Foto: Mario Yorba, Pixabay

“Cuba é um país maior que a geografia da Ilha”

Em 2020, a editora Boitempo publicou o livro Água por todos os lados, de Leonardo Padura. O escritor cubano se tornou bastante conhecido no Brasil com a publicação do livro O homem que amava os cachorros, também pela Boitempo, em 2013, que trata do assassinato do revolucionário russo Leon Trotsky.

O livro Água por todos os lados reúne uma série de ensaios escritos por Padura, refletindo sobre literatura, música, o viver em Cuba, a cidade de Havana, enfim, sobre diferentes aspectos sociais, políticos e econômicos do país. Os ensaios presentes no livro foram escritos entre 2001 e 2018.

Apesar da diversidade, é possível destacar alguns temas, a começar por um dos mais enfatizados por Padura, que é a reflexão sobre o ato da escrita, presente em vários dos ensaios que compõem o livro. Padura afirma que “um escritor é um armazém de memórias. Escreve-se vasculhando as próprias memórias e as memórias alheias, adquiridas pelas mais diversas estratégias de apropriação (p. 23). Padura destaca também a influência fundamental exercida pela cidade em que o escritor vive, que, no caso particular do escritor cubano, se remete a Havana, onde sempre viveu:

“A cidade é então o mercado livre do qual se nutre o armazém de memórias e de lugares simbólicos do escritor, muitas de suas referências, o local material do qual ele não pode se distanciar (e não estou falando de imediações ou distâncias apenas físicas), sob pena de perder a memória e perder tudo” (p. 23).

Padura menciona, ao longo de Água por todos os lados, uma pergunta recorrente que é feita a ele, sobre as razões de permanecer em Cuba ou mesmo porque escrever sobre o país. Como resposta a esse tipo de indagação, em certo momento do livro, Padura comenta sua relação sentimental com Cuba:

“Viver dentro da ilha constituiu, em contrapartida, uma decisão, um exercício de arbítrio, que aceitei de forma voluntária, porque quero ser alguém que vive perto de minhas nostalgias, de minhas lembranças, de minhas frustrações e, é claro, de minhas alegrias e meus amores” (p. 48).

O processo de escrita e sua obra estão intimamente ligados a Cuba. Padura destaca:

“[…] sou um escritor cubano que vive e escreve em Cuba porque não posso e não quero ser outra coisa, porque (e sempre posso dizer que apesar dos diversos pesares) preciso de Cuba para viver e escrever” (p. 9).

No que se refere à escrita, certamente não poderiam faltar diversas referências e reflexões à sua obra mais conhecida, sobre o assassinato de Trotsky. Padura relata em detalhes o processo de escolha do tema e os cinco anos que investiu no processo de elaboração e escrita da obra. Relata também a relação íntima que assumiu com o tema, ao se dar conta do apagamento sofrido pelo nome de Trotsky em Cuba. Em uma belíssima passagem de Água por todos os lados, Padura destaca sua reação diante de um dos documentos simbolicamente mais importantes encontrados em sua pesquisa:

“Entre muitíssimos livros, jornais e documentos que fui entesourando ao longo dos anos de pesquisa e escrita do romance, um tem valor especial: a fotocópia dos manuscritos em que Trotsky trabalhava no dia de sua morte. Sobre várias dessas folhas, datilografadas em russo e com anotações e rasuras feitas pelo próprio Trotsky, ficaram impressas também várias gotas de sangue que lhe saltou do crânio quando Ramón Mercader lhe cravou a pua da picareta” (p. 112).

Padura não poderia deixar de comentar seus primeiros contatos e o encontro com Esteban Volkov, neto de Trotsky. Padura mostra os detalhes dessa aproximação, inclusive transcrevendo uma carta que enviou ao neto do Trotsky. Um fato importante, contudo, foi a opinião do neto de Trotsky sobre O homem que amava os cachorros: Steban, “ao ler meu livro, sentiu que eu realizara um ato de justiça histórica por meio de um exercício poético” (p. 115), afirma Padura.

Padura em apresentação do livro “O homem que amava os cachorros” no Museu Leon Trosky em 10 de novembro de 2017
Com certeza o tema Trotsky não poderia aparecer em Água por todos os lados sem que fossem feitas reflexões sobre a relação de Cuba com a União Soviética e o impacto do desaparecimento do Leste Europeu para o país caribenho. No que se refere à relação entre os dois países, Padura aponta para a influência exercida pela União Soviética:

“[…] aquela conexão e suas consequências baseavam-se na adoção por Cuba de um modelo político, econômico e social – que inclusive sobreviveu ao desaparecimento da URSS […] (p. 131).

