardão extraordinário para um oficial de 30 anos. Para surpresa e consternação de sua família, Valery recusou a oferta de uma comissão em favor de concluir sua educação, alistando-se na Academia Política Lenin: uma instituição de elite aberta apenas a oficiais militares. O amor de Valery Sablin pela marinha ficou em segundo lugar, prevalecendo sua devoção à causa da Revolução de Outubro e à classe trabalhadora. Sua recusa em aceitar a oferta de uma comissão naval inicialmente chocou sua família. Mas seu irmão Boris afirmou que, muito mais tarde, ele entendeu o motivo. Seu irmão queria entender como o sistema funcionava por dentro. Ele queria conhecer a natureza da besta, como condição prévia para derrubá-la.

Com obstinação determinada, ele mergulhou nos clássicos do marxismo: dia e noite vasculhou as obras de Marx, Engels e Lenin, em um esforço para entender a revolução. Acima de tudo, o jovem oficial da marinha estava atormentado por uma dúvida interior que crescia e envolvia continuamente sua alma. Em todo lugar para onde olhava, via privilégios, desigualdades e corrupção, que eram uma abominação para um verdadeiro comunista. Sua determinação silenciosa cresceu no sentido de agir para mudar o sistema. Como a Revolução de Outubro, que foi travada para destruir a desigualdade e a opressão de classe e dar poder à classe trabalhadora, acabou numa caricatura monstruosa, num regime totalitário burocrático que não tinha nada em comum com os ideais democráticos do Estado e da revolução de Lenin?

Na academia, Sablin descobriu, para seu desespero, que certos livros ainda estavam fora de alcance. Ele sabia que Trotsky havia sido um dos principais líderes da Revolução de Outubro, ao lado de Lenin. Ele também sabia que, após a morte de Lenin, Trotsky havia liderado a luta contra a burocracia stalinista, pela democracia dos trabalhadores, pelo internacionalismo proletário. Mas onde obter os escritos de Trotsky e dos outros líderes da Oposição? Ele esperava que, ao ingressar nessa escola de elite do Partido, finalmente obtivesse acesso aos arquivos fechados. Mas suas esperanças logo foram frustradas.

Sablin confidenciou amargamente ao irmão o sentimento de decepção de que, mesmo ali, havia censura. A educação política apresentada por essa instituição de elite era tão grosseira quanto a linha do Partido que ele aprendera na escola.

Mesmo sem acesso aos escritos de Trotsky, Valery conseguiu tirar suas próprias conclusões. A casta privilegiada de burocratas que dirigia o país nunca desistiria de seu poder sem luta. Sablin fez um estudo cuidadoso de O Estado e a Revolução, e percebeu então que “a armadura do Estado e do Partido é tão espessa que nem mesmo os ataques diretos a afetam“. E concluiu que: “Essa máquina precisa ser quebrada por dentro“. O significado dessas palavras foi revelado nos surpreendentes eventos de novembro de 1975.

A marinha sempre foi a ala mais revolucionária das Forças Armadas. Esse fato está relacionado à composição mais proletária dos marinheiros, em grande parte recrutados do proletariado industrial. As tradições revolucionárias dos marinheiros foram mostradas, em 1905, no célebre motim do navio de guerra Potemkin e novamente em 1917, quando os marinheiros de Kronstadt formaram a espinha dorsal das forças bolcheviques na revolução e na guerra civil. Essa história era bem conhecida por Valery Sablin, que a absorveu, por assim dizer, junto ao leite de sua mãe. As tradições revolucionárias da Rússia e o papel especial dos marinheiros nela logo se tornaram osso do osso e carne da carne desse homem notável.

O Sentry era um dos navios de guerra mais modernos da frota soviética. Sablin se incorporou a este caçador de submarinos em 1973, como o segundo no comando, logo abaixo de seu capitão, Anatoly Putorny. Sablin também era o chefe político do navio: em última análise, responsável pela KGB – a temida polícia secreta –, e estava encarregado de fornecer instruções políticas, manter o moral e procurar desvios da linha do Partido. Seu próprio “desvio” o levaria à morte em apenas três anos.

Preparativos para a revolta

No desempenho de seus deveres como oficial político, Sablin era obrigado a ministrar palestras regulares sobre o marxismo-leninismo – ou melhor, sobre a caricatura stalinista do marxismo-leninismo que foi adaptado para atender às necessidades da burocracia. Normalmente, essas palestras eram recebidas pelos homens com atitudes de tédio e indiferença, mas as palestras de Sablin eram diferentes. Sablin deliberadamente se afastava dos textos habituais do Partido e se concentrava em outros temas, particularmente a Revolução de Outubro, a Revolução de 1905 e as ideias genuínas do leninismo. Até os inimigos de Sablin foram forçados a admitir que ele era muito instruído e bem informado.

Storozhevoy

 

Em suas palestras, ele frequentemente se referia à longa tradição revolucionária da marinha, especialmente ao motim no encouraçado Potemkin. A marinha havia acabado de celebrar o septuagésimo aniversário desse famoso evento e, portanto, estava fresco na mente das pessoas. O historiador naval Nikolai Cherkashin salienta que “Sablin continuava as tradições revolucionárias bolcheviques, ele estava mergulhado nessas tradições. Ele era a carne e os ossos do Partido. Portanto, seus cálculos eram simples. Ele deve manter a fé nas tradições revolucionárias do encouraçado Potemkin“.

Antes que Sablin pudesse executar seu plano, primeiro tinha que encontrar apoiadores. Ele escolheu Alexander (Sasha) Shein, um jovem proletário com a cara franca e honesta de um típico mujique russo que, segundo ele próprio, era “um pouco rebelde“. Esse marinheiro de 20 anos foi escolhido para ajudar Sablin a preparar suas palestras. Sasha Shein mais tarde se tornou efetivamente o segundo no comando de Sablin durante o motim. “Esses cursos políticos eram uma zombaria total“, afirma ele com característica franqueza proletária. “As pessoas só os procuravam para dormir. Percebemos que era completamente insincero e que deixava tudo exposto“. Essas palavras expressam graficamente a atitude dos trabalhadores em relação ao “comunismo” oficial na União Soviética. O aspecto mais intolerável era justamente a falta de sinceridade – a hipocrisia que infectou todos os aspectos da vida e a envenenou como uma praga contagiosa.

Sob o capitalismo, os trabalhadores aceitam a existência de ricos e pobres como algo natural e inevitável. Você pode não gostar, mas simplesmente tem que aceitá-lo como uma consequência lógica do sistema de mercado. Mas que justificativa possível poderia haver para a desigualdade monstruosa em um sistema que se chamava “socialista” e se gabava de “construir o comunismo“, isto é, uma sociedade sem classes, o mais alto nível da civilização humana? A contradição entre palavras e ações na União Soviética era intolerável para qualquer pessoa que pensava. O ardente sentimento de injustiça que surgiu dessa contradição estava no cerne do motim no Sentry.

Eu disse a Sablin: de que serve toda essa vitrine?“, relembra Shein: “Se houver uma guerra, a quem vamos defender com toda essa retórica sem sentido?” Tal cinismo aberto estava muito difundido na URSS. A única coisa incomum nas palavras de Shein é o fato de ele se sentir capaz de se expressar ao seu oficial superior com tanta franqueza desarmante. Normalmente, o oficial político seria uma figura muito temida a bordo: um membro da confiança do Partido e membro da KGB, alguém para espioná-lo e mantê-lo sob controle. Mas os homens logo descobriram que esse oficial político era diferente. Sablin logo ganhou o respeito deles. “A tripulação pensava muito bem dele. Como chefe político, você poderia confiar nele“, lembra Victor Borodai, um soldado da marinha no Sentry. As relações de Sablin com os homens eram muito próximas para o agrado de seu superior. Ele foi avisado para mudar seus métodos, mas todos os avisos foram ignorados. Sablin estava seguindo sua própria agenda. As palestras de Sablin tinham um propósito muito sério: preparar os corações e as mentes da tripulação para a revolta. Vários marinheiros ficaram muito apegados a esse estranho “comissário”, tão diferente de todos os outros. Ele desenvolveu sentimentos de respeito e devoção.

Em 8 de novembro de 1975, o Sentry chegou ao porto báltico de Riga, na Letônia, para participar de uma cerimônia militar em comemoração ao aniversário da Revolução Russa. Sablin decidiu aproveitar a oportunidade apresentada por essa data das mais simbólicas no calendário soviético para pôr em marcha seu plano.

Naquela noite, Sablin decidiu agir. Primeiro, chamou Sasha Shein para a sala de palestras e fez uma pergunta inesperada: “Você estaria preparado para trabalhar para a KGB?” A reação de Shein foi uma mistura de raiva e decepção. Depois de tudo o que esse homem lhe ensinara, agora parecia estar tentando recrutá-lo para a polícia secreta como espião, um informante vulgar da KGB! A reação instintiva de Shein foi a de se retirar enojado, mas ele foi interrompido por uma voz tranquilizadora:

“Não, espere, Sasha, acalme-se, não fique com raiva. Eu estava apenas testando você. Sente-se. Devemos ter uma conversa séria…”.

O plano de Sablin era realmente surpreendente por sua audácia. Ele explicou que a burocracia havia traído a Revolução de Outubro e o povo soviético; que o regime de privilégio e desigualdade não tinha nada em comum com as ideias de Lenin e do Partido Bolchevique; e que a única saída era uma nova revolução de outubro. Ele explicou que a classe trabalhadora soviética tinha uma tradição revolucionária e que, com uma liderança ousada, os trabalhadores reagiriam. Em três dias, ele queria assumir o controle do Sentry e navegar para Leningrado. Lá eles emitiriam uma proclamação pelo rádio dirigida ao povo da União Soviética para se levantar contra a camarilha do Kremlin e introduzir um regime genuíno de democracia soviética.

Motim no Sentry

No dia 8 de novembro, o capitão Putorny foi informado de que alguns homens estavam bebendo a bordo. Como um comandante excepcionalmente diligente, Putorny decidiu resolver o incidente. Ele desceu e foi imediatamente preso. Sablin, então, reuniu a tripulação e mostrou-lhes um filme: Encouraçado Potemkin, o inspirador relato de Sergei Eisenstein sobre o motim naval de 1905 em Odessa. Enquanto o filme mudo transcorria, Sablin explicava o seu plano e exortou os oficiais a apoiá-lo. Os oficiais ficaram igualmente divididos, oito a favor e oito contra. As coisas eram muito mais claras com os marinheiros comuns. Os tripulantes, reunidos pelo companheiro de Sablin, Alexander Shein, foram unânimes em seu apoio.

Sablin reuniu os oficiais e aspirantes a oficiais e fez o possível para convencê-los. Deve-se lembrar que, neste ponto, ele não sabia se alguém o apoiaria. A prisão do capitão chocou e assustou alguns deles. O resultado foi previsivelmente misto. Metade dos oficiais do navio – homens honestos e decentes, dos que colocam sua consciência antes de seus interesses pessoais – acompanhou a proposta. Outros, como o oficial médico do navio, Oleg Sadikov, a recusaram à queima-roupa. Exemplo típico de um carreirista e oportunista soviético, Sadikov agora mal consegue reprimir um sorriso cínico quando fala dos planos revolucionários de Sablin. Ele foi particularmente feroz com a referência deste último a Leningrado como “o berço da revolução“. Para filisteus como este, todas as perspectivas revolucionárias são “loucura”, “utopia” e “impraticável”. A sabedoria dessas pessoas inteligentes se resume à filosofia do covarde e do escravo que aprende a amar suas próprias correntes. Essas pessoas são a negação de todo progresso humano. Eles existem em todos os países em todos os períodos históricos. Se os Sablins deste mundo representam a face da humanidade, os Sadikovs representam apenas sua parte traseira.

A corrida de Storozhevoy através do Mar Báltico para as águas territoriais suecas em 9 de novembro de 1975.

Sem se deixar abater, Sablin afastou toda a resistência e exigiu uma votação. Aqui vemos o papel crucial da liderança. Sem partido nem aparato por trás dele, por pura determinação, élan revolucionário e força de caráter, ele varreu tudo à sua frente. O voto pela rebelião transformou completamente o humor dos homens. No curso dessa luta – como em todas as outras lutas – o moral dos combatentes experimenta fluxos e refluxos constantes. Isso é da natureza das coisas. A notícia de que a tripulação havia votado por unanimidade pela ação e que pelo menos metade dos oficiais havia decidido apoiá-los teve um efeito imediato e eletrizante: “A partir desse momento, houve um grande entusiasmo“, lembra Shein: “O ânimo de todos se elevou. Nós pensávamos que seríamos heróis!“, acrescenta ele com um sorriso irônico.

De fato, é possível dizer que havia um elemento de ingenuidade no plano de Sablin. Pode-se dizer, com a sabedoria da previsão, que quase certamente estava fadado ao fracasso. Mas isso seria uma avaliação injusta e unilateral. Sablin certamente não era utópico. Embora seu plano fosse arriscado, baseava-se em uma compreensão sóbria da situação. É claro que havia descontentamento em massa com o regime burocrático. Isso já fora demonstrado alguns anos antes por uma revolta operária em Novocherkassk, que foi brutalmente reprimida pelo regime. A resposta entusiástica à proposta de Sablin entre a tripulação do navio e até de uma grande parte dos oficiais mostra que ele se baseou em uma avaliação precisa do humor das massas. Para ter sucesso, um levante exigiria a unidade na luta dos marinheiros e trabalhadores. Isso Sablin entendeu perfeitamente, e foi por isso que ele desenvolveu um plano para seguir para Leningrado e, dali, tentar apelar em uma frequência de rádio que poderia ser captada pelos civis.

É verdade que tudo isso seria muito facilitado pela existência de um genuíno partido leninista. Mas onde Sablin deveria encontrar esse partido? Sua experiência pessoal do chamado “Partido Comunista da União Soviética” o convenceu de que esse não era um partido comunista, mas apenas outro braço do Estado burocrático, um clube para lacaios e carreiristas. Não por acaso, seu apelo não foi ao partido “comunista”, mas diretamente ao povo trabalhador da URSS. O Estado totalitário, com seus milhões de espiões e agentes provocadores, tinha seus tentáculos em todas as fábricas, universidades e quartéis do exército. Paradoxalmente, Sablin só conseguiu chegar tão longe quanto chegou porque se supunha que ele próprio, como oficial político do navio, era um dos vigias do regime. Sua posição lhe dá uma oportunidade única de organizar e se preparar em segredo. Provavelmente, foi isso que ele quis dizer quando disse que o regime só poderia ser destruído por dentro.

Deveria ter se abstido de agir até ter reunido uma organização leninista clandestina entre os marinheiros e depois se ligado aos trabalhadores das fábricas? Em resumo, talvez. Mas Sablin conhecia muito bem as colossais dificuldades a serem enfrentadas por um empreendimento dessa natureza. A qualquer momento, poderia ser traído junto a KGB. Aqui, por outro lado, ele tinha em suas mãos uma oportunidade única de agir. Sablin não era bobo e, certamente, não era louco. Ele assumiu um risco calculado. Falhou e pagou por isso com a vida. Mas quão superior foi esse ato de heroísmo pessoal diante de todo o escárnio dos fariseus que apenas salvaram suas próprias peles e nunca levantaram um dedo pela causa do povo soviético!

A reação da tripulação foi extremamente significativa. Trotsky ressalta que as Forças Armadas são sempre um reflexo fiel das tendências da sociedade. As fileiras da marinha, principalmente jovens da classe trabalhadora, eram um verdadeiro reflexo do humor da classe trabalhadora soviética da época. Fiéis ao socialismo e aos ideais da revolução de outubro, estes últimos estavam cada vez mais alienados pelo domínio arbitrário e sem lei da burocracia. Os mesmos líderes que proferiam discursos tão belos sobre “construir o comunismo” na URSS viviam como milionários e príncipes, enquanto as condições de vida da grande maioria dos cidadãos soviéticos ficavam muito para trás.

A existência de enormes e crescentes desigualdades era um lembrete constante de que a União Soviética não estava se movendo em direção ao socialismo, mas, pelo contrário, para longe dele. Desenvolvimentos subsequentes confirmaram amplamente esse fato. A mesma burocracia parasitária, que falava hipocritamente em nome do “socialismo” e do “comunismo” naquela época, presidiria a destruição da economia planejada nacionalizada e da União Soviética. A única maneira de evitar isso seria a derrubada da burocracia em uma revolução política para restaurar o poder da classe trabalhadora. Foi isso que Sablin tentou fazer.

A possibilidade de uma revolução política contra a burocracia foi demonstrada pelos eventos aqui descritos. O fato de que mesmo uma grande parte dos oficiais do Sentry veio imediatamente para o lado da rebelião é de grande importância sintomática. Mostra, em miniatura, o processo que se desenrolaria na escala de toda a União Soviética quando a classe trabalhadora começasse a se mover. A burocracia – como os marxistas haviam previsto – teria se dividido ao meio, e uma seção teria ido para o proletariado. Que uma seção dos oficiais se recusou a apoiar a revolta não é surpreendente. Como em toda greve, havia alguns canalhas. O incrível é que, entre a tripulação, não houve um só canalha, e apenas alguns dos oficiais – os elementos mais covardes e desprezíveis – se opuseram ativamente ao levante.

Esses elementos, naturalmente, desempenharam um papel pernicioso na traição do motim às autoridades. Antes que o Sentry pudesse deixar Riga, um oficial fugiu do navio e deu o alarme. O fato de seus planos terem sido traídos às autoridades causou uma vacilação momentânea. Diante da possibilidade de ter que enfrentar dificuldades esmagadoras, Sablin hesitou, mas decidiu seguir em frente. Significativamente, o que endureceu sua determinação foi a atitude firme dos marinheiros comuns, a maioria deles ainda apenas adolescentes, que insistiram em continuar a revolta: “Começamos isso; então é melhor irmos em frente!” A atitude dos homens resolveu o problema em favor da ação. O navio partiu de Riga às 13h de 9 de novembro, em direção a Leningrado.

Antes de deixar Riga, Valery escreveu uma carta para sua esposa, explicando por que ele havia decidido arriscar tudo. É um documento humano comovente. Valery Sablin era um homem com esposa e filho pequeno, oficial da marinha, nascido em uma família soviética privilegiada e com uma brilhante carreira à sua frente. Pode-se imaginar que dificuldades qualquer homem experimentaria em tal situação. Mas Sablin era um revolucionário e não demonstrou hesitação em colocar sua carreira, sua família, sua liberdade e sua vida em risco pela causa em que acreditava:

“Por que estou fazendo isso? O amor à vida. Quero dizer, não no sentido da comodidade burguesa, mas de uma vida brilhante e verdadeira que inspira uma alegria genuína em todas as pessoas honestas. Estou convencido de que, em nossa nação, assim como há 58 anos, em 1917, uma consciência revolucionária se acenderá e alcançaremos o comunismo em nossa sociedade”.

Que grandeza de espírito está presente nessas linhas! Que contraste com a mesquinhez, covardia e maldade dos cínicos profissionais do tipo Sadikov!

Oleg Maksimenko, um marinheiro, lembra que havia uma atmosfera estranha, um silêncio a bordo antes de saírem do porto. É como aquele momento de extrema tensão antes de um atleta entrar em ação, quando todos os nervos estão sendo concentrados, como uma mola espiralada. Ao ouvir o alarme que anunciava a partida do navio, toda essa energia foi liberada repentinamente: “Estávamos todos correndo como loucos“, lembrou Maksimenko. “Eu estava confuso“, confessou o operador de rádio, “o que estávamos fazendo? Eu me senti como um homem cego sendo levado por um campo minado“. Mas logo essa confusão inicial foi substituída por um sentimento de exaltação dos homens que jogaram fora o jugo da escravidão e se elevaram à altura dos seres humanos livres. Maksimenko lembrou: “O navio estava ganhando velocidade e esse sentimento de incerteza tornou-se avassalador. Havia um sentimento de liberdade. Uma espécie de contentamento como se o coração de alguém estivesse voando“. Durante as próximas seis horas, todos os tipos de sentimentos contraditórios surgiram entre a tripulação, refletindo a rápida oscilação de suas esperanças e medos.

Os perigos que enfrentariam logo ficaram claros: “Olhei para fora e vi um navio saindo do porto“, diz Maksimenko, revivendo claramente a experiência: “Pensei que iria nos bloquear. O Sentry fez uma curva acentuada à direita, quase fui atirado ao mar; estava me agarrando. Parecia que estávamos a 45 graus. E esse outro navio continuava chegando. Então, de repente, virou à esquerda“. A equipe respirou fundo novamente. O Sentry saiu de Riga!

Sablin havia escrito o discurso exortando o povo da Rússia a se erguer e derrubar seus governantes burocráticos corruptos e criar uma sociedade genuinamente comunista, discurso que ele planejava transmitir quando o navio chegasse a Leningrado. Em vez disso, o discurso foi transmitido assim que saiu de Riga. Imediatamente ao sair do porto, Sablin deu ordens para transmitir o apelo pelo sistema tannoy do navio em um comprimento de onda que poderia ser captado por cidadãos comuns. Cada linha do apelo brilhava com ardor revolucionário:

“Dirijo-me”, dizia a proclamação, “àqueles que levam nosso passado revolucionário em seus corações, àqueles que podem pensar criticamente, mas não cinicamente, sobre o presente e o futuro de nosso povo. O nosso é um ato puramente político. Os verdadeiros traidores da Pátria serão aqueles que tentarem nos impedir. No caso de um ataque militar ao nosso país, o defenderemos lealmente. Mas agora temos outro objetivo – levantar a voz da verdade”.

Mas sem o conhecimento de Sablin, o operador de rádio não se atreveu a transmiti-lo como um texto aberto, e enviou o discurso em código cifrado; só foi ouvido pelos superiores de Sablin na hierarquia naval. A voz de Sablin foi assim silenciada. Nunca chegou aos ouvidos da classe trabalhadora para o qual havia sido escrito.

O Kremlin contra-ataca

A reação inicial das autoridades de Riga foi de choque e descrença. Demoraram a se mover – um fator que a ressaca após as comemorações do dia anterior provavelmente contribuiu. Logo, porém, as autoridades perceberam que algo sério havia ocorrido. “Nada disso havia acontecido antes“, disse um oficial de alto escalão. “Eles haviam apreendido um navio. E se recusaram a negociar conosco – apenas com Moscou. Isso já era ruim o suficiente. Mas que tal coisa pudesse ser liderada por um comissário!” Sablin recebeu uma ordem direta do comandante em chefe da marinha: “Pare o navio e retorne imediatamente ao porto“. Sablin recusou. O Sentry partiu.

O líder soviético Leonid Brezhnev foi acordado no meio da noite e informado da situação. A essa altura, a revolta já tinha a atenção total do Politburo. O humor dos homens no Kremlin só pode ser imaginado. Isso foi uma deserção? Ou o começo de uma revolta? Brezhnev não queria se arriscar. Às quatro horas da manhã, o comandante da frota do Báltico foi acordado e instruído a mobilizar seus navios. Suas ordens, diretamente de Brejnev, eram encontrar o Sentry e detê-lo ou afundá-lo.

Treze embarcações costeiras fortemente armadas foram enviadas em busca do Sentry. Ao amanhecer do dia 9 de novembro, eles o alcançaram. O comandante emitiu a ordem para parar sob o risco de ser afundado. Mas o comandante ainda estava em dúvida quanto às intenções dos amotinados. Eles estavam realmente indo para Leningrado, ou o navio pretendia desertar para a Suécia? Leningrado fica a cerca de 300 milhas a nordeste de Riga. Por mar, a rota é o dobro dessa distância. O golfo de Riga é intransitável ao norte, fechado pelas ilhas estonianas de Saaremaa e Hiiumaa. Um navio que faz o percurso para Leningrado a partir de Riga precisa seguir para o oeste em direção a Gotland, depois para o noroeste em direção a Estocolmo, e depois virar para o leste para o Golfo da Finlândia. Não há como saber se um navio está indo para Leningrado ou Suécia até que as duas rotas se separem no Báltico.

Uma embarcação da guarda costeira localizou o Sentry ao amanhecer; o navio parecia estar indo para Estocolmo. A KGB transmitiu uma mensagem traiçoeira ao navio, com o objetivo de dividir os rebeldes: se eles parassem o navio e libertassem o comandante, os homens seriam perdoados. Compreensivelmente, neste ponto, houve uma onda de dúvida entre alguns dos amotinados, mas outros permaneceram firmes e isso foi suficiente para decidir o resultado. O Sentry seguiu em frente, enviando uma mensagem aos guardas costeiros. A mensagem transmitida pelos rebeldes começava com estas palavras: “Camaradas! Não somos traidores da Pátria. Não estamos indo para o exterior“. Perplexos com a mensagem desafiadora dos amotinados, os perseguidores navais hesitaram. E, justamente naquele momento, os aviões de guerra soviéticos apareceram no alto.

A divisão aérea da Frota do Báltico tinha ordens para inutilizar e, se necessário, afundar o Sentry. Um esquadrão sobrevoou o navio, exibindo claramente seus mísseis. O comandante da ação descreveu como deu a ordem fatal: “Prepare-se para atirar!” Houve uma pequena pausa. Percebendo as implicações psicológicas de suas palavras, o comandante perguntou ao piloto se ele havia entendido a ordem. “Ordem entendida!” veio a resposta lacônica do líder do esquadrão. Um minuto se passou, parecendo uma eternidade, depois outro minuto. Então, a realidade chocante desabou de repente sobre o comandante. Os aviões haviam passado por cima do navio rebelde sem ter lançado seus mísseis!

Avião de reconhecimento Yak-28, usado para envontrar Storozhevoy

Os pilotos se recusaram deliberadamente a disparar contra seus companheiros. Por um momento, pareceu aos comandantes que o motim estava se espalhando. O fato de os pilotos do contingente aéreo da frota se recusarem a abrir fogo, desafiando uma ordem direta do comandante, deve ter causado um arrepio na espinha dos senhores do Kremlin. O pânico explodiu. O estado-maior geral aumentou a pressão por ações imediatas contra os rebeldes. Gritos e xingamentos foram ouvidos pelas ondas de rádio. O ministro da Defesa, Grechko, ficou furioso. “O que está acontecendo?” ele gritou ao telefone: “Cumpra a ordem imediatamente!

Um segundo grupo de caças foi despachado, com pilotos diferentes, aos quais só Deus sabe o que lhes foi dito para os convencer a obedecer às ordens e atacar o Sentry. Finalmente, o medo de seus oficiais e o hábito de obediência militar cega superaram a relutância natural dos pilotos em disparar contra um de seus próprios navios. “Quando os aviões apareceram, tudo mudou“, lembrou um dos amotinados. “Se não parássemos, sabíamos que eles iriam nos bombardear“. Dois caças apareceram voando baixo. A bordo do Sentry, ninguém disse uma palavra; os homens apenas olhavam para o céu e esperavam. Então o som de tiros foi ouvido. Por um momento, alguns membros da tripulação acharam que era um ataque da OTAN. Então, eles viram uma parede de água quando uma bomba caiu na frente deles. Houve um barulho alto quando o casco estalou. O navio balançou e começou a girar em círculos. Eles souberam que tudo estava acabado.

Os caças lançaram bombas à frente e atrás do navio. A situação agora era desesperadora. Com o navio atingido pelas explosões, a determinação dos homens quebrou. Alguns tripulantes abriram a escotilha e soltaram o capitão Putorny, que pegou uma pistola, correu para a ponte e atirou em Sablin, que estava desarmado e sem condições de resistir, na perna. Então, o capitão chamou o comando com uma voz rouca e quase irreconhecível: “Parem de atirar. Eu assumi o controle do navio“. Menos de seis horas depois que o navio deixou Riga, o motim estava em ruínas. Às seis horas, o Sentry foi ocupado por paraquedistas e homens da KGB. Leningrado ainda estava a 400 milhas de distância.

Os paraquedistas vieram a bordo com rifles automáticos. Quando o barco foi abordado, havia homens à paisana entre os recém-chegados. A KGB já estava assumindo o comando. Os rebeldes foram obrigados a ficar contra uma parede das sete da manhã às seis da tarde. Aqueles que os vigiavam receberam ordens de atirar nas pernas se eles se mexessem. A relação entre os amotinados e seus guardas foi significativa. Nesse momento, os que guardavam os prisioneiros eram soldados comuns. No caminho de volta a Riga, um oficial fez a Sasha Stein a pergunta que devia estar na cabeça de todos: “Por que você fez isso? Você quebrou o seu juramento“. Ao que Shein respondeu com naturalidade: “Veja como vivemos! Que tipo de vida é essa? Você realmente acha que as pessoas deveriam viver assim? É apenas uma grande mentira“. O oficial não respondeu, mas Shein estava convencido de que ele concordou e até mostrou alguma simpatia.

Em Riga, a KGB assumiu a investigação. Toda a tripulação do Sentry foi detida, mesmo aqueles que se opuseram ao motim. Todos juraram manter silêncio. Esta medida não foi acidental. Em Riga, as pessoas já estavam falando de um “segundo Potemkin“. Isso representava um perigo mortal para o regime. As autoridades não queriam que as notícias da revolta se espalhassem e, finalmente, se prepararam para apresentá-la à opinião pública mundial como uma tentativa de deserção ao Ocidente – algo que não poderia estar mais longe da verdade. Enquanto esperavam ansiosamente pelas notícias de seu destino, os recrutas detidos mantiveram seu desafio corajoso. Um dos marinheiros – um jovem da Sibéria – assegurou-lhes que uma viagem à Sibéria não seria tão ruim, pois a paisagem era deslumbrante!

Sablin, Shein e 14 outros foram enviados para a infame prisão de Lefortovo, em Moscou, para interrogatório. Um dos interrogadores mais experientes da KGB foi designado para Sablin. Os homens do Kremlin receberam um choque brutal. Eles estavam determinados a descobrir o que havia por trás da revolta. Havia uma organização? Quem o liderou? Como um verdadeiro revolucionário proletário, Sasha Shein, quando questionado sobre o papel que desempenhou, disse aos interrogadores que ele havia desempenhado um papel ativo desde o início.

Em um movimento previsível para dividir os rebeldes, eles separaram os tripulantes comuns dos “líderes”. No verdadeiro estilo da Inquisição, a KGB os convidou a escrever tudo o que recordavam dos eventos no Sentry. “Tomem o tempo que precisarem, mesmo que demore meses“, eles disseram aos encarcerados. Por quatro longos meses, os jovens recrutas, de dezenove a vinte anos, foram mantidos em isolamento, sem contato com o mundo exterior e sem ideia de que punição os aguardava. Eventualmente, eles foram levados a um tribunal especial de altos oficiais. A composição do tribunal foi claramente projetada para dominá-los e intimidá-los. “Mais almirantes e generais do que você poderia contar“, lembrou um deles mais tarde.

Um a um, os jovens marinheiros foram chamados à barra do tribunal e solicitados a prestar contas. Estes não eram marxistas treinados, mas jovens trabalhadores comuns. Derrotados e isolados, sem perspectivas, a maioria alegou ignorância. Um dos marinheiros comentou com ironia: “Nunca mais vou tentar isso“. Sobre o que um dos generais observou ironicamente: “Você quer dizer que tentará outra coisa?” O alto escalão reunido pareceu achar isso divertido e sorriu. A visão de um sorriso nos lábios dos generais fez os recrutas relaxarem. “Veja bem, eles estão rindo. Isso significa que são seres humanos. Eles sabem que somos todos jovens e provavelmente nos perdoarão!” Mas perdão não é uma palavra que constasse do léxico da burocracia stalinista. Esses marinheiros – rapazes comuns da classe trabalhadora – ainda sofriam da ingenuidade e inexperiência da juventude. Eles nunca haviam lido a frase de Shakespeare: “Há punhais nos sorrisos dos homens“.

Sablin ainda estava de muletas durante o interrogatório inicial. Ele logo convenceu seus interrogadores de que deserção não fazia parte de seu plano. Mas a verdade nunca poderia ser admitida pela KGB. Que um alto funcionário do Partido se voltasse contra o sistema – isso era algo que nunca deveria se saber. Sablin e Shein foram levados a julgamento apenas nove meses depois. Sablin tinha sido interrogado todos os dias durante esse período. Só quando seus atormentadores se convenceram de que não havia organização por trás do levante, que tudo se reduzia a só um homem, decidiram limitar a punição aos principais líderes, Sablin e Shein. Os outros foram libertados – embora tenham sido posteriormente vitimados pelo regime e marcados pelo resto de suas vidas. Mas o castigo supremo foi reservado a Valery Sablin.

A cena no tribunal foi mais dramática do que qualquer coisa que pudesse ser inventada pela literatura. Em seu “julgamento”, realizado a portas fechadas, Sablin se comportou com heroísmo exemplar. Quando Sasha Shein foi finalmente confrontado com seu velho camarada, ele lembra como Sablin “olhou para mim com aquele olhar penetrante, como se estivesse olhando dentro da minha alma. E foi como se ele estivesse me perguntando: ‘você ainda está lutando ou desistiu?’” Sablin foi considerado culpado de trair a Pátria. Mas o regime ainda tinha mais uma surpresa terrível para esse inimigo inquebrantável e desafiador. Embora esses crimes terminassem geralmente com uma sentença de 15 anos de prisão, o Kremlin tinha outras ideias. Um inimigo tão perigoso não podia viver. Foi decisão pessoal de Brejnev executá-lo com o pelotão de fuzilamento. Os juízes contratados pelo regime apenas repetiram um veredicto que já havia sido antecipado. O julgamento havia sido uma farsa.

Assim que a sentença de morte foi lida, um calafrio percorreu o tribunal. Sablin não sabia disso até o último minuto. Nem os investigadores sabiam das ordens do Kremlin. Os juízes leram a sentença e rapidamente começaram a recolher seus papéis e a sair. Sablin lançou um olhar penetrante sobre eles, como se dissesse: “O que você pensa que está fazendo?” e, sob aquele olhar de aço, os judas profissionais da burocracia escaparam do tribunal. Somente depois que eles saíram, a exaustão e a tensão dos meses anteriores cobraram seu preço. Valery deixou-se cair pesadamente contra a barreira e teve que ser apoiado por um guarda. Shein recebeu uma sentença de oito anos. Foi a última vez que viu Valery Sablin.

Sablin foi executado poucas semanas após seu julgamento, mas seus parentes não descobriram que a execução havia ocorrido até oito meses depois. Eles foram informados do destino de Valery por um oficial local da KGB, um daqueles cínicos e típicos profissionais que em todos os regimes – democráticos ou fascistas, burgueses ou “socialistas” – estão dispostos a realizar as tarefas mais sujas para manter suas carreiras e conforto. Essa criatura do regime, com seu sorriso radiante e discurso bem preparado, logo destruiu suas últimas esperanças: por que a família não foi informada? Porque não perguntaram. Agora que perguntaram, foram informados.

“Assim que você fez sua pergunta, enviamos uma cópia da notificação de morte. E como você não solicitou seus pertences depois de seis meses, todos eles foram destruídos, incluindo suas cartas e manuscritos. Você não pode ter motivos para reclamar”. Tudo havia sido feito “de acordo com a lei”.

Sablin foi enterrado em uma cova não identificada, cujo paradeiro nunca foi revelado. Até hoje ninguém sabe onde ele está enterrado. Sua família só pode honrar sua memória diante de um monumento para presos políticos.

Um herói do nosso tempo

A burocracia conseguiu esmagar uma revolta perigosa. Mas apenas derrotar os revolucionários não foi suficiente. Isso nunca é suficiente. É necessário apagar todos os vestígios deles e obscurecer suas memórias. Portanto, foi inventada a calúnia repugnante de que a tripulação do Sentry queria desertar para o Ocidente. Nos 15 anos seguintes, a memória de Sablin foi coberta de lixo. O regime havia preparado uma matéria de capa mentirosa, na qual Valery Sablin – aquele devotado patriota, comunista e soviético – foi rotulado de desertor e traidor da União Soviética. Os fatos verdadeiros surgiram apenas em 1990, nos dias agonizantes do regime corrupto e degenerado que minou e destruiu a União Soviética por dentro.

Nikolai Cherkashin explica o motivo da política do regime de descrever a rebelião como uma deserção:

“Foi muito conveniente para as autoridades porque Sablin assim poderia ser renegado, tratado como desertor, como alguém que teria ido ao Ocidente por razões financeiras. Era uma teoria conveniente, porque reduzia o significado do acontecimento. Não foi um motim, nem foi uma revolta, foi apenas uma ação criminosa comum”.

A história de Sablin agora é amplamente conhecida na Rússia. Em 1996, houve um apelo para se dar a Sablin um perdão póstumo. No ano seguinte, Sablin foi destaque na série de documentários How It Was. No Ocidente, The Hunt for Red October [A Caçada ao Outubro Vermelho], de Tom Clancy, foi um best-seller; o desertor ficcional, Marko Ramius, interpretado no filme por Sean Connery, teve um apelo popular enorme. Mas Valery Sablin, com sua fé na vitória da revolução, foi esquecido até agora.

Sean Connery em A Caçada ao Outubro Vermelho

A tripulação que havia acompanhado Sablin recebeu uma variedade de punições, embora nenhum deles tenha sido preso. “A máquina do Estado nos derrubou. As ‘rodas da justiça’ – por mais injustas que fossem – afetaram todos nós, até os oficiais, independentemente da antiguidade“. Nas palavras do operador de rádio do Sentry, “Nossas carreiras foram arruinadas. Todos perdemos nossos empregos, nosso amor pelo mar, nossa paixão por defender a Pátria. Tudo foi esmagado. A máquina quebrou a vida de todos“. Apesar de tudo, a memória da revolta ainda evoca um sentimento de orgulho. Vinte e cinco anos depois desses eventos notáveis, os membros sobreviventes da tripulação se reuniram para comemorar o motim. Não havia traços de arrependimento, nem de desculpas. “Estamos orgulhosos do que fizemos“, dizem eles. E Sablin? “O homem era um herói“, disseram eles, “ele deveria ter recebido uma medalha“. Em uma homenagem emocionante a seu antigo camarada, no final do documentário, Sasha Shein pronuncia o seguinte julgamento:

“Toda sociedade precisa de espíritos nobres. Sem eles, nenhuma sociedade pode avançar. Sablin era esse espírito nobre”.

O documentário do Channel Four é um documento maravilhoso. No entanto, claramente, tem suas fraquezas. Não sendo escrito por marxistas, não tem uma compreensão real do significado político dos eventos que retrata de maneira tão honesta e emocionante. As questões recebem principalmente um interesse humano, que é válido dentro de certos limites, mas que não é suficiente. Certamente, se o próprio Sablin tivesse vivido para vê-lo, sem dúvida ficaria grato, mas seria muito crítico, particularmente sobre as conclusões do programa que parecem indicar que o motim no Sentry foi um episódio heroico, mas irremediavelmente condenado ao fracasso – uma curiosidade histórica, como o próprio Sablin: “Mesmo após sua morte“, conclui o documentário, “Sablin continua sendo um enigma: um comunista leal que ousou enfrentar o Estado“.

Mas para qualquer pessoa familiarizada com a história da URSS, não há enigma aqui. Sablin não era o indivíduo isolado pintado pelo programa. Ele faz parte de uma galeria de heróis do movimento revolucionário russo que lutou e morreu para resgatar as tradições de outubro e que entrou em uma luta de vida ou morte contra a burocracia stalinista. Os homens e mulheres que iniciaram essa luta foram os membros da Oposição de Esquerda de Trotsky na década de 1920, que morreram nos campos de extermínio de Stalin e nas masmorras da GPU-KGB.

Sablin não foi o único exemplo de um comunista de alto escalão que estava preparado para enfrentar a tirania stalinista e defender uma política leninista. Mesmo nas fileiras da GPU de Stalin, havia essas pessoas – comunistas dedicados e dispostos a dar a vida pela Revolução. Em 1937, Ignace Reiss, um oficial de alto escalão da GPU declarou-se abertamente por Trotsky e pediu uma revolução política contra Stalin, o coveiro da Revolução de Outubro. Como Valery Sablin, Ignace Reiss foi assassinado pela burocracia. E, para cada um desses heróis, cujos nomes conhecemos, houve centenas e milhares que não têm nome nem sepultura.

Nos dias que antecederam sua execução, naquela noite escura de isolamento à beira do abismo, Sablin recebeu permissão de seus atormentadores para escrever uma carta final a seu único filho. Esse documento notável foram as últimas palavras que Valery Sablin conseguiu pronunciar ao mundo antes de ser silenciado para sempre. Essas palavras, tão cheias de otimismo e confiança no futuro da humanidade, são sua última vontade e testamento. Elas ainda ecoam como um apelo às gerações futuras:

“Confie no fato de que a história julgará os eventos com honestidade e você nunca terá que se envergonhar do que fez o seu pai. Sob nenhuma circunstância serás uma daquelas pessoas que criticam, mas que não seguem suas ações. Essas pessoas são hipócritas – são pessoas fracas, sem valor, que não têm o poder de reconciliar suas crenças com suas ações. Desejo-lhe coragem, meu querido filho. Seja forte na crença de que a vida é maravilhosa. Seja positivo e acredite que a Revolução sempre vencerá”.

Hoje, quando o regime stalinista da URSS foi substituído por um regime capitalista ainda mais monstruoso, a opressão sofrida pelas massas na Rússia é mil vezes pior do que em 1975. Mas, de todo esse sofrimento, um novo espírito está nascendo: um espírito de revolta contra a ordem existente que toma como ponto de referência as gloriosas tradições revolucionárias do passado da Rússia. Juntamente com os numerosos heróis revolucionários de 1905 e 1917, as novas gerações de trabalhadores e jovens encontrarão sua inspiração na vida e obra de Valery Sablin, esse herói e mártir da classe trabalhadora russa e do socialismo internacional.

Os traidores do comunismo tentaram apagar sua memória espalhando suas cinzas ao vento e obscurecendo o seu nome com mentiras e sujeiras. Agora, as mesmas pessoas que ousaram julgar um defensor sincero e corajoso das tradições de outubro destruíram a URSS e desertaram para o capitalismo. Nos ombros da nova geração de trabalhadores, soldados e jovens russos está a tarefa de terminar o trabalho iniciado há 25 anos por Valery Sablin e seus camaradas. Deixem a nova geração limpar a sujeira e reverenciar a memória de um homem que deu sua vida à maior causa de todas – a causa da revolução socialista.

*Artigo originalmente publicado em 05 de fevereiro de 2007.

TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.

PUBLICADO EM MARXIST.COM