Padura aproxima sua própria trajetória pessoal com a da relação entre os dois países, mais precisamente, destaca como a sua geração, que viu o desabamento da União Soviética, reagiu aos acontecimentos políticos das últimas décadas. O escritor cubano aponta o impacto disso na subjetividade de sua geração:

E o desencanto minou muitos espíritos. Os homens e as mulheres da minha geração, artistas ou não, universitários ou não, vimos diluírem-se as ilusões do futuro (o futuro reduziu-se a procurar o que comer hoje, amanhã, quando muito na semana), e sobre nossos ombros caía a derrota de uma vida que de repente perdia todos os nortes, os pontos de apoio, as certezas que nos tinham sido inculcadas e pelas quais tínhamos trabalhado, estudado, lutado, aceitado sacrifícios e limitações de todo o tipo (p. 62).

Padura também mostra ao longo de Água por todos os lados o impacto do processo de queda da União Soviética sobre a sociedade cubana, enfatizando em muitos momentos a situação vivenciada por Cuba ao longo da década de 1990.

“Com a discreta recuperação econômica que começa a se anunciar no fim do século passado e que se estende até hoje, criou-se a ilusão de que o pior havia passado: os cortes de luz reduziram até desaparecer por completo, a carência de medicamente comuns foi superada em porcentagem importante, a vida cultural se reanimou e os mercados se reabasteceram de alguns produtos, embora a preços altos, às vezes inacessíveis, para o nível salarial médio. No entanto, subsistiram, com persistência sufocante, algumas carências cada vez mais agudas, como a de transporte urbano (verdadeira agonia cotidiana para quem necessita se deslocar para o trabalho, a escola, um hospital), a de moradia (reconhecida pelo governo como o mais grave problema social do país) e, sobretudo, na base, a economia cotidiana em duas moedas, que na realidade são três ou mais” (p. 31).

O fantasma do aumento da pobreza também perpassa a sociedade. Padura se refere a “bolsões repletos de desespero e resignação, de frustração e marginalização, que, a partir dos anos da crise de 1990 são cada vez mais agudos e visíveis” (p. 33). Essa situação com certeza afetou o cotidiano e a percepção das pessoas em relação à sociedade ou mesmo como deveriam seguir construindo suas vidas.

“Eufemisticamente chamado de ‘período especial em tempos de paz’, o lapso da década de 1990 foi um momento dramático e revelador para Cuba, para todos os cubanos. Como um brusco despertar… O país onde até era possível sonhar com um futuro modesto, mas afinal um futuro, de repente ficou ‘abandonado e sozinho’ – como disse um poeta redundante –, e sofremos as consequências da incapacidade nacional de nos valermos economicamente por nós mesmos. Ao longo daqueles anos, houve falta de comida, dinheiro, eletricidade, transporte público, papel, remédios… e até de cigarros e rum. A sociedade quebrou, derreteu, e cresceu um espírito de sobrevivência que degradou os valores éticos de muita gente, dando rédea solta à filosofia do ‘resolver’” (p. 61-2).

Embora não entre em detalhes sobre as ações do Estado para tentar reverter essa situação, ou seja, embora não mostre as políticas estatais que nas últimas décadas vêm abrindo as portas para a possibilidade de restauração do capitalismo, Padura não deixa de fazer algumas críticas aos governos:

“[…] a sociedade igualitária pela qual se trabalhou foi se fracionando em camadas e estratos, enquanto o Estado todo-poderoso e protetor foi se retirando de determinadas esferas, tornando-se mais realista e pragmático, cortando ‘gratuidades indevidas’ antes outorgadas, mas conservando os grandes mecanismos de decisão política e econômica” (p. 62).

Sobre o papel do Estado cubano, Padura também aponta seu caráter repressivo, em especial destacando a década de 1970.

“Muitos de nós, escritores e artistas cubanos que hoje passamos da provecta idade dos cinquenta anos, tivemos alguma experiência relacionada com as múltiplas intolerâncias culturais, sociais, morais que imperaram na década obscura de 1970 e que, com menos força, mas não menor frequência, sobrevieram ao longo do decênio seguinte. Castigos, limitações, repreensões podiam nos chegar pelas mais diversas causas: por sermos crentes, homossexuais, ‘problemáticos ideológicos’, por ‘não sermos confiáveis’” (p. 271).

O livro Água por todos os lados mostra um retrato político e cultural de Cuba, destacando suas raízes revolucionárias, suas riquezas e as contradições do processo histórico. Padura, em especial, enfatiza o papel cumprido pelo povo cubano, seja pelas formas que encontra para sobreviver às dificuldades enfrentadas no dia a dia, seja pela defesa de suas tradições e das conquistas da revolução. Para definir esse aspecto, Padura se refere a um “acúmulo de particularidades e originalidades, e até de dificuldades e carências” (p. 9).

O livro de Leonardo Padura, mesmo sendo uma obra não-ficcional, tem um claro personagem, a classe trabalhadora cubana, que, apesar das dificuldades e das contradições da sociedade cubana e do regime repressivo em que vive, mantém viva a perspectiva de construir uma nova sociedade, superando a miséria da exploração capitalista, e mostrando o caminho que pode ser trilhado pelos trabalhadores de todo o mundo. Não por acaso, Padura afirma: “Cuba é um país maior que a geografia da Ilha” (p. 10